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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.29157
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
TRABALHO, CAPITALISMO E CLASSE TRABALHADORA:
DO TAYLORISMO-FORDISMO AO TOYOTISMO UBERIZADO
1
Work, capitalism and working class: from Taylorism-Fordism to uberized
Toyotism
CAMILLO, Eliane Juraski
2
MOURA, Dante Henrique
3
RESUMO
O presente artigo debruçou-se, pelas vias da pesquisa bibliográfica, na tarefa de desenvolver um breve
panorama histórico acerca da evolução da categoria Trabalho, contemplando elementos do
pensamento marxiano a a atualidade marcada pela sua precarizão, no bojo da Economia do
Compartilhamento (EC), modalidade econômica que vem exacerbando a uberização do trabalho. Ao
recorrer à teoria marxista, s, pesquisadora e pesquisador a/ao, tentamos subir em ombros de
autores e autoras gigantes, no afã de enxergar um pouco mais am as nuances que montam o vasto
caleidoscópio que envolve a tetica. Afinal, o que é o trabalho? Como podemos defini-lo? Que
elementos não poderiam ser desprezados ao se montar um breve panorama histórico acerca de sua
evolução, desde as elaborões de Marx e Engels até a atualidade, marcada pela uberização e
precarização?
Palavras-chave: Trabalho. Uberização. Precarização.
ABSTRACT
This article focused, through bibliographic research, on the task of developing a brief historical overview
about the evolution of the Work category, contemplating elements of Marxian thought until the present
time marked by its precariousness, in the midst of the Economy of Sharing (EC), an economic modality
that has exacerbated the uberization of work. When resorting to Marxist theory, us, researchers dwarves
try to climb on the shoulders of giant authors, in an effort to see a little further the nuances that make up
the vast kaleidoscope that surrounds the theme. After all, what is work? How can we define it? What
elements could not be neglected when creating a brief historical overview of its evolution, from the
elaborations of Marx and Engels to the present, marked by uberization and precariousness?
Keywords: Work. Uberization. Precariousness.
1
(i) O artigo não foi apresentado ou publicado, anteriormente, em encontros e/ou outros eventos científicos;
(ii) não passou pela avaliação de Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), dado que não é o caso, por não se
tratar de pesquisa com seres humanos; (iii) é resultante de pesquisa de pós-doutoramento da autora, sendo
que o autor foi supervisor da mesma; (iv) recebeu apoio de órgãos de financiamento/fomento, a saber, bolsa
Capes recebida pela autora enquanto pós doutoranda.
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Mestra em Educação pela
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Graduação em Letras pela Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e da Missões - URI. Docente do Instituto Federal Santa Catarina IFSC. E-mail:
juraskicamillo@gmail.com.
3
Doutor em Educação pela Universidad Complutense de Madrid, UCM, Espanha, Graduação em
Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN. Docente do Instituto Federal
Rio Grande do Norte IFRN. E-mail: dantemoura2014@gmail.com.
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INTRODUÇÃO
Pensando, inicialmente no que é o trabalho e em como podemos defini-lo, no Livro
Primeiro de O Capital Crítica da Economia Política Marx (1985, 188) assim define o
que é o trabalho:
O trabalho é, antes de mais, um processo entre homem e Natureza, um processo em que o
homem medeia, regula e controla a sua troca material com a Natureza através da sua
própria aão. Ele faz face à própria matéria da Natureza como um poder da Natureza. Ele
põe em movimento as forças da Natureza que pertencem à sua corporalidade braços e
pernas, cabeça e mão para se apropriar da matéria da Natureza numa forma utilizável
para a sua ppria vida. Ao actuar, por este movimento, sobre a Natureza fora dele e ao
transformá-la transforma simultaneamente a sua ppria natureza.
Isto é, Marx declara que pelo trabalho, o homem/ser humano transforma não apenas a
natureza, mas nessa relação, acaba, também e inevitavelmente, por transformar a si
mesmo.
Corroborando essa ideia, no manuscrito Sobre o papel do trabalho na transformação do
macaco em homem, Engels alude que o trabalho é fonte de toda a riqueza, condição
básica e fundamental da vida humana e que, de certo modo, o trabalho criou o
homem/ser humano, pois, em função do referido, o ser humano se desenvolveu das
formas que se desenvolveu, com as características que se desenvolveu. Engels ainda
nos oferece uma genial distinção entre o ser humano e os demais animais: estes se
adaptam à natureza, enquanto que o ser humano, por intermédio do trabalho, adapta a
natureza a si.
Albornoz (2008), na obra O que é o trabalho, argumenta que a palavra trabalho possui
diferentes modulações nas mais diversas línguas, com acepções que variam entre
sentidos/significados positivos e também negativos. Como exemplo do último, a autora
muito bem nos lembra que, em língua portuguesa, a palavra trabalho se origina do latim
tripalium, que era um instrumento pontiagudo utilizado pelos agricultores para a colheita
de cereais, sendo que a maioria dos dicionários definem o vocábulo como um
instrumento de tortura, daí originando-se a conotação do trabalho enquanto dor, penar,
sofrimento.
Huws (2017) similarmente destaca a amplitude de significados da palavra trabalho, que
vão desde o esforço físico (como o de dar à luz, por exemplo), passando pela
participação em um emprego, indo até a representação política.
Ou seja, os sentidos atribuídos ao trabalho não são apenas positivos/afirmativos,
segundo o dito por Marx e Engels, mas como também recorda Albornoz e Huws, e que
foi amplamente desenvolvido por Marx e Engels, o trabalho pode aparecer associado a
pesar e sofrimento, especialmente se o tomarmos no modo de produção capitalista, o
que nos encaminha à tarefa de pensarmos a evolução histórica do trabalho, bem como
o seu papel na vida das pessoas. Isso nos leva a pensar na forma como o trabalho se
relaciona com o capitalismo. Para isso, reportamo-nos a Mészáros (2011), mais
precisamente à sua ideia de sistema sociometabólico do capital, que, grosso modo,
procura capturar a forma pela qual o capitalismo se comporta e se organiza/se estrutura
em suas distintas etapas (capitalismo industrial, capitalismo financeiro, por exemplo),
marcadas por características distintas. No bojo desse conceito, interessa a forma pela
qual o trabalho se relaciona com o capitalismo, respondendo, assim, ao intuito de lançar
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um olhar para alguns elementos que não poderiam ser desprezados ao se montar um
panorama histórico acerca de sua evolução.
