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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.29276
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
TÉCNICO EM ENFERMAGEM: ASPECTOS SOBRE TRABALHO E
PROFISSÃO
1
Nursing technician: aspects on labour and profession
GAWRYSZEWSKI, Bruno
2
BOVOLENTA, Marília Bittencourt
3
FARIAS, Maria Eduarda Araújo de
4
RESUMO
A categoria profissional doscnicos em Enfermagem é a maior força de trabalho da área da saúde,
bem como é o curso técnico de vel dio com o maior quantitativo de matrículas no estado do Rio
de Janeiro. O objetivo do presente texto foi o de investigar aspectos referentes ao trabalho e a profissão
dos Técnicos em Enfermagem. O quadro teórico considerado se deu em diálogo com referências da
Sociologia do Trabalho, a fim de caracterizar o atual mundo do trabalho, bem como em pesquisas da
Enfermagem e Saúde Pública que ajudaram a caracterizar a reconstituição histórica do trabalho,
profiso e formação técnica em Enfermagem. Para responder aos objetivos do texto, foi realizada uma
pesquisa emrica a partir de 16 entrevistas semiestruturadas com professores de escolas técnicas e
representantes da Enfermagem, em que foram abordados temas como a atual conjuntura que perpassa
o mercado de trabalho, as condições de trabalho e conflitos no exercício profissional, o prestígio e
reconhecimento social e a marcante feminização das trabalhadoras da área. Concluiu-se que o
exercício profissional ainda apresenta traços de continuidade da ppria nese da profissão e que as
condições de trabalho eso em conformidade com a tendência de precarização estrutural que marcam
a nova morfologia do mundo do trabalho.
Palavras-chave: cnico em Enfermagem. Trabalho e Educão. Educação Profissional
ABSTRACT
The professional category of Nursing Technicians is the largest workforce in the health area, as well as
the high school level/degree technical course with the highest number of enrollments in Rio de Janeiro
state. The objective of the present paper was to investigate aspects related to the work and career of
Nursing Technicians. The theoretical framework considered was in dialogue with references from Labour
Sociology, in order to characterize the current world of work, just as in research from Nursing and Public
Health which helped to characterize the historical reconstitution of work, profession and vocational
formation in Nursing. Concerning to answer the objectives of this paper, an empirical research was
carried out from 16 semi-structured interviews with teachers from vocational schools and representatives
of Nursing, in which themes such as the current conjuncture that permeates the labour market, the
working conditions and conflicts in the professional exercise, the prestige and social recognition and the
1
O presente texto apresenta alguns dos resultados de um projeto de pesquisa que passou pela avalião do Comitê de
Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem apoio do
Programa de Iniciação de Bolsas de Iniciação Científica da mesma universidade e da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
2
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduão em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrante do Coletivo de Estudos em
Marxismo e Educação (COLEMARX). E-mail: brunogawry@gmail.com
3
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Licencianda em Ciências Sociais pela
Universidade Federal Fluminense. Integrante do Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX). E-mail:
mariliabittencourtbovolenta@gmail.com
4
Licencianda em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Integrante do Coletivo de Estudos em
Marxismo e Educação (COLEMARX). E-mail: dudafarias2000@gmail.com
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remarkable feminization of the female workers in the area were approached. It was concluded that the
professional exercise still presents traces of continuity of its own profession’s formation and that the
conditions of work are in conformity with the tendency of structural precarization that mark the new
morphology of the world of the work.
Keywords: Nursing Technician. Work and Education. Vocational Education.
INTRODUÇÃO
É de amplo conhecimento que a Enfermagem compõe a maior força de trabalho da área
da saúde e, mais especificamente, os Técnicos em Enfermagem
5
, que contabilizam em
torno de 53% do setor ocupacional da saúde (OPAS, 2020). Dentre esse universo, de
acordo com a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil (PEB), 84,7% da força de
trabalho em Enfermagem é composta por trabalhadoras do sexo feminino (MACHADO,
2017)
6
e que estão presentes nos três níveis de complexidade das atividades prestados
pelos serviços de atenção à saúde. Essas trabalhadoras passam por inúmeras situões
que envolvem as relações com o trabalho, como a autorrealização e/ou frustrão
profissional, as condições materiais para realização de seu trabalho, o reconhecimento
(ou a falta de) por parte de seus pares, pelos pacientes e a sociedade em geral, enfim,
questões que perpassam a luta por obter dignidade profissional.
Contudo, embora haja particularidades da área da saúde, também não é possível
dissociar que possíveis transformações no exercício da profissão de Enfermagem
estejam caminhando em passo semelhante às transformações do mundo do trabalho
em geral. Dessa forma, a chamada nova morfologia do mundo do trabalho (ANTUNES,
2018) vai desenhando novos contornos às ocupações laborais, resultado da luta de
classes e das especificidades de cada categoria profissional com as relações sociais de
produção. Ou seja, queremos salientar de que essas possíveis transformações não
decorrem meramente de uma inevitável inserção de novas tecnologias digitais ou de
gestão de pessoas, mas em como os processos produtivos são organizados a atender
as finalidades a que são destinadas, sob os desígnios do modo de prodão capitalista,
que tem como alguns de seus pressupostos, a propriedade privada e sua consequente
apropriação da riqueza gerada para os proprietários, a perseguição do acúmulo e
expansão de capital por meio do lucro obtido atras da extrão da mais-valia sobre os
trabalhadores e, para finalizar, por meio do trabalho alienado e da divisão social do
trabalho, que cinde a relação do trabalhador com a sua atividade de trabalho.
Por sinal, a divisão social do trabalho é um aspecto que nos parece caro à Enfermagem,
na medida em que é uma profissão que convive com uma força de trabalho, como já
dito, numerosa, mas que conta com mais do que o triplo de trabalhadoras de nível médio
do que de nível superior, sendo 77% de auxiliares e técnicas em Enfermagem e 23% de
Enfermeiras (MACHADO, 2017). Essa composição do quantitativo demonstra que há
uma divisão técnica do trabalho na Enfermagem, por conta das atribuições diferenciadas
a partir do nível de complexidade atribuído a cada profissional, considerando o seu grau
de escolarização. No entanto, a divisão meramente técnica de funções coloca um
5
No presente texto, eventualmente utilizaremos o gênero feminino quando quisermos enfatizar de que se
trata de uma categoria profissional majoritariamente feminina.
6
A pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil foi realizada por iniciativa do Conselho Federal de Enfermagem
e da Fundação Oswaldo Cruz, baseado em dados de 2013, numa abrangente amostragem de 35 mil
profissionais em mais de 2 mil municípios brasileiros.
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desafio nas relações de trabalho, na medida em que a especialização das ocupações
reverbere numa cisão do trabalhador com a sua atividade de trabalho, sobretudo aqueles
que estão empregados como técnicos, que estão mais distantes das funções de
planejamento, controle e supervisão do trabalho, mais a cargo das profissionais de
Enfermagem de formação em nível superior.
Inicialmente, através do Censo Escolar de 2018, foi possível identificar que o curso de
Enfermagem não apenas tinha a maior oferta de curso cnico de nível médio no estado
do Rio de Janeiro, mas como o número de matrículas (43.823) correspondia a quase o
quádruplo do segundo colocado, o curso de Administração (INEP, 2019)
7
. Tal
constatão levou a equipe direcionar seu olhar em buscar compreender os fatores que
levava a tal condição. Para tanto, foi decidido contratar profissionais de educação dessas
escolas formadoras, bem como pessoas e entidades de referência da Enfermagem. Ao
dar voz a esses sujeitos, os proponentes da pesquisa os convidaram para que
analisassem e avaliassem aspectos relacionados ao trabalho e a profissão, conferindo
um particular olhar para o Técnico em Enfermagem, transformando-se no objetivo geral
do texto. Esses aspectos foram conduzidos através de análises e avaliações acerca do
propósito da profissão, a possível divisão e conflitos no exercício das funções laborais
entre técnicas e enfermeiras, a marcante feminização das trabalhadoras da área, seu
prestígio social e a atual conjuntura que perpassa o mercado de trabalho.
