Trabalho & Educação | v.30 | n.1 | p.87-104 | jan-abr | 2021
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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.29774
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
ANTONIO GRAMSCI ENTRE AS DUAS INTERNACIONAIS: EDUCAÇÃO
E FORMAÇÃO POLÍTICA
1
Antonio Gramsci between the two Internationals: Education and Political
Formation
SOUZA, Herbert Glauco de
2
RESUMO
Este texto tem como objetivo entender as principais influências intelectuais e políticas que incidirão
sobre a personalidade do Jovem Gramsci, e que de certa maneira permanecerão e seo reformuladas
no Gramsci da maturidade norcere fascista. Nesse sentido, foi realizado um levantamento
bibliográfico amplo sobre as principais fontes (fatos e obras) com as quais Gramsci dialetizará nos
contextos das Duas Internacionais. Como resultado da pesquisa, percebe-se o leque