Segundo Antunes (2009, p. 21), O sistema de metabolismo social do capital nasceu
como resultado da divisão social que operou a subordinão estrutural do trabalho ao
capital. No que concerne à subordinação do trabalho ao capital, cumpre asseverar que
Harvey (2010) alude que para o capital bem circular no corpo social, o modo de produção
capitalista precisa crescer a uma taxa composta de 3% ao ano. O autor coloca alguns
determinantes como de extrema preponderância para que o modo de produção
capitalista prossiga sua expansão, sendo um deles a forma como se desenvolve o
trabalho.
E sobre isso, Antunes (2009) afirma que há uma divisão social hierárquica que subsume
o trabalho ao capital. Para explicar como isso ocorre, o autor distingue as mediações
primárias ou de primeira ordem das mediações de segunda ordem. No intuito de clarificar
a distinção entre esses dois níveis de relações sociais em meio às quais o ser humano
produz sua existência por meio do trabalho, o autor nos oferece um quadro explicativo
sobre as funções vitais de medião primária ou de primeira ordem (ANTUNES, 2009,
p. 22):
1) necesria ou mais ou menos espontânea regulação da atividade biológica reprodutiva
em conjugação com os recursos existentes; 2) regulação do processo de trabalho, pela qual
o necessário intercâmbio comunitário com a natureza possa produzir os bens requeridos, os
instrumentos de trabalho, os empreendimentos produtivos e o conhecimento para a
satisfação das necessidades humanas; 3) o estabelecimento de um sistema de trocas
compatível com as necessidades requeridas, historicamente mutáveis e visando otimizar os
recursos naturais e produtivos existentes; 4) organização, coordenação e controle da
multiplicidade de atividades, materiais e culturais, visando o atendimento de um sistema de
reprodução social cada vez mais complexo; 5) a alocação racional dos recursos naturais e
humanos disponíveis, lutando contra as formas de escassez, por meio da utilização
econômica (no sentido de economizar) viável dos meios de produção, em sintonia com os
níveis de produtividade e os limites socioeconômicos existentes; 6) a constituição e
organização de regulamentos societais designados para a totalidade dos seres sociais, em
conjunção com as demais determinações e funções de mediação primárias.
Como também nos coloca as condições pelos quais ocorre a emergência das
mediações de segunda ordem (ANTUNES, 2009, p. 23):
1) a separação e alienação entre o trabalhador e os meios de produção; 2)a imposição
dessas condições objetivadas e alienadas sobre os trabalhadores, com um poder separado
que exerce o mando sobre eles; 3) a personificação do capital como um valor egoísta com
sua subjetividade e pseudo personalidade usurpadas voltada para o atendimento dos
imperativos expansionistas do capital; 4) a equivalente personificação do trabalho, isto é, a
personificação dos operios como trabalho, destinado a estabelecer uma relação de
dependência com o capital historicamente dominante; essa personificação reduz a
identidade do sujeito desse trabalho a suas funções produtivas fragmentárias.
Face a isso, o autor adverte que as relações que se sobrepõem, no modo de produção
capitalista, as relações sociais de segunda ordem, em detrimento das mediações
primárias básicas ou de primeira ordem. Dito de outro modo, no modo de produção
capitalista, há uma emergência do sistema de mediões de segunda ordem, na qual se
introduz elementos fetichizados e alienantes do controle social metabólico que
subordinam a totalidade das relações ao imperativo absoluto da expansão capitalista,
isto é, de sua reprodução e expansão, o que inclui todos os aspectos da produção da
existência, igualmente, o trabalho.
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Para isso, conforme o autor, o modo de prodão capitalista promove a separação entre
valor de uso e valor de troca e subordina o primeiro ao segundo, modificando toda e
qualquer relação que possa significar um entrave para a sua connua expansão.
Segundo Antunes (2009), o sistema de metabolismo social do capital é ontologicamente
incontrolável. O mesmo é assentado no tripé capital-trabalho-Estado, sendo que,
aparentes regulações ou freios (como a social democracia, por exemplo) o
conseguiram controlá-lo, em razão do que Mészáros denomina de defeitos estruturais
do sistema de metabolismo social do capital:
Primeiro, a produção e seu controle estão radicalmente separados e se encontram
diametralmente opostos um ao outro. Segundo, no mesmo espírito, em decorrência das
mesmas determinações, a produção e o consumo adquirem uma independência
extremamente problemática e uma existência separada, de tal modo que o mais absurdo e
manipulado consumismo, em algumas partes do mundo, pode encontrar seu horvel
corolário na mais desumana negação da satisfação das necessidades elementares para
incontáveis milhões de seres. E, terceiro, os novos microcosmos do sistema de capital se
combinam de modo inteiramente manejável, de tal maneira que o capital social total deveria
ser capaz de integrar-se dada a necessidade ao domínio global da circulação, [...]
visando superar a contradição entre produção e circulação. Dessa maneira, a necesria
dominação e subordinação prevalece não só dentro dos microcosmos particulares por
meio da ação de personificão do capital individuais , mas igualmente fora de seus
limites, transcendendo não só as barreiras regionais como também as fronteiras nacionais.