Desse modo, o trabalho está organizado de tal forma: na primeira seção, discutimos um
breve panorama acerca das atuais condições do mundo do trabalho; a seguir, tratamos
do histórico da categoria dos Técnicos em Enfermagem, ressaltando aspectos que
perpassam o histórico da formão, do campo de trabalho e do exercício profissional;
posteriormente, realizamos a exposição dos aspectos metodológicos e os resultados da
própria pesquisa empírica em si; e por fim, as considerações finais.
BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O ATUAL MUNDO DO TRABALHO
Partimos do pressuposto de que o como desvincular a fragilização das relações
trabalhistas com as sucessivas crises do capitalismo contemporâneo que, no
impedimento de serem definitivamente dirimidas, precisam recorrentemente de ajustes
para serem mitigadas, materializando o que Mészáros (2002) denominou como crise
estrutural do capital. Não temos pretensão em nos alongar nas respostas do capital para
dar conta de sua crise estrutural, tarefa esta que já foi muito bem desempenhada, por
exemplo, por Antunes (2002) que, ao analisar o esgotamento do taylorismo-fordismo e
da matriz de política econômica keynesiana nos países capitalistas centrais, mostra a
deflagração do capital em constituir outras formas de gestão no processo de produção,
no que tem sido chamado por toyotismo, pós-fordismo, acumulação flexível, dentre
outras denominações, mas também uma ofensiva do capital em corroer as bases de
qualquer regulamentação das relações de trabalho.
Nesse sentido, queremos ratificar que tem ocorrido uma intensificação no grau de
exploração sobre a classe trabalhadora, incorporando novas formas de extração de
trabalho excedente, que reverberam processos no que Alves (2013) denomina como
precarizão estrutural do trabalho, no sentido de que é imputada à classe trabalhadora
7
O desempenho dessa tarefa foi de autoria de Thayse Gomes, a quem agradecemos imensamente a
colaboração
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pela burguesia, mecanismos que atuem como contratendência à crise de valorização
produtiva do valor. Desse modo, a precarização do trabalho contribui para que a extração
de mais-valia absoluta e relativa assumam formas materiais novas, sobretudo,
incorporando as novas tecnologias digitais.
Nesse sentido, podemos citar as formas assumidas pela informalidade, por meio da
inexistência de proteção ou regulamentação por parte do Estado (o que implica tanto em
ausência de direitos quanto em condições concretas como as atividades por conta
própria/não-assalariadas); terceirização, uma forma de subcontratação para a prestação
de serviços entre duas empresas, em que a força de trabalho geralmente está sob
condições de maior exploração e a intensificação da jornada, inclusive, no Brasil,
assumindo formas mais contemporâneas e precárias como a pejotização, em que se
procura descaracterizar o vínculo empregatício atras de um contrato entre a empresa
contratante e a empresa do trabalhador, muitas vezes uma empresa de si mesmo; pela
expansão de formas de trabalho morto materializado por controle através das
tecnologias digitais pelo trabalho intermitente ou também chamado uberizado, uma
modalidade em que os trabalhadores estejam permanentemente à disposição para a
execução e remuneração de cada tarefa realizada, sem que haja qualquer garantia de
sua execução e ainda sob às custas do próprio trabalhador para manutenção de suas
despesas com deslocamento, material de trabalho, vestuário e qualquer consequência
ocorrida como acidente de trabalho; ou, por fim, ainda o teletrabalho ou home office, que
ganhou maior notoriedade no ano de 2020 por conta da crise sanitária de pandemia pela
Covid-19 e diz respeito às atividades laborais realizadas em ambientes fora da empresa,
comumente na própria resincia do trabalhador (ANTUNES, 2018).
Todas essas formas costumam ser apresentadas sob o corolário da flexibilidade. Em
tempos pretéritos, no auge da Revolão Industrial, a classe trabalhadora dos países
industrializados, ao ser aviltada com jornadas longas, exaustivas e repetitivas, enfrentou
e conseguiu algumas conquistas no sentido de diminuição e regulamentação da jornada
de trabalho. No entanto, conforme chama a atenção Dal Rosso (2017), no caso de
países que sequer passam por revoluções industriais clássicas (realizadas através de
uma revolução com ascensão de uma burguesia nacional como classe dominante e com
protagonismo de forças produtivas nacionais), como o Brasil, prevalecem jornadas de
trabalho superior à dos países capitalistas centrais e não cessam de surgir propostas
para modernizar e flexibilizar as relações trabalhistas entre patrões e empregados. A
promessa, portanto, é de que seguindo o mesmo caminho dos países capitalistas
centrais que já aprovaram modificações legislativas nesse sentido (a despeito de
desconsiderar contextos histórico-sociais), o Brasil teria condições de alavancar o
crescimento econômico e retomar a contratação de trabalhadores. Sob essa justificativa,
em 2017, duas legislações que compunham a pauta trabalhista foram aprovadas: a lei
nº 13.429/2017, conhecida como Lei da Terceirização; e a lei nº 13.467/2017,
denominada como Reforma Trabalhista. Resumidamente, a primeira permite a
universalização da terceirização, antes restrita apenas às ocupações consideradas como
meio e não como fim da atividade de determinada empresa (por exemplo, um docente
em relação a uma escola); a segunda, é mais abrangente e termina por modificar
diversos dispositivos previstos pela Consolidação das Leis do Trabalho, mas que, em
suma, versa que os acordos individuais ou coletivos possam prevalecer sobre o
conteúdo previsto em lei, e por isso, caracterizado por seus defensores como flexível.
Mais recentemente, no contexto da Covid-19, em 2020 foram legalizadas em caráter de
excepcionalidade, a pretexto do estado de calamidade pública, a Medida Provisória 936,
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depois convertida na lei nº 14.020/2020, que possibilita a interrupção simultânea da
prestação de serviços e o pagamento de salários, sem que haja quebra do vínculo de
emprego ou também a diminuição de salário proporcional à diminuição da jornada de
trabalho, dentre outras minúcias. Não sendo objetivo examinar o conteúdo das
legislações supracitadas, o fundamental é que elas expressam a concepção de mundo
da classe dominante para intensificar a exploração sobre a classe trabalhadora.
TRABALHO, FORMAÇÃO E PROFISSÃO DO TÉCNICO EM ENFERMAGEM NUMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA
Os cursos técnicos em Enfermagem passaram a existir a partir da década de 1960 e a
regulamentão dessa categoria profissional, somente na década seguinte. Antes disso,
a formação e a profissão de Enfermagem no Brasil foram iniciadas pelo Decreto nº 791
em 1890, quando da crião da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras,
atualmente Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, pertencente à Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), que teve inicialmente o ensino sob
responsabilidade de médicos (OGUISSO, 2001).
Até aquele momento, no alvorecer da Reblica, as iniciativas de formação profissional
da força de trabalho brasileira não-escravizada estavam dirigidas ao aprendizado de
ofícios artesanais ou na manufatura, por meio de iniciativas isoladas e muito
parametrizadas pela ideologia edificante do trabalho como força-motriz do
desenvolvimento do país, como uma pedagogia preventiva e corretiva às criaas e
adolescentes órfãos e/ou apenados e ainda para evitar a disseminação de ideias
contrárias à ordem política. Somente através do Decreto nº 7.566/1909, do presidente
Nilo Peçanha, é que se instituiu uma ação nacionalizada para a formão da força de
trabalho da classe trabalhadora, através da criação de 19 Escolas de Aprendizes
Artífices em todo o país, visando a formação de operários, mediante ensino prático em
cursos como Alfaiataria, Funilaria, Marcenaria, Sapataria ou Serralharia, dirigida à classe
trabalhadora desfavorecida da fortuna, conforme os termos da lei (CUNHA, 2005).