É assim que a foa de trabalho total da humanidade se encontra submetida [...] aos
imperativos alienantes de um sistema global de capital. (Mészáros, 1995, p. 48)
Dito de outro modo, o trabalho, como não poderia deixar de ser, fica à mercê das
contingências e imperativos do sistema de metabolismo do modo de produção
capitalista, o que, em muitas situações, acaba por afastá-lo de sua dimensão ontológica
e de aproximá-lo da acepção negativa, anteriormente evidenciada. Huws (2017) realça
que no modo de produção capitalista, o trabalho é expropriado da classe trabalhadora e
que essa expropriação é um ato de violência.
Antunes ainda destaca que o modo de produção capitalista é expansionista,
mundializado, destrutivo e incontrolável, por isso suscetível a contínuas crises. Essas,
constituem-se, cada vez mais, como uma continua depressão, ao contrário do passado,
quando eram mais espaçadas e um período de crise era sucedido de um período de
desenvolvimento e de relativa estabilidade. E essas connuas crises requerem, cada vez
mais, que o trabalho esteja totalmente subsumido ao capital, o que torna mister as
sucessivas reestruturações produtivas, que continuamente vêm modificando a forma
pela qual o trabalho se realiza no modo de prodão capitalista, segundo as
contingências do sistema metabólico característico de cada período.
Nesse sentido, após longo período de acumulação (e de relativo desenvolvimento e
estabilidade), a partir dos anos 70, o capitalismo passa a apresentar, com mais vigor,
segundo Antunes (2008, p. 36):
Desemprego em dimeno estrutural, precarização do trabalho de modo ampliado e
destruição da natureza em escala globalizada tornaram-se os traços constitutivos dessa fase
da reestruturação produtiva do capital.
Como se vê, esse agravamento do quadro crítico do capitalismo a partir dos anos 70 do
século XX traz em seu âmago elementos de extrema complexidade, já que nesse
período ocorreram transformões de ordem econômica, social, política, ideológica, com
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forte incincia no ideário, valores e subjetividade da classe-que-vive-do-trabalho,
segundo denominação de Antunes.
Cabe explicitar que cada país ou região global vivenciou esse processo de crise
estrutural do capital de modo distinto, segundo suas próprias especificidades. No
entanto, é possível assegurar que o que ocorreu em comum foi a resposta dada pelo
modo de prodão capitalista, que por intermédio das constantes reestruturações
produtivas, procurou manter e recuperar sua capacidade de crescimento e de expansão,
mantendo cativo a si o trabalho, bem como a classe trabalhadora.
AS REESTRUTURAÇÕES PRODUTIVAS E AS DIFERENTES FORMAS
DE GESTÃO DO TRABALHO
Tomaremos, neste escrito, alguns aspectos sobre o taylorismo-fordismo, o toyotismo e
o recente fenômeno da uberização, que ilustram o modo pelo qual as reestruturações
produtivas forjam novas formas de gestão do trabalho e da classe trabalhadora. Nesse
percurso, é nosso intento, dar maior ênfase à questão da uberizão.
Antunes (2010, p. 24-25) nos oferece uma síntese muito elucidativa/oportuna sobre o
fordismo, entendendo-o como:
...a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste
século [século XX, explicação nossa], cujos elementos constitutivos básicos eram dados
pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos;
através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção em
série fordista, pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela
separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela existência de
unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituão/consolidação do operário-
massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimenes. Menos que um modelo de
organização societal, que abrangeria igualmente esferas ampliadas da sociedade,
compreendemos o fordismo como o processo de trabalho que, junto com o taylorismo,
predominou na grande indústria capitalista.
Já o modelo japonês chamado de toyotismo é assim definido pelo autor:
[...] ao contrio do fordismo, a produção sob o toyotismo é voltada e conduzida diretamente
pela demanda. A produção é variada, diversificada e pronta para suprir o consumo. É este
quem determina o que será produzido, e não o contrio, como se procede na prodão em
série e de massa do fordismo. Desse modo, a produção sustenta-se na existência do
estoque mínimo. O melhor aproveitamento possível do tempo de produção (incluindo-se
também o transporte, o controle de qualidade e o estoque), é garantido pelo just in time. O
kanban, placas que são utilizadas para a reposição das peças. É fundamental à medida que
inverte o processo: é do final, após a venda, que se inicia a reposição de estoques, e o
kanban é a senha utilizada que alude à necessidade de reposição das peças/produtos.
(ANTUNES, 2010, p. 32-33)
Antunes (2010) nos auxilia a entender as consequências do toyotismo para a classe
trabalhadora. Para atender às necessidades mais individualizadas de prodão,
conforme expresso na citação acima, esta forma de organização do processo produtivo
rompe com o modelo de especialização ou superespecialização do trabalho no
taylorismo-fordismo, requerendo, por sua vez, um classe trabalhadora polivalente,
multifuncional, não especializada, capaz de operar etapas distintas de um determinado
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processo produtivo, o que requer constantes processos de formação e de
(re)qualificação profissional.
O trabalho passa a ser realizado mais em equipe, havendo certa horizontalização do
processo produtivo. Antunes (2010, p. 34) ainda acrescenta a flexibilização das relações
de trabalho, a terceirização, a subcontratão, o controle de qualidade total, a eliminação
do desperdício, agerência participativa, o sindicalismo de empresa e a intensificão
da exploração do trabalho como características do toyotismo.
Sennet (2006), no capítulo denominado Deriva, examina elementos de suma
importância concatenados a distintos momentos do sistema sociometabólico do capital.
Consideramos o teor desse capítulo ilustrativo das consequências da organização do
trabalho da classe trabalhadora, especialmente se o entendermos sob a ótica do
fordismo e do toyotismo, conforme segue.
O autor reflete sobre um encontro com o personagem Rico em um aeroporto, sendo que
não o via há 15 anos. Havia entrevistado o pai Enrico 25 anos atrás, quando
escrevia um livro sobre os trabalhadores nos E.U.A (The Hidden Injuries of Class). Na
época da entrevista o pai era faxineiro e tinha grandes esperanças pelo futuro do filho,
inteligente e bom nos esportes. Há uma década havia perdido contato com Enrico, sendo
que nesse interstício o filho Rico conseguira concluir a faculdade.
Na ocasião da entrevista, Enrico trabalhava como faxineiro há 20 anos, de forma
resignada, sem reclamar nem se empolgar muito com o Sonho Americano. O objetivo
maior era servir à família. Em 15 anos de economia comprou casa no subúrbio de
Boston, desligando-se de seu antigo bairro italiano. Nessa época, a esposa fora trabalhar
fora como passadeira em uma lavanderia, a seu contragosto. O tempo era linear em
suas vidas, trabalhavam ano a ano em empregos que raras vezes variavam de um dia
para o outro. As conquistas eram cumulativas, com melhorias e acréscimos na vida
doméstica, através de aquisições contínuas. O tempo era previsível em sua vida. A
agitação do pós-guerra e da Grande Depressão haviam passado. O emprego era
protegido por sindicatos fortes. Enrico tinha 40 anos e sabia exatamente quando se
aposentaria e quanto ganharia. Em suma, possuía tempo, bem como possibilidade,
através de uma estrutura burocrática que o racionalizava em seu uso (regras de
antiguidade de seu sindicato, mais leis do governo que organizavam pensão, somadas
à autodisciplina). Apresenta-se como autor de sua própria história, linearmente tecida.
Mesmo ocupando a base da pirâmide social, sua história lhe trazia senso de respeito e
honra, por estar ancorada na vitória e, sobretudo, na presença incólume dos valores
morais, sendo respeitado em ambas as identidades, nos dois mundos pelos quais
transitou.
Já no que tange ao filho Rico e sua geração, a aparência não correspondia exatamente
à essência. Concretizou o sonho do pai: ascensão, todavia rejeitou o estilo conservador
e conformista dele. Aberto às mudanças, ao novo, aos riscos, ocupava o topo da
pirâmide social, entretanto não era inteiramente feliz. Fez quatro mudanças em 14 anos.
Considerava a esposa uma parceira em pé de igualdade no trabalho, tendo inclusive
feito uma mudança de emprego e cidade em função dela. Carregava consigo o receio
permanente de perder as rédeas da própria vida, principalmente no que tange ao
trabalho, que se caracteriza sobremaneira pela perda de controle do tempo, enredado
nos fluxos das redes. Perder o controle não era sinimo apenas da perda de poder no
trabalho: a vida emocional e interior se encontravam à deriva em função do jeito que tinha
que viver para sobreviver na economia pós-moderna, com relações fugidias com os
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amigos e a vizinhaa, tendo, inevitavelmente incidência também nas relações
familiares, falta de tempo e enorme disparidade entre as necessidades do núcleo familiar
e as do trabalho. Rico se questionava constantemente o que ensinar aos filhos, numa
época marcada pela ausência de valores éticos e morais, de disciplina, onde oNão há
longo prazo, traz implicações para o trabalho e para a vida pessoal e familiar. No auge
das terceirizações, o curto prazo, as mudanças, o mercado motivado pelo consumidor,
o capital impaciente, a pressão por retorno rápido, a organização em rede, diferente da
piramidal do tempo de Enrico, mais pesada, as redes institucionais da atualidade se
caracterizam pela força de laços fracos que são passageiros e mais úteis, pelo trabalho
em equipe que muda de tarefa em tarefa e muda de componentes do grupo ao longo da
mesma atividade, formam o diapasão das apreensões de Rico: como conciliar o embate
mundo do trabalho versus mundo familiar? O pai Enrico usava na educação do filho
metáforas do mundo do trabalho. Rico o podia fazer o mesmo, haja vista que seu
mundo do trabalho era guiado pelo curto prazo, incompatível com as relações pessoais,
especialmente as familiares, que precisam ter por norte olongo prazo, cada vez mais
em desuso. Assim, apega-se, esporadicamente, ao conservadorismo formal como
maneira de materializar um pouco mais a coerência que sente faltar em sua vida.
O passado, que representava Enrico, apresenta-se como um tempo estável e linear, em
que o homem aceitava a mudaa ao atravessar períodos distintos e difíceis, em função
de acontecimentos singulares como guerras, pestes, dentre outros. No presente, o ser
humano, sob o prisma do capitalismo atual, é levado a aceitar a mudaa como uma
presea constante no mundo do trabalho, com desdobramentos inevitáveis na vida
pessoal e familiar, a exemplo de Rico. E o futuro, nessa perspectiva, se apresenta como
a maior das incógnitas.
Em suma, é possível asseverar que a história de vida de Enrico teceu-se sob o
estandarte fordista, enquanto que a vida de Rico é marcada por aspectos centrais do
toyotismo. Importa destacar que esses dois diferentes momentos são de extrema
importância na definição do modus vivendi das duas gerações, com acentuada influência
na constituição da identidade de pai e filho.
Todas essas mudanças vêm acarretando a diminuição do trabalho fabril e,
concomitantemente, aumento do assalariamento no setor de serviços. Disso decorre
uma maior heterogeneização do trabalho, incorporação da mulher no mercado de
trabalho, crescente subproletarização da classe trabalhadora, visível, principalmente, no
trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado, terceirizado e até quinterizado
(Kuenzer, 2006) que, de forma geral, exclui a juventude como também as pessoas de
mais idade.
Outro aspecto digno de nota e que ocupa lugar de proeminência no cenário relativo ao
trabalho é a crescente imigração, seja de quem ainda possui alguma possibilidade de
mobilidade por oão própria ou por força de condições como as pessoas refugiadas de
guerras ou de catástrofes ambientais. De acordo com Harvey (2008), a imigração traz
algumas consequências, em especial para o mundo do trabalho, pois em tempos de
escassez de postos de trabalho, principalmente de contratos por tempo indeterminado,
as pessoas imigrantes são, em muitas situações, consideradas concorrentes,
aumentando o já existente preconceito e a xenofobia.