Pode-se inferir que o que veio a ser chamado como Educação Profissional já nasceu
sob a designação de uma trajetória educativa diferenciada calcada na classe social.
Semelhante constatação pode-se evidenciar no recrutamento dos primeiros estudantes
da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras, na qual a forma de ingresso e
permanência na Escola não fazia maiores exigências de escolaridade, os quais tinham
a possibilidade de recebimento de bolsas de auxílio como remuneração. Conforme
enfatiza Stutz (2010, p. 349) O exercio da profissão estava, dessa forma, voltado para
o saber fazer de modo simples..., o que já demarca a estratificação do trabalho de servir,
considerado inferior.
Gradualmente a profissão foi se consolidando, por exemplo, com a fundação da Escola
de Enfermagem Anna Nery (atualmente unidade da Universidade Federal do Rio de
Janeiro) em 1923, com a criação da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) em
1926 e pela promulgação do Decreto 20.109/1931, que, além de reconhecer a Anna
Nery como escola modelo para o país, tratou também de regulamentar pela primeira vez
o exercício profissional da Enfermagem (OGUISSO, 2001).
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Nas décadas de 1940 e 1950, a não ser por eventuais exceções das chamadas leis de
equivalência
8
, a conclusão dos cursos técnicos do então chamado ensino secundário
(equivalente ao atual segmento dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino
Médio)o concedia aos concluintes a permissão para que pudessem pleitear acesso
aos cursos de graduação. Nesse contexto, a criação dos primeiros cursos de auxiliares
de enfermagem ao longo da década de 1940 se nivelou como uma ocupação em caráter
terminal aos seus concluintes. O Decreto nº 27.426/1949 veio a estipular a durão de
quatro anos para o curso de Enfermagem e 18 meses para Auxiliar, ambos exigindo
certificado de conclusão do curso ginasial (equivalente aos anos finais do Ensino
Fundamental) (PINHO et al, 2018).
Adiante, se deu a aprovação de uma nova lei específica sobre o exercício profissional da
Enfermagem, a lei 2.604/1955, que definiu as ocupações que poderiam exercer a
Enfermagem, regulamentando as auxiliares de enfermagem, parteiras e enfermeiras
práticas (OGUISSO, 2001). Essa medida formalizou a divisão do processo de trabalho
em Enfermagem, o que permitiu ampliar a força de trabalho recrutada, reduzindo as
exigências de formão para as ocupões voltadas à assistência, através de um
mecanismo de regulação mercantil dos salários pagos em um contexto de expansão dos
serviços de saúde. Nessa conjuntura, a ABEn encampou apoio a iniciativas, como a
criação de outros órgãos representativos da área, que vieram a ser fundados na década
de 1970 (no caso, o sistema COFEn/COREn, o Conselho Federal e os Regionais de
Enfermagem –– e os sindicatos da Enfermagem), bem como pelo reconhecimento em
dotar a Enfermagem como uma área com saberes técnico-científicos próprios.
A promulgão da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em
1961, além de promover a equivalência e articulação do ensino secundário de cunho
técnico para fins de acesso aos cursos de graduação, também possibilitou que cursos
técnicos que não estivessem especificados pela lei (como os de Enfermagem)
pudessem ser regulamentados pelos diferentes sistemas de ensino. Tal fato propiciou
que cursos técnicos, como os das escolas Anna Nery e Luíza de Marillac, pudessem ser
criados em 1962, quando foi regulamentado que a função de Enfermeira passasse a
exigir o nível superior e que o curso técnico em Enfermagem estivesse equiparado ao
nível médio (OGUISSO, 2001).
No ano de 1968, já em plena vigência da ditadura empresarial-militar, o curso de
Licenciatura em Enfermagem foi criado através do Parecer nº 837/1968 do Conselho
Federal de Educação, de modo que o profissional formado poderia lecionar disciplinas
no âmbito do 1º e 2º graus (atuais Ensino Fundamental e Médio) concernentes à
Enfermagem, como Higiene e Programas de Saúde. No entanto, considerando a quase
inexistência de vagas para esse trabalho no ensino de 1º e 2º graus da época, tais
profissionais dirigiram seus esforços para ocupar os cursos formativos de Auxiliares e
Técnicos em Enfermagem como campo de trabalho (BAGNATO, 1994).
A promulgação da Lei nº 5.692/1971 instituiu a compulsoriedade da formação técnica
para os estudantes do então grau. Pareceres posteriores determinaram que a
habilitação para a formação de Técnico em Enfermagem tivesse um mínimo de 2.760
horas, enquanto para o curso de Auxiliar em Enfermagem, 2.200 horas. Ambos os
8
Foi um conjunto de leis promulgadas na década de 1950 que, gradualmente, passaram a permitir que os
concluintes de determinados cursos técnicos de ensino secundário pudessem pleitear uma candidatura nos
exames de acesso aos cursos de graduação.
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cursos estavam nivelados ao então 2º grau, embora a certificação do curso de Auxiliar
pudesse ser obtida por exames supletivos ou em cursos de qualificação profissional que
não conferisse direito a prosseguimento nos estudos em nível superior, diferente do
Técnico em Enfermagem (OGUISSO, 1977).
Desse modo, a divisão do trabalho ganhava contornos cada vez mais robustos e
reforçava a hierarquização e o desnivelamento no acesso ao conhecimento dos
profissionais da área, de tal modo que coexistiam naquele momento, as enfermeiras
(profissionais com nível superior), técnicas e auxiliares (1º e 2º graus) e atendentes
práticas (que não estavam atreladas a uma qualificação escolar mínima), sendo que o
último segmento foi o que predominou por cadas no Brasil. De acordo com dois
estudos realizados pela ABEn (em 1958 e 1983, o último em parceria com o COFEn),
mostrou que no intervalo de 25 anos, embora a força de trabalho na Enfermagem tenha
adquirido maior qualificação formal, ainda em 1983, predominavam os atendentes de
Enfermagem. Na pesquisa da década de 1950, as enfermeiras correspondiam em torno
de 11%, auxiliares, 4% e atendentes, 84%. No levantamento de 1983, o quadro já
incorporava a existência do curso técnico em Enfermagem e a distribuição proporcional
foi de 8% de enfermeiras, 6% de técnicas, 21% de auxiliares e 63% de atendentes. Ou
seja, a categoria de atendentes ainda se constituía na base da pirâmide da força de
trabalho em Enfermagem, ainda que os cursos técnicos e superiores tivessem se
expandido progressivamente (BAGNATO, 1994).
Ainda no que tange ao estabelecimento da profissão de Enfermagem, um marco
legislativo para os profissionais da área foi a promulgação da Lei nº 7.498/1986 e do
Decreto nº 94.406/1987, que vieram a substituir as então leis vigentes para o exercio
profissional das décadas de 1950 e 1960. Ambas dispõem sobre o exercício em
Enfermagem e, na forma legislativa, define até o presente momento, as atribuições a
cada profissional da área (Enfermeiro, Técnico em Enfermagem, Auxiliar em
Enfermagem e Parteiras).