Antunes (2010) apresenta dados estatísticos e dialoga com pesquisas que revelam que
na Europa, nos anos 40 do século XX, 40% da população economicamente ativa estava
empregada na indústria, em empregos (relativamente) estáveis. Já no icio do século
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XXI, esse percentual caiu para 30%, havendo estimativas que nos próximos anos baixe
ainda mais, para 20 ou 25%. Essa diminuição do trabalho estável se dá tanto pelo
elevado nível de incorporão da ciência e da tecnologia aos processos produtivos,
implicando na substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, como também por
quadros recessivos, que resultam da retração da indústria. Da mesma forma, contribui
para esse quadro a escolha dos donos do capital em não mais investir na produção, mas
optar pelo crescente investimento de seu capital no mercado financeiro , o que pode ser
constatado pelas próprias palavras de Dowbor (2017, p. 22):
A partir dos anos 1980 o capitalismo entra na fase de dominação dos intermediários
financeiros sobre os processos produtivos o rabo passa a abanar o cachorro (the tail wags
the dog), conforme expreso usada por americanos e isto passa a aprofundar a
desigualdade. Mas apenas a partir da crise de 2008, com o impacto do pânico, é que foram
se gerando pesquisas sobre os novos mecanismos de ganhos especulativos e de geração
da desigualdade.
Em síntese, a menor oferta de emprego estável ocorrido pelas razões acima enunciadas.
Importante compreender que esses aspectos não são fatores isolados, mas
determinações que se inter-relacionam e se fortalecem mutuamente em prejuízo da
oferta de postos de trabalho na indústria, especialmente aqueles de melhor qualidade.
A esse processo de perda de postos de trabalho no setor industrial corresponde um
aumento no setor de serviços, mas em escala menor do que a perda na indústria,
constituindo-se, assim, o desemprego estrutural, força propulsora da emergência do
trabalho precário: retração dos direitos sociais e trabalhistas, baixa remuneração,
dificuldade de organização sindical, dentre outros. Dessa forma, essa grande parcela da
classe trabalhadora fica mais soliria e à mercê dos (des)mandos dos detentores dos
meios de produção, já que a correlação de forças se torna ainda mais assimétrica.
É nesse cenário que se engendra a uberização do trabalho, parte integrante da
Economia do Compartilhamento (EC), que segundo Slee (2017, p. 33) é[...] uma onda
de novos negócios que usam a internet para conectar consumidores com provedores de
serviços para trocas no mundo físico, como aluguéis imobiliários de curta duração,
viagens de carro ou tarefas domésticas.
De acordo com Slee (2017), na obra Uberização: a nova onda do trabalho precarizado,
a modalidade econômica EC, apesar de se encontrar rumores sobre ela anteriormente,
ganha reverberação entre 2013 e 2014. Conhecida, também, por vários outros nomes,
como consumo colaborativo (collaborative consumption), economia em rede (mesh
economy), plataforma igual-para-igual (peer-to-peer plataforms), economia dos bicos
(gig economy), economia da viração ou economia sob demanda (on-demand economy).
O autor aponta um problema conceitual na expressão Economia do Compartilhamento.
O vocábulo economia expressa um universo conceitual relacionado à palavra dinheiro.
Já o vocábulo compartilhamento pressupõe outros valores, como a generosidade e a
solidariedade, por exemplo. Então, a união dos dois vocábulos para nomear algo traria
em si uma contradição. Entretanto, na verdade, não se trata de contradição, mas a
intenção de tentar convencer, ideologicamente, a sociedade, especialmente a parcela
da classe trabalhadora mais afetada pelo desemprego estrutural, de que é possível
conciliar seus interesses com os dos detentores dos meios de produção, de forma
horizontal e solidária.
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Assim, a EC, inicialmente, associada à ideia de o que é meu, é seu ou mi casa, su
casa, anuncia o intuito de fazer frente às grandes corporações, já que, por intermédio
das tecnologias da informão, as pessoas poderiam formar redes virtuosas de
compartilhamento mútuo de informões, bens e serviços, sem necessitar da mediação
das grandes corporações.
Nesse contexto, a EC despontou associada a um movimento social amplo, uma causa
nobre. Contudo, longe de significar uma ruptura ou alternativa à economia de mercado,
liderada pelas grandes corporões, na prática, ela representa a expansão do livre
mercado para novas áreas de nossa vida, segundo o entendimento de Slee (2017, p.
60), bem como já apontado por Marx (2011, p. 112), quando aludiu que no mundo
moderno, as relações pessoais emergem como simples emanações das relações de
produção e troca.
As duas grandes notáveis da EC são as empresas-plataforma Airbnb (aluguéis de
temporada) e Uber (do ramo dos transportes). Essa última é apontada, inclusive, como
sinônimo de EC ou ela própria. Tão expressiva é sua associação com a modalidade, que
de seu nome derivou o substantivo uberização, para denominar a forma de relão de
trabalho decorrente dessa modalidade econômica, que foi transposta para outras
esferas, como a contratação de docentes e o setor de entregas na alimentação.
As duas empresas-plataforma se apresentam publicamente de formas distintas:
enquanto a Airbnb aparece como um pequeno negócio, pautado na sustentabilidade e
na esteira das cidades inteligentes, em que o dinheiro retorna, em tese, para benefícios
da própria comunidade; a Uber que em alemão quer dizer superioridade, estar por
cima, pauta-se na ideia de ter um motorista particular. Todavia, embora se apresentem
com feições distintas, se igualam no modo de agir nas cidades, impondo, a qualquer
custo, sua presea, principalmente ao poder público, e usando de todo e qualquer meio
para remover possíveis obstáculos do caminho que venham a atravancar suas
preseas nos negócios. Cabe frisar que erodir cidades não se constitui em problema
para essas empresas/plataformas.