Ainda nesse período histórico, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) esteve
inserida no contexto de intensa mobilização popular em torno da disputa para referendar
um projeto de saúde pública, gratuita e universal (não sem discordâncias sobre como se
daria esse processo) e que, em última instância, revelava uma disputa por projetos de
sociedade nas discussões em torno da nova Constituição Federal de 1988. Embora
tenha sido possível garantir a criação do SUS e de referendar direitos em caráter
universal, como a própria educação, a conjuntura histórica da cada seguinte
reverberou os ecos advindos do avao do neoliberalismo, o qual trouxe umarie de
novas determinações ao processo histórico da implementação de políticas públicas,
como a criação de instrumentos legislativos que asseguraram a participação de
entidades privadas, tais como as Organizações Sociais (OS), na prestação de serviços
públicos.
No que tange à política para a educação profissional como um todo, além da publicação
do Decreto nº 2.208/1997 no ano seguinte à LDB (1996), além de separar o ensino médio
regular da educação profissional como cursos integrados
9
, preconizava um ideal de
formação por competências e o exercício prático das ocupações laborais, balizados na
9
Medida revertida com o Decreto 5.154/2004, já sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010)
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pretensão de conferir empregabilidade
10
aos trabalhadores. No campo da Enfermagem,
o Programa de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (Profae)
teve como objetivo promover qualificação profissional e escolarização regular a
profissionais que exerciam a profissão como auxiliares e técnicas em Enfermagem.
Ramos (2010, p. 52) destaca que no Profae buscou-se (re)construir a não de
competência numa perspectiva contrária àquela que tem predominado na organizão
de sistemas de competências profissionais de corte funcionalista e condutivista, de
modo a alinhar a qualificação profissional com os processos de trabalho, mas que na
tentativa de superar o tecnicismo ou conteudismo do ensino, não houve um
aprofundamento epistemológico ou político sobre o sentido da Educação Profissional, o
que limitou o alcance do programa.
Para finalizar a são, julgamos importante sinalizar com algumas considerações gerais
de algumas especificidades do campo da saúde. O patamar regressivo das políticas
públicas têm circunscrito cada vez mais a uma concepção de saúde como mercadoria,
absolutamente diverso do contexto histórico de criação do SUS. Essa constatação parte
da materialidade em movimento concomitante de privatização e mercantilização da
saúde e de subfinanciamento dos serviços públicos. Vieira (2020) mostra que o gasto
público com a saúde no Brasil tem perdido ordem de grandeza por conta dos efeitos de
restrição de investimentos por conta da Emenda Constitucional 95
11
, sendo de apenas
US$ 606 per capita, o que significa metade do que é investido no Chile, país que tem um
sistema de proteção social deveras limitado. De outra parte, é possível apontar que o
mercado de planos de saúde privado se expandiu no Brasil não por conta da suposta
eficiência da atuação das empresas, mas mediante a aplicação de uma série de
incentivos por parte do Estado brasileiro, o que incluiu financiamento a juros negativos
para a construção de instalões hospitalares e para a compra de equipamentos
médicos, enquadramento de empresas privadas lucrativas como estabelecimentos
filantrópicos e estabelecimento de normas jurídicas que abriram mais possibilidade para
a venda de serviços privados (OCKÉ-REIS; ANDREAZZI; SILVEIRA, 2006). Citamos
como exemplo a promulgação da lei nº 13.097/2015 que permite a participação direta ou
indireta de capital estrangeiro nos serviços de assistência à saúde, reforçando a
tendência à formação de oligopólios financeirizados no controle das empresas
prestadoras de serviço, como o ilustrativo caso da Amil, que atualmente é controlado
pelo grupo de origem estadunidense United Health. Portanto, é nesse cenário regressivo
que os profissionais de saúde precisam estabelecer seus vínculos de trabalho e colher
suas perceões.
A PESQUISA EMPÍRICA
Os resultados aqui expostos se referem a uma etapa do projeto da pesquisa que foi
submetido e aprovado por um comitê de ética em pesquisa na Plataforma Brasil através
do parecer sob o nº 2.224.740, em junho de 2017, uma vez que acarreta interação direta
com seres humanos. Conforme estabelecido e pactuado com os sujeitos entrevistados
10
Empregabilidade aqui como sentido ideológico por ocultar as transformações decorrentes do pado de
acumulação toyotista e do neoliberalismo, atribuindo aos processos de qualificação profissional a capacidade
de tornar os trabalhadores aptos a assumir os novos postos de trabalho (RODRIGUES, 1997).
11
A Emenda Constitucional 95 só permite o aumento de investimentos primários no Oamento Anual,
desde que estes não ultrapassem o percentual inflaciorio do ano anterior.
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ficou garantido o anonimato tanto dos sujeitos entrevistados, como de suas respectivas
instituições, excetuando as instituições dirigentes da categoria uma vez que são
referências da área e, por isso mesmo, elencadas como representativas e relevantes na
composição da amostra. Esta etapa da pesquisa, realizada entre os meses de julho e
agosto de 2020, necessitou ser adaptada ao ambiente remoto devido à gravidade da
condição pandêmica estabelecida pela disseminação do Covid-19.
Para atingir a finalidade da pesquisa, foram realizadas entrevistas com sujeitos
escolhidos a partir de seus vínculos trabalhistas ou representativos da área de
Enfermagem. A amostra buscou cobrir as representações da profissão de Enfermagem
localizadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Como representantes da área,
foram concedidas entrevistas por duas dirigentes do Conselho Regional de Enfermagem
(COREn), uma com formação em nível superior e outra com nível técnico; uma pela
ABEn, uma associação responsável pela profusão científica e cultural da categoria
profissional; um docente e pesquisador da Escola de Enfermagem Anna Nery (UFRJ),
totalizando quatro entrevistas
12
.
Quanto às instituições formadoras de Técnicos em Enfermagem, selecionamos uma
escola pública, cuja ênfase formativa integra a formação técnica ao ensino dio
(chamado de Ensino Médio Integrado); uma escola privada de referência, pertencente a
uma entidade nacional empresarial; uma escola privada, com sede em Nova Iguaçu e
com seis unidades na Baixada Fluminense; e uma escola privada, com sede em Duque
de Caxias e com oito unidades, sendo duas na Zona Norte e duas na Zona Oeste do Rio
de Janeiro e quatro na Baixada Fluminense. De cada escola, entrevistamos uma
coordenão de curso e dois professores, o que totalizou 12 entrevistas.
Para contemplar a representatividade da amostra foi pensada uma estratificação simples
de escolas a serem convidadas para a pesquisa, em que consideramos o perfil da oferta
de cursos técnicos pelos dados levantados na etapa da pesquisa anterior
(GAWRYSZEWSKI; MARQUES; LAVOURAS, 2019); também a localização geográfica,
garantindo uma maior variância na amostra considerando as diferenças espaciais na
organização do território nas regiões metropolitanas.
Para a seleção e contato com os sujeitos entrevistados, adotamos a técnica conhecida
como bola de neve, que se trata de uma técnica de amostragem não probabilística que
se utiliza de cadeias de referência para composição da amostra a partir de respectivos
contextos. Ou seja, a priori, nem todos os 16 sujeitos entrevistados estavam pré-definidos
de serem entrevistados, mas determinados informantes-chaves possibilitaram acesso
aos demais participantes (VINUTO, 2014)
13
. No caso do presente artigo, escolhemos
duas instituições de ensino por sua tradição formativa (a instituição pública e a instituição
privada de abrangência nacional), enquanto as outras duas escolas privadas foram
indicadas por representantes das entidades representativas que, por sua vez, indicaram
os respectivos coordenadores de curso. Uma vez contatada a coordenação do curso,
12
Tanto o Sindicato dos Enfermeiros do Estado do Rio de Janeiro (SindEnf RJ) quanto o Sindicato dos
Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Munipio do Rio de Janeiro (SATEMRJ) foram contatados por
telefonema e e-mail para que também fossem ouvidos como representações da área, mas ambos não
responderam ao nosso convite.
13
Sobre a escolha desta técnica, trata-se de uma solução adotada por pesquisas cujo objeto perpassa
classes e grupos consiste em uma amostragem não probabilística, em que o primeiro entrevistado indica um
novo participante até que o objetivo proposto seja alcançado.
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esta indicava dois professores. Solicitamos como critério de indicação dos professores
que um fosse mais recente na instituição e um com mais tempo de casa, bem como um
deles obrigatoriamente tivesse exercido a profissão de Técnico em Enfermagem. Desse
modo, atingimos 16 entrevistas semiestruturadas e o quadro a seguir apresenta, a fins
de identificação, os sujeitos da pesquisa e seus respectivos codinomes.
Quadro 1 Identificação dos sujeitos entrevistados
Atribuição
Instituição
Codinomes
Representação
COREn (Enfermeira)
Rep. Enf. COREn
COREn (Técnica)
Rep. Tec. COREn
ABEn
Rep. Enf. ABEn
Docência Ensino Superior
UFRJ
Rep. Prof. UFRJ
Coordenação de curso
Pública Integral
Coord. Pública Integral
Privada Nacional
Coord. Privada Nacional
Privada RJ
Coord. Privada RJ
Privada Baixada
Coord. Privada Baixada
Docência Técnico Nível Médio
Pública Integrada
Prof. Pública Integrada A
Pública Integrada
Prof. Pública Integrada B
Privada Nacional
Prof. Privada Nacional A
Privada Nacional
Prof. Privada Nacional B
Privada RJ
Prof. Privada RJ A
Privada RJ
Prof. Privada RJ B
Privada Baixada
Prof. Privada Baixada A
Privada Baixada
Prof. Privada Baixada B
Para as entrevistas fora elaborado um roteiro de perguntas prévias como um eixo de referência
para a condução das entrevistas, sem, no entanto, normatizar rigidamente o fluxo de falas e da
investigação. As perguntas versaram sobre as condições do mercado de trabalho, o prestígio e
reconhecimento social da profissão, a posvel divisão social do trabalho e a feminização da
profissão. É importante salientar que algumas questões não previamente pensadas ganharam
densidade a partir do próprio desenvolvimento do processo de pesquisa.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Quando instados a responder sobre como avaliam a oferta de oportunidades no campo de
trabalho para o Técnico em Enfermagem, diversos entrevistados entendem que a maioria dos
profissionais que procuram por emprego, incluindo egressos recém-formados, conseguem pelo
menos uma ocupação em um espaço de tempo razoável, sobretudo na época trágica de
pandemia, em que os serviços de atendimento de emergência cresceram consideravelmente.
A gente tem aluno que acaba a formação e no mês seguinte trabalhando. [...] Agora
mesmo, com a questão do Covid, a maioria das vagas nesses hospitais de campanha foram
ocupadas por recém-formados (Prof. Privada Nacional A)
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[...] é uma área muito fácil de você conseguir emprego (Prof. Privada RJ A)
O momento atual é muito diferenciado, pois abriram os grandes centros de cuidado direto
ao Covid (Coord. Privada Baixada)
O mercado, de forma geral, é muito bom (Coord. Privada Nacional)
Tal percepção pode ser atribuída por conta do quantitativo absoluto da força de trabalho da saúde,
que tem em sua maioria, trabalhadoras de Enfermagem, sobretudo técnicas. Segundo
a PEB, que tem dados de 2013, portanto, em um contexto econômico que estava mais
favorável à difusão do emprego formal, 84,3% das cnicas e auxiliares declararam que
estiveram empregadas nos últimos 12 meses (fora os 6,3% que não responderam).
Embora haja uma perceão imediata dos nossos entrevistados de que as pessoas
conseguem obter emprego na área da Enfermagem, dentre os 9,4% da PEB que
declararam ter vivido uma condição de desemprego, 61,9% entenderam que tiveram
dificuldade em arranjar outro emprego (MACHADO, 2017). Embora alguns dos
entrevistados da presente pesquisa entendam o mercado de trabalho como favorável,
foi também apontado que não necessariamente haja demanda de força de trabalho para
que todos obtenham emprego na área:Eles entram [no curso] pensando no emprego
porque acham que vão ter colocação no mercado de trabalho [mas] a gente sabe que
não tem aquela vaga para todo mundo” (Prof. Pública Integrada B).
Através dos dados abertos do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados
14
(CAGED), temos uma noção ampliada (ainda que difusa) do campo de trabalho dos
Técnicos em Enfermagem
15
. De acordo com o CAGED, em 2019, a ocupação que teve
na microrregião do Rio de Janeiro o maior quantitativo de admissões (8.075) em relação
ao de desligamentos (7.278) foi a de Técnico em Enfermagem, perfazendo o saldo de
797. A ocupação de Enfermeiro teve 2.714 em número de admissões, mas com os seus
2.667 desligamentos, teve um saldo positivo de apenas 47, ocupando a quarta
colocação. Em comparação a outras ocupações, a primeira e quarta colocações geral
de técnicos e enfermeiros os colocam na liderança na área de saúde.
Do ponto de vista da remuneração média, os dados do CAGED informam que a
ocupação de Técnico em Enfermagem obteve em 2019, a média anual de R$ 1.710,75
e a de Enfermeiro, R$ 3.558,32. Em comparação com outras ocupações cnicas de
nível médio, é uma remuneração média pouco superior ao de Técnico em Patologia
Clínica (R$ 1.511, 68) e bastante inferior ao de Técnico em Radiologia e Imagenologia
(R$ 2.420,52).
A remuneração aparece como queixa constante pelos entrevistados, bem como a
deterioração das condições de trabalho. O retorno proporcionado pelas entrevistas deu
a entender que o trabalho nas unidades de saúde padece de problemas de diversas
qualidades, o que inclui a sensação de desvalorização salarial, diminuição significativa
de concursos públicos, precarização dos vínculos trabalhistas, desgaste nas jornadas de
14
O Caged é um regime de registro permanente do quantitativo de admises e desligamentos sob o regime
do registro formal dos empregos sob a Consolidação das Leis do Trabalho. Ou seja, não abrange trabalhos
em regime de informalidade, no caso das técnicas em Enfermagem, como contratação de serviços de
atendimento dostico ou em empresas que não assinam a carteira de trabalho dos seus trabalhadores.
15
Dados consultados e disponíveis em: http://bi.mte.gov.br/bgcaged/caged_perfil_municipio/index.php
(quadro consolidado, movimentação agregada e nível ocupacional, compreendendo os meses de janeiro a
dezembro de 2019)
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trabalho e no deslocamento até/entre elas, escassez de estruturas de apoio e descanso
para as profissionais no local de trabalho, dentre outros.
O mercado oferece diversas oportunidades, porém a questão qualitativa deixa muito a
desejar. Existem muitas vagas, mas a qualidade das vagas, dos locais que oferecem,
condições de trabalho, estrutura etc. não o tão adequadas (Prof. Pública Integrada A)
O que a gente vê e aquilo que é apresentado normalmente logo que ele [o egresso do curso
técnico] se forma é que as unidades que não oferecem boa matéria-prima para o profissional
da Enfermagem trabalhar com tudo aquilo que ele aprendeu (Prof. Privada Baixada B)
[...] no dia a dia desses profissionais, ele não tem um sario digno, ele não tem durante as
atividades um lugar digno para o descanso como qualquer outro profissional. Pode verificar
que esses profissionais muitas vezes dormem no chão, no banheiro, numa bancada...