No entanto, tal modalidade mediada pelas tecnologias não cumpriu a promessa de
assumir uma face solidária. Segundo Slee (2017), o que de fato vem ocorrendo é a
apropriação corporativa da energia coletiva por meio de investimentos bilionários, que
fez com que, para a classe trabalhadora mais empobrecida, a EC se assemelha mais a
uma Economia de Bico, sobretudo no Brasil, onde o desemprego atinge 11,9%,
assolando 12,6 miles de pessoas e a informalidade, na esteira da uberização, atingiu
o maior percentual histórico, 41%, segundo divulgação do IBGE , sendo que em 11
estados da federão, o índice de informalidade ultrapassa o percentual de 50% . Dito
de outro modo, o que era apresentado inicialmente pelos seus idealizadores como um
movimento social em dirão a uma forma diferenciada de economia e sociedade mais
solidária, se revelou, na prática, como um tipo nefasto de negócio que vem intensificando
a precarização das condições de trabalho ao impor à classe trabalhadora menores
ganhos e total ausência de direitos trabalhistas.
Dessa forma, a EC, que foi Gestada no Vale do Silício, local que abriga gigantescos
investimentos, fracassou socialmente porque se constituiu em um movimento
exponencial em favor da desregulação nos mais variados setores da vida, maximamente
no trabalho, em que as trabalhadoras e os trabalhadores não são juridicamente levados
em consideração nas relações de trabalho com essas empresas-plataforma, que se
anunciam como meras intermediárias entre consumo e prestação de serviços, o que as
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permite escapar de muitas regulações e, em consequência, responsabilidades com os
serviços que oferecem, bem como com direitos trabalhistas e impostos.
Cabe frisar que no Brasil há alguns movimentos dos coletivos que trabalham para Uber
no sentido de que sejam reconhecidos seus vínculos trabalhistas como motoristas da
empresa-plataforma. Recentemente foi divulgado pelo jornal O Globo (05/02/2020)
notícia acerca de um julgamento transcorrido no Tribunal Superior do Trabalho TST
em que seus ministros julgaram uma ação impetrada por um motorista da Uber do
munícipio de Guarulhos-SP, pela qual o autor requeria o reconhecimento do vínculo
empregatício com a empresa-plataforma. Nesse processo, o TST considerou que o elo
não existia e que o motorista era um mero parceiro da referida empresa.
Segundo a matéria, A 5ª Turma concluiu que a autonomia do motorista no desempenho
das atividades descaracteriza a subordinação, exigida para configurar a relação de
emprego e acrescenta transcrição de parte do parecer do ministro relator do TST:
A ampla flexibilidade do trabalhador em determinar a rotina, os horários de trabalho, os locais
em que deseja atuar e a quantidade de clientes que pretende atender por dia é incompatível
com o reconhecimento da relação de emprego, que tem como pressuposto básico a
subordinação, afirmou o ministro Breno Medeiros. Ainda conforme o relator, entre os termos
e condições relacionados aos serviços está a reserva ao motorista do equivalente a 75% a
80% do valor pago pelo usuário, percentual superior ao que o TST vem admitindo para a
caracterização da relação de parceria entre os envolvidos.O rateio do valor do serviço em
alto percentual a uma das partes evidencia vantagem remuneratória não condizente com o
liame de emprego’, completou.
Essa decisão, ainda queo seja em última instância, desvela o grau de impregnação
dos interesses do sistema capital na estrutura do Estado, o qual, em teoria, deve
defender os interesses sociais na perspectiva de uma sociedade justa.
Enquanto isso, as empresas-plataforma da EC, conforme Slee (2017), têm alardeado
que conseguiram um feito inédito em nossos dias, restabelecer a confiança entre as
pessoas. Essa afirmação, indubitavelmente, merece um olhar mais acurado, pois parte
de um princípio geral, que não é explicado. Na verdade, utiliza-se uma visão reducionista
do problema e alega-se que essa desconfiaa entre as pessoas pode ser explicada
pela massificação do tratamento impessoal dado às populações pelas grandes
corporões; pelo fato de o mundo ter se tornado mais urbano que rural provocando o
inchado das cidades em que as pessoas não se conhecem, dentre outros aspectos. Ou
seja, posto dessa forma, se coloca de forma reducionista, supondo que há um passado
do qual se tem saudade, no qual havia confiança entre as pessoas e que graças à EC,
essa confiança foi restaurada.
Não obstante, não é bem assim. Slee (2017) muito bem nos recorda que o vocábulo
confiança, a exemplo de muitos outros, é polissêmico e que a confiabilidade, por sua vez,
não é uma característica que se possa observar diretamente na superficialidade dos
fenômenos, sendo que para constatá-la é necessário ir à profundidade.
Entretanto, a forma pela qual as empresas-plataforma da EC se utilizam para sustentar
a afirmação de que restauraram a confiança hodiernamente é por intermédio da
reputação. Esta, diferente da confiança, é um sinal mais informal, construída e
consubstanciada por um conjunto de opiniões emitidas por diversas pessoas, que já se
utilizaram dos serviços mediados por essas plataformas e, portanto, em tese, se sentem
capazes de emitir uma avaliação sobre esse serviço, mesmo sem conhecerem todo o
processo no qual está envolvido. Longe de ser um sinal perfeito de confiança, essas
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opiniões emitidas podem transmitir preocupações legítimas, como também distorcidas,
sobretudo quando quem fala não possui responsabilidade pública pelo que diz.