(Coord. Privada Nacional)
Os relatos sobre as condições de trabalho se alinham aos dados da PEB que
demonstrou as dificuldades no cotidiano do trabalho das cnicas e auxiliares em
Enfermagem: 64,2% se sentem em desgaste profissional decorrente da jornada de
trabalho e das elevadas exigências de cumprimento de metas; 39,4% não se sentem à
vontade para expressar opiniões e queixas; 60% não se sentem protegidas no ambiente
de trabalho; 27,3% já experimentaram alguma violência no trabalho, com destaque para
a violência psicológica; 11,9% sofreram acidentes de trabalho e 22% afastaram-se por
licença médica (excluindo licença maternidade) (apud CHINELLI; VIEIRA; SCHERER,
2019). Tais fatores promovem desmotivação e comprometimento da saúde mental e
física dos profissionais, com forte incidência de dor ou desconforto musculoesquelético
entre as trabalhadoras da Enfermagem, sobretudo na região lombar, pulsos e mãos,
coluna torácica e cotovelos (MAGNANO et al, 2010).
É unânime a crítica sobre a precariedade do vínculo trabalhista nas Organizações
Sociais (e/ou as fundações estatais/públicas de direito privado), gestoras dos
equipamentos públicos de saúde no Rio de Janeiro. Particularmente a capital fluminense
tem passado por severos transtornos por conta da gestão das Organizações Sociais nos
equipamentos públicos de saúde. A lei municipal das OS (Lei nº 5.026/2009), desde que
foi sancionada em maio de 2009, propiciou, de acordo com o rastreamento de Lima e
Bravo (2015), que entre 2009 e 2013, fossem repassados em torno de R$ 4 bilhões
(incluindo diversos termos aditivos que robusteceram esses repasses) para que as OS
gerissem e executassem serviços de saúde em unidades de saúde como Clínicas da
Família, equipes de Saúde da Família, Unidades de Pronto Atendimento (UPA),
programa educativo nas escolas (Saúde na Escola) e programa de pré-natal (Cegonha
Carioca).
Enquanto isso, segundo o Fórum Popular do Orçamento (2020), há uma queda quase
contínua do gasto público com saúde desde 2012, já que o orçamento liquidado
decresceu de pouco mais de R$ 5 bilhões para em torno de R$ 3,5 bilhões - até outubro
de 2020. Como se não bastasse, os profissionais de saúde contratados pelas OS há
anos não tem recebido seus salários de forma regular, seja por atraso no repasse por
parte da Prefeitura, seja por práticas irregulares/criminosas das Organizações Sociais,
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até que estas perderam o direito de gerir as unidades de saúde a partir de janeiro de
2020
16
. Segue as considerações dos entrevistados acerca das OS.
Pra eles hoje [os estudantes], a primeira inserção deles, infelizmente, são nessas OS. É o
mais fácil de eles entrarem, só que profissionalmente isso não é bom pra eles, porque [são
empregos] que não primam pela qualidade. [...] Normalmente eles são apresentados à
nossa profissão de uma forma muito ruim (Prof. Privada Baixada B).
Com a delegação do estado brasileiro, a lei 8080 [a lei orgânica da saúde], em que diz que
saúde é um direito de todos e dever do Estado. O que o Estado Brasileiro fez? Começou a
delegar a atribuição dele de assistência as Organizações Sociais. E aí viu o que a gente tá
vendo hoje? Uma delegação sem fiscalização. [...] uma evasão e hoje a gente tem muito
sedimentado a questão de precarizar vínculo (Rep. Enf. COREn).
Então, quando nós temos as Organizações Sociais diante disso, eu ousaria a dizer que ela
tem uma intencionalidade. Primeiro, é fortalecer o cenário do campo privado sobre o público.
E o segundo é o controle social às avessas [coagindo os trabalhadores]. [...] E isso atinge
diretamente o mundo do trabalho dentro do próprio campo da Enfermagem. Desvalorização
da profiso, tanto no campo financeiro quanto no campo objetivo da organização simbólica,
no caso da categoria (Rep. Prof. UFRJ).
Sem embargo às considerações acima, não queremos enquadrar as críticas a partir da
qualificação apenas como má gestão e que poderia ser resolvida com organizações
idôneas e fiscalização eficiente, mas sim como nociva a privatização das unidades de
saúde, o que inclui a terceirização, do atendimento e da gestão na saúde, pois tais
medidas estão pautadas na captura do fundo público para acumulação e reprodão de
capital, que além de prejudicar a qualidade do serviço à população, precariza as relações
de trabalho dos profissionais de saúde contratados. Além do mais, o repasse às OS se
pauta em pressupostos complementares de redução do investimento público, suposta
eficiência da gestão privada e capitalização dos serviços de saúde. O repasse da gestão
pública da saúde a empresas privadas que criam suas Organizações Sociais a partir da
fachada de instituições não-lucrativas
17
se vale da própria legislação para burlar termos
de contratos, auferir maiores repasses com termos aditivos e utiliza a própria existência
do equipamento público de saúde para atender pacientes em regime de serviço privado
(ANDREAZZI; BRAVO, 2014; DRUCK, 2016).
Portanto, diante de um quadro em que o eldorado dos concursos públicos para a área
da saúde tem sido cada vez mais distante e o tradicional emprego formal por contratação
direta, embora ainda seja numeroso, tem sido alvo de mecanismos de precarização dos
vínculos trabalhistas, com vistas às empresas reduzirem os seus custos com a
manutenção de força de trabalho. Nesse sentido, outras formas de trabalho têm sido
aventadas como possibilidade de remuneração aos Técnicos em Enfermagem, no caso,
relacionadas à necessidade de cuidados com as pessoas, em que o mais citado entre
os entrevistados foi o cuidado domiciliar (home care). É possível encontrar com certa
facilidade anúncios com oferecimento desses serviços na internet por empresas, muitas
delas de propriedade de enfermeiras/os, embora no senso comum a prática do cuidado
domiciliar nem sempre ser atribuída a algum grau de profissionalização da pessoa que
16
Logo após tomar posse de seu terceiro mandato como prefeito, em janeiro de 2021, Eduardo Paes,
implementador das OS no município em 2009, iniciou as tratativas para devolução das unidades de saúde
às Organizações Sociais.
17
A Rede DOr São Luiz, presente em quatro estados e responsável por uma rede de hospitais privados no
Rio de Janeiro, mantém uma OS, o Instituto DOr, gestor do Hospital Estadual da Criança, por exemplo.
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vai cuidar de outrem. A fala do entrevistado Prof. Privada Baixada A atesta:[...] alguns
alunos começaram como cuidador e aí depois fazem o curso de Técnico de
Enfermagem, que são profissões totalmente distintas, apesar de algumas pessoas
confundirem e acharem que são a mesma coisa.
Contudo, apesar do cuidado domiciliar aparecer como alternativa em relação à escassez
de concursos públicos e a precarização dos vínculos trabalhistas formais, não há
qualquer indício de que a relação de trabalho em cuidado domiciliar seja melhor, mas
sim como uma alternativa remunerada ao emprego nos sistemas de saúde ou até como
uma segunda fonte de renda. Por sinal, mesmo que o filão de cuidados domiciliares
aparentemente se apresente como um campo de trabalho emergente, quando analisada
a inserção profissional dos Técnicos em Enfermagem no Brasil, a PEB aponta que as
atividades profissionais formalizadas como home care ou similares por se declararem
como autônomos, somados os dois, o quantitativo chega a módicos 4% da dia
brasileira (MACHADO, 2017), o que desfaz a sua aparente generalização.
Todas essas ponderações sobre o mercado e as condições de trabalho deram o tom,
predominante entre os entrevistados, de que as ocupações da Enfermagem
(percebemos que nem sempre os entrevistados faziam uma distinção entre as
categorias específicas), carecem de prestígio/reconhecimento social. Tal constatação foi
evidenciada pelos depoimentos, mesmo que tenham ressaltado que a Enfermagem seja
uma profissão imprescinvel para o funcionamento de qualquer sistema de saúde,
devido a atuão dos profissionais nas diversas dimensões do atendimento.
É muito difícil, né? A sociedade tem muito essa ideia de que a saúde é a medicina. Então,
eu acho que é uma profissão que deveria ter um reconhecimento maior do que têm.
Reconhecimento que eu falo não é só de reconhecer, de bater palma, não. Eu falo de
condições de trabalho, condições salariais. Eu acho que ainda falta muito isso. Agora, por
outro lado, reconhecem a importância da Enfermagem (Prof. Privada Nacional A)
Se a gente comparar o surgimento da enfermagem quando surge como profiso e a nossa
caminhada até os dias atuais, prestígio é tudo que a profissão não dá, não oferece e é tudo
que não é reconhecido [...]. Hoje eu exerço uma profiso, eu preciso de conhecimento
científico, eu preciso que me reconheçam por isso e não pelos meus dons, não pelo dom de
cuidar, mas pela capacidade de cuidar. (Prof. Privada Baixada B)
Ao mesmo tempo, e entendemos que não de forma contraditória, há a percepção de
que, a depender da origem de classe do estudante, a inserção no mercado de trabalho
em uma profissão qualificada pode vir a representar uma possibilidade de ascensão
social, na medida em que a obtenção de um diploma seria encarada como uma melhoria
de vida a esse sujeito, na busca por sua subsistência e maior retorno salarial do que teria
sem concluir um curso cnico.
O reconhecimento social vai variar muito, eu acho que varia um pouco Por exemplo, a
nossa escola é na Baixada Fluminense, não por ser na Baixada Fluminense, mas numa
região de periferia em Nova Iguaçu. Eno, para os moradores dali, se hoje as famílias não
possuem curso superior, fazer o técnico em Enfermagem ali vai ser uma ascensão social
para aquela pessoa, de repente até mesmo ter um emprego formal (Prof. Pública Integrada
B)
[...] a classe pauperizada procura o técnico de Enfermagem porque é uma profissão. [...] Eu
sou uma enfermeira da periferia do Rio de Janeiro, então (inaudível). E aí as pessoas vêm
me perguntar, eu sempre falo pra eles. Daí eles já vem sabendo que é um curso de 18
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meses e é um curso que no final eles conseguem emprego. Então, por maior desvalorização
salarial que haja, ainda as pessoas conseguem a empregabilidade. (Rep. Enf. ABEn)
Nessa busca por reconhecimento e prestígio, ganha espo a perspectiva de que essa
conquista se fortaleceria a partir do momento em que os profissionais se reconheçam e
se autoafirmem como tal. E aí que a meão à categoria de técnicos em Enfermagem
tenta se descolar em relação às profissionais de Enfermagem de nível superior e
também em relação aos médicos, uma vez em que não são poucos os conflitos e
divergências em relação ao entendimento a quem cabe exercer cada função no exercício
profissional e quais são os conhecimentos próprios que caracterizam cada profissão.
Enfermaria é uma equipe de enfermagem que toca, não é o médico. O médico é visita. Não
é o médico que orienta. Quando você tem um problema na enfermaria você chama a
enfermeira, não é uma medicaria (Prof. Privada Nacional B).
[...] [Precisamos mostrar] Que não somos submissos, que não dependemos, que temos
uma ciência ppria para desenvolver nas nossas próprias teorias (Prof. Privada Baixada B)
Primeiro, que a gente precisa entender quem é quem na função. O médico ele vai cuidar da
doença. Quem cuida da pessoa, quem cuida desse paciente que fica 24 horas com esse
paciente lá no leito, vendo o balanço hídrico, vendo se está evacuando, enfim... todos
aqueles procedimentos... É o técnico de enfermagem. Não é nem enfermeiro, tá? É o
técnico (Rep. Tec. COREn).
Quando eu tenho o profissional enfermeiro especialista em Obstetrícia que faz o parto
humanizado, que faz todo aquele efeito de acolhimento a mulher, a gente está falando de
cuidado científico. Só que, muitas vezes por conta desse histórico do cuidado estar
relacionado como uma questão de sobrevivência e uma coisa empírica, as pessoas nos
enxergam como uma enfermeira boazinha. [...] Por que que a gente é de fundamental
importância e somos tão invisíveis? Porque nem a gente se imbuiu ainda da importância
deste trabalho. E é aquilo que eu disse pra ti. Pra você ser reconhecido o primeiro passo é
você se reconhecer (Rep. Enf. COREn)
Essa subordinação aos médicos esteve associada à consolidação do poder do saber médico
através da higiene, impulsionada pela ascensão do saber científico em ruptura ao caráter
assistencialista e empírico do atendimento de saúde; aos médicos caberia preparar as
enfermeiras, no caso, como suas auxiliares. Mesmo no tempo presente existem ações por parte
da Medicina para centralizar as atividades relativas ao diagnóstico de enfermidades e tratamentos
de saúde. A diferença de prestígio pode ser identificada pela diferença de remuneração média
dos profissionais de nível superior em Enfermagem em comparação aos da Medicina. Pelos
dados do CAGED (2019), enquanto o profissional cnico em Enfermagem teve remuneração
média de R$ 1.710,75 e o de nível superior, R$ 3.558,32, o médico clínico obteve média de R$
6.695,71.
Portanto, tanto internamente, por conta da segmentação da categoria profissional da
Enfermagem, quanto na área da saúde em geral, é possível inferir que a divio social do trabalho
seja um marcador importante a ser considerado nas relações trabalhistas. Muito além do que uma
mera divisão de funções e tarefas que a cada profissional caberia ser responsável, essas relações
estabelecidas são socialmente construídas, tendo em vista a universalização do valor como
medida de troca entre os seres humanos, por sua vez, mediado pela existência de classes sociais.
Ou seja, acima de tudo podemos considerar que a divisão social do trabalho expressa uma
condição em que a classe trabalhadora é destituída do controle sobre o processo de trabalho,
subjugado este pela condição indispensável de valorização do valor através da máxima
exploração posvel da força de trabalho, Mutilados pela divisão do trabalho (MARX, 2017, p.
513). Completa Marx (2017, p. 577):
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Enquanto o processo de trabalho permanece puramente individual, o mesmo trabalhador
reúne em si todas as funções que mais tarde se apartam umas das outras. Em seu ato
individual de apropriação de objetos da natureza para suas finalidades vitais, ele controla a
si mesmo. Mais tarde, ele é que se controlado. O homem isolado não pode atuar sobre a
natureza sem o emprego de seus próprios músculos, sob o controle de seu próprio cérebro.
Assim como no sistema natural a cabeça e as mãos estão interligadas, também o processo
de trabalho conecta o trabalho intelectual ao trabalho manual. Mais tarde, eles se separam
até formar um antagonismo hostil.
Nesse sentido, queremos salientar que há uma relação conflituosa entre trabalhadores
de vel superior que procuram valorizar seu diploma e prestígio alcaados ao delegar
atribuições que se relacionem a tarefas menos valorizadas socialmente, sobretudo por
se apoiarem em práticas manuais e de esforço físico, essas supostamente estariam de
menor saber científico. A oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual se
expressa materialmente com relação à especificidade do técnico em Enfermagem que
executa tarefas designadas pelas enfermeiras que por vezes se sentem
sobrecarregadas de funções, devido à falta de colaboração das enfermeiras ou dos
próprios profissionais de Enfermagem que se sentem desprestigiados e desvalorizados
com relação à Medicina, conforme também constatou a pesquisa de Chinelli, Vieira e
Scherer (2019). Diante do exposto, dialogamos ao apresentar algumas falas de nossos
sujeitos entrevistados acerca do tema:
Tem atritos, porque às vezes esse enfermeiro [...] tem as atribuições dele e muitas das vezes
ele quer transferir a atribuição dele para o técnico, coisa que não pode, né? [...] E as vezes
ele (o enfermeiro) quer ficar sentado, ele quer delegar, mandar que os técnicos façam alguns
procedimentos e que na realidade não pode. (Rep. Tec. COREn)
Se tu for lá na lei do exercio profissional, ela diz lá o seguinte: que é atribuição do enfermeiro
a assistência ao paciente grave. Numa pirâmide de vinte e três por cento desse efetivo de
dois milhões e trezentos trabalhadores inscritos, nós não damos conta. Vinte e três por cento
(dar conta) de todos os pacientes graves nesse país? Quiçá em tempos de pandemia, né?