Por exemplo, algumas características de certos indivíduos podem definir, a priori, a forma
como eles vão avaliar e, portanto, atribuir uma determinada reputação, a pessoas com
determinado perfil como negros e negras, mulheres ou integrantes da comunidade
LGBT. Ou seja, dependendo da visão de mundo de determinado sujeito, ele pode julgar
negativamente o serviço prestado por uma pessoa pelo fato de ser negro ou negra,
mulher ou do grupo LGBT, mesmo que tenha prestado o serviço solicitado com elevada
qualidade e com esmero. Exemplificando, em um bairro em que predomina uma
população de cor branca, um motorista da Uber negro pode ser mal avaliado por uma
corrida feita pelo simples fato de ser negro; uma mulher encanadora, ao prestar serviço
por intermédio de alguma empresa-plataforma, em local com histórico de machismo,
pode ser mal avaliada pelo simples fato de ser mulher; um homossexual, quando presta
serviço em uma comunidade LGBTfóbica, provavelmente será mal avaliado; um
imigrante, oriundo da Arica Latina ou da África, ao prestar algum tipo de serviço por
meio de uma empresa-plataforma na Europa ou nos Estados Unidos não tem a mesma
possibilidade de ser bem avaliado quanto um europeu ou um estadunidense.
Outro aspecto que macula a confiança na reputação é o fato de que pode ser comprada
em empresas que se auto intitulam como impulsionadoras de reputação, como é o caso
da reputation.com. No sítio dessa empresa, no item Sobre Nós, consta:
Reputation.com oferece a plataforma de gerenciamento de reputação online líder na
categoria para grandes empresas com vários locais. Ajudamos as empresas a monitorar e
melhorar as classificações e reputação online e otimizar a experiência do cliente.
Apesar dessa característica que desqualifica a ideia da reputação em substituição à
confiança, a primeira vem se estabelecendo como referência na prestação de serviços
via empresas-plataforma. Contribui para isso o fato de que há um comportamento
peculiar do ser humano, discutido na psicanálise e psiquiatria. Nesse sentido, Pinker
(2013) explica que diante de um comportamento ou gosto apresentado como
preferencial a pessoas ou grupos, o mesmo tende a ser replicado. Assim, uma música,
por exemplo, quando apresentada como sendo a preferida por muitas pessoas, a mais
baixada” e a mais tocada, tenderá a ser realmente a preferida e a maisbaixada pela
maior quantidade de pessoas. Isto é, as pessoas tendem a avaliar bem quem já se
encontra no topo das avaliões, o que não é diferente nos sistemas de avaliação para
fins de reputão das empresas-plataforma da EC.
Ainda como aspecto problemático da reputação enquanto indicadora de confiança está
o fato de que as pessoas tendem a ocultar más experiências e publicar as boas
experiências. E problemas realmente sérios, por outro lado, não podem ser tratados por
sistemas de reputão.
Diante do exposto, concordamos com Slee (2017, p. 193), ao defender que a confiança
não pode ser expressa e/ou firmada por meros sistemas de reputação, os quais não
podem, de forma alguma, se eximirem da regulação:
Os sistemas de reputação não podem substituir a regulação. Em vez disso, estão sendo
substitutos para estruturas de administração corporativa, e um mau substituto. Um sistema
de reputação é um chefe saído do inferno: um gerente errático, destemperado e
incompreensível, que pode queimar você a qualquer momento, por um capricho repentino,
sem oferecer nenhuma chance para contestação.
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Assim, esses sistemas não podem ser considerados confiáveis, quer para estabelecer a
qualidade e a confiabilidade de um serviço, muito menos para mensurar o qo bom é
determinado trabalho executado por uma pessoa que presta serviço por meio de uma
empresa-plataforma de EC e se ela merece continuar a trabalhar ou se deve ser
desligada, se é digna de receber alguma recompensa ou merecedora de punição.
Diante do exposto, refutamos a falsa narrativa que alardeia que as pessoas que
trabalham de forma uberizada possuem a vantagem da flexibilidade de horários e de não
ter patrão. Em relação à primeira, não nos parece ter flexibilidade quem precisa ter
elevada jornada de trabalho, muitas vezes mais que oito horas, para obter uma
remuneração mínima para produzir sua existência. Além disso, quem trabalha sob a
lógica da uberização, sob o controle algorítmico do sistema de reputação, não tem a
liberdade de escolher locais onde trabalhar nem os clientes que vai atender, pois se
rejeitar trabalho será mal avaliado e passará a receber menos trabalho e menor
remuneração, além de correr grande risco de ser punido pelo algoritmo de reputação.
Em relão à falácia de não ter patrão, compreendemos que essa forma de controle não
apresenta um, mas vários patrões: as empresas-plataforma, que pelas vias do algoritmo
de reputação podem visualizar online e, dessa forma, controlar todos os pormenores do
trabalho que es sendo executado, muito além do que fazia a gerência científica
taylorista-fordista; a pessoa que vai consumir o serviço prestado, que pode avaliar mal
um serviço por qualquer razão ou até mesmo sem razão objetiva, conforme já discutido
em parágrafos anteriores; em muitos casos, quem trabalha como motorista da Uber (ou
plataforma-empresa similar) não possui o automóvel. Nesse caso, o proprietário do carro,
seja um particular ou uma locadora, é mais um patrão. Esse mesmo raciocínio se aplica
a quem trabalha na entrega de alimentos e não possui moto ou bicicleta.
Não podemos perder de vista que um aspecto marcante que possibilitou a gênese da
EC foi o desenvolvimento tecnológico. Slee (2017, p. 33) aponta que a internet, muito
além de promover um mundo com aparelhos que prometem deixar nossas vidas cada
vez melhores, por fazerem cada vez mais coisas, efetuarem um número crescente de
operações, está remodelando a sociedade e a forma pela qual produzimos nossas
existências, fazendo com que instituições e arranjos sociais arraigados repentinamente
pareçam obsoletos.
Huws (2017, p. 166) menciona que a centralidade da internet na atualidade concatena-
se com o que costuma ser chamado de era do conhecimento, como se o trabalho real
de pessoas reais não fosse mais necessário, com sérias consequências para os
Estados-nação, para o trabalho e para as pessoas:
Uma nova ortodoxia está sendo construída, uma ortodoxia na qual se toma como certo que
o conhecimento é a única fonte de valor, que o trabalho é contingente e deslocalizável, que
a globalização é um processo inevitável e inexovel, e que, por implicação, resistir a ela é
inútil e que qualquer asseão física, aqui e agora, sobre o corpo humano está certamente
fora de moda. As implicações da emergência desse senso comum o imensas. Capazes
de moldar temas tão diversos como tributações, legislação trabalhista, volume de gastos
com seguridade social, direitos de privacidade, políticas ambientais, essas noções servem
para legitimar uma nova agenda política e preparar o terreno para uma nova fase de
acumulação do capital.
Em resumo, a EC, com forte auxílio do avao tecnológico, especialmente da internet,
vem deixando muitos problemas para os Estados, seja relacionado à diminuição do
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recolhimento de impostos, seja de uma vasta gama de vicissitudes de ordem ambiental,
legal, sanitária, dentre outras.
No tocante ao trabalho, na esteira da EC, vivenciamos, como diz o próprio Slee (2017),
uma (nova) onda de trabalho precarizado, no qual diferentemente dos arranjos clássicos
do capitalismo, em que o capitalista é claramente o dono dos meios de produção e a
classe trabalhadora os utiliza para trabalhar. Na EC, o capitalista continua sendo o
detentor do principal meio de produção, nesse caso, a plataforma tecnológica, seja do
que for, mas os trabalhadores e as trabalhadoras precisam possuir ou alugar os insumos
necessários à execução do trabalho, como aparelho de telefone celular, carro,
motocicleta, bicicleta, sacola térmica, produtos de limpeza e tantos outros, a depender
do ramo de serviço em que atue.
Ainda precisa dispensar mais do que as oito horas diárias de trabalho que são cumpridas
em uma situão de emprego formal, caso queira ter um rendimento razoável para suprir
sua existência e/ou de seu grupo familiar. Consequentemente, a uberizão do trabalho,
no bojo da EC, tem, indubitavelmente, contribuído para a intensificação a precarização
das condições do trabalho, conforme já explicitado ao longo desta reflexão.
PALAVRAS FINAIS: PARA A CONTINUIDADE DO DEBATE
Partimos de algumas ideias acerca do que é trabalho oriundas de Marx e Engels, bem
como da literatura de orientação marxiana/marxista. Vimos que o caráter
sociometabólico do capital ofusca a dimensão ontológica e exacerba uma acepção
negativa do trabalho, em que para o capital atender a sua natureza expansionista,
precisa travar uma batalha com o trabalho, mantendo-o subsumido a si e a classe
trabalhadora subserviente e precarizada.
Discutimos acerca da evolução histórica do trabalho no modo de produção capitalista,
bem como algumas consequências para a classe trabalhadora, a partir da análise de
aspectos de seu modo de gestão: Taylorismo-Fordismo, Toyotismo e Economia do
Compartilhamento, modalidade econômica que carreou a uberização e a agudizão da
precarização do trabalho.
No entanto, entendemos não ser possível apresentar uma conclusão para essas
questões, haja vista que a problemática está longe de ser resolvida e não é estanque,
mas optamos por encerrar essa reflexão lançando algumas perquirições que podem
trazer alguma contribuição à continuidade do debate.
Slee (2017) chama a atenção para o fato de que cumprimos com três importantes papéis
em nossa vida ao consumirmos, trabalharmos e exercermos a cidadania. O autor alerta
que é preciso que haja coerência entre esses papéis. Deve-se atuar coletivamente em
favor de um contrato social para que não se engane a quem consome de forma que
tenham suas necessidades satisfeitas, que a classe trabalhadora não seja explorada e
tenham seus direitos garantidos, e os cidadãos e as cidadãs não tenham que arcar com
ônus sociais deixados por essas plataformas, conforme amplamente discutido ao longo
deste artigo.
Slee (2017) menciona que na indústria da tecnologia, nem sempre se considera que o
contrato social, nos moldes de coerência entre os pais sociais que exercemos, acima
descritos, seja algo importante. Concordamos com o autor por criticar explicitamente a
arrogância com a qual entusiastas das tecnologias atuam, ao defenderem que os
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aplicativos trazem em si a solução, por meio das tecnologias, para muitos dos problemas
socialmente gestados, dispensando as outras instâncias envolvidas, como o Estado, por
exemplo, o qual, em muitos ensejos, é encarado como um entrave, o que acaba por
incidir frontalmente contra a própria democracia. Slee denomina isso como
solucionismo, que aparenta dar soluções, mas, na prática, agrava o quadro social.
Em suma, é possível asseverar, com Huws (2017, p. 324), que o trabalho é o grande
produtor de valor para o modo de produção capitalista, ao passo que para a classes
trabalhadora, ou seja, a absoluta maioria da humanidade, permite que sua sobrevivência
seja possível, por isso de sua importância e centralidade. Assim, rememoramos que
cada período do sistema sociometabólico do capitalismo, em nome da acumulação
contínua, procurou, a sua maneira, realizar da forma mais eficaz possível a expropriação
do trabalho da classe trabalhadora, sendo que imperativos éticos o se constituem em
entraves para tal, até desembocar na precarização maximizada das condições do
trabalho pelas vias da uberização, por meio da EC.
O que prognosticar para o futuro do trabalho e das pessoas que dele dependem para
(sobre)viver? Evocamos novamente Marx e a ideia de que a história não ocorre de forma
determinística, mas é construída pela luta de classe. Logo, o futuro vai depender, de
acordo com Slee (2017), das nossas atitudes e da nossa ação acerca do entrelamento
dos três papéis sociais que exercemos como consumidores/as, trabalhadores/as e
cidadãos/ãs.
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Data da submissão: 25/01/2021
Data da aprovação: 09/12/2021