E aí, a gente tem que lançar a mão da questão de delegar. (Rep. Enf. COREn)
Olha... a Enfermagem quando ela é criada como profissão, ela surge com uma
hierarquização muito séria, né? Essa hierarquização traz uma dicotomia muito grande entre
quem pensa e quem faz. Então, o técnico de Enfermagem, hierarquicamente, é aquela
pessoa do fazer. E a enfermeira é aquela pessoa que pensa o processo do cuidado. Ela
pensa o processo do cuidado e desenvolve, desenvolve entre aspas. [...] [No entanto] Quem
coordena o processo de cuidado, infelizmente, ainda é a categoria médica. Então isso cria
um atrito enorme no serviço de saúde, principalmente na área de enfermagem. (Rep. Enf.
ABEn)
Vamos apanhar algumas formas bastante sui generis da nossa condição humana, tá? Nós
comemos, fazemos xixi - me desculpem as expressões um pouco chula - e cagamos. Então,
no processo da assistência, do cuidado, o enfermeiro fica com a parte mais leve e o técnico
fica encarregado pelo resto, e isso não é praxe - que isso fique bem claro. [...] Mas, em
grande parte dos espaços essa higiene após defecação fica por conta do técnico, justamente
porque em alguns momentos o enfermeiro se sente como o engenheiro em uma obra. Ele
tem, por ter uma formação científica, uma formação de ensino superior, uma formação que
lhe confere um lugar diferenciado, entre aspas (Rep. Prof. UFRJ)
Diante do apresentado, pode-se inferir, portanto, que são majoritariamente as mulheres
na Enfermagem, sobretudo aquelas trabalhadoras de vel técnico, as que mais sofrem
com os efeitos provocados pela invisibilização, desvalorizão e as consequências
objetivas da divisão social do trabalho na Enfermagem, frequentemente marcadas pela
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escassez ou ausência, seja do ponto de vista de reconhecimento em relão ao
desempenho de suas funções, seja nas condições materiais para exercê-las. Desde as
origens de ascendência inglesa que conformaram a Enfermagem brasileira, em que se
distinguiam as ladies, mulheres de classe social mais elevada, as quais
desempenhavam função de supervisão e controle dos serviços, e as nurses, que
pertenciam aos estratos sociais mais baixos e que ficavam sob a direção das ladies,
desenvolvendo o trabalho manual de enfermagem, à Enfermagem tem sido atribda
como extensão da delicadeza e dos cuidados maternos aos doentes. A contribuição de
Lopes e Leal (2005) evidencia que as supostasqualidades naturais das mulheres no
exercício do cuidado traduz uma relação entre gênero, classe e poder. A divisão sexual
do trabalho na saúde se assentou no pressuposto de que o conteúdo das práticas
médicas (o tratamento) é que se concentra o estatuto científico, logo, justificam o maior
salário, maior tempo e disponibilidade para formação profissional, atribuído
majoritariamente aos homens de estrato social mais abastado, em oposição aos
procedimentos mais rotineiros, massivos e taylorizados, relacionado às práticas do
cuidar. Dessa forma, concluem que a associação às qualidades femininas e não à
qualificação, que condenam essas ações a um status intermediário, não resulta do fato
de que sejam dispensáveis do processo terapêutico, mas porque são definidas como
ações femininas e, assim, relegadas a uma hierarquia inferior, baseada no prestígio
social dos agentes, a partir da perspectiva de classe e sexo (LOPES; LEAL, 2005, p.114).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cremos que foi possível mostrar um quadro panorâmico sobre a maior força de trabalho
da área da saúde, no caso, a Enfermagem, a partir da percepção docente dos futuros
profissionais e de sujeitos que compõem postos de referência na profissão. O fato de se
tratar da maior força de trabalho se complexifica ainda mais devido a ser uma profissão
que, ao longo de sua história, se estabeleceu em diferentes níveis de hierarquia,
escolarização e de divisão do trabalho, conferindo à Enfermagem várias categorias
profissionais internas, das quais, a maior delas atualmente, os profissionais técnicos de
nível dio em Enfermagem. Destacamos que tais profissionais são contundentemente
do sexo feminino, o que nos levou a adotar o gênero feminino, em algumas ocasiões, ao
se referir a esse quadro profissional.
Os contornos da nova morfologia do mundo do trabalho indicam que a área da
Enfermagem não es imune das transformações ocorridas nas relações trabalhistas em
todas as áreas. Não há qualquer preservação de algum grau dehumanização por se
tratar de profissionais que se dedicarão a cuidar da saúde alheia, pois estão submetidos
a todas as adversidades próprias da atual conjuntura, como a precarizão estrutural do
trabalho, que aparece sob a roupagem positiva da flexibilidade, como maneira de
preservão dos postos de emprego existentes e adequão às ditas novas demandas
do mercado e do trabalho no século XXI. E essa roupagem flexível inclui a prestação de
serviços de saúde através da mediação da geso por organizações privadas ou então
escancarada pela capitalização mercantil dos planos de saúde.
Tais características incidem na conformação do campo de trabalho e no exercício
profissional para a categoria dos técnicos em Enfermagem. A pesquisa empírica pôde
trazer elementos que demonstram traços de continuidade e de persisncia que
caracterizaram historicamente essa categoria profissional. A Enfermagem, enquanto
profissão, formada a partir dos cuidados empíricos e subordinada à hegemonia médica
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através da higiene, ainda se vê às voltas em ter que se afirmar como uma profissão que
tem saber e conhecimentos científicos próprios, o que ganha uma dimensão ainda mais
ampliada pela hierarquização das categorias profissionais existentes, na qual técnicos e
auxiliares em Enfermagem estão colocados em patamar de funções menos complexas,
mas ainda assim, com atribuições próprias, nem sempre seguidas pelos profissionais de
nível superior da Medicina ou da Enfermagem.
Do ponto de vista das condições objetivas de trabalho, a necessidade da presença do
profissional técnico em Enfermagem o torna indispensável no atendimento de todos os
níveis da saúde. Isso leva ao fato de que sua presença absoluta como força de trabalho
seja extensa, produzindo uma impressão imediata de facilidade na obtenção de vínculo
empregatício. Embora a inserção em postos de trabalho realmente não seja das mais
difíceis no atual quadro geral de empregos, a profusão da existência de escolas técnicas
de nível médio para Enfermagem, superlativa a formação de profissionais aumentando
a oferta de força de trabalho, contribuindo para a preso salarial, fomentando uma ilusão
de acesso a emprego imediata e acessível a todos. Daí que essa extensa força de
trabalho disponível, a despeito de seu volume, ainda passa por inúmeras dificuldades no
exercício profissional, que vão desde fatores objetivos escassez de instrumentos de
trabalho, remuneração decente, jornada de trabalho extenuante, lesões etc. e
subjetivas, como o detectado desprestígio social, o que afeta de sobremaneira as
mulheres, por conta de sua maior presença na profissão.
Desse modo, esperamos ter trazido contribuições para conferir visibilidade a uma
categoria profissional indispensável e absolutamente marcante nos serviços de
atendimento de saúde.
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Data da submissão: 30/01/2021
Data da aprovação: 09/12/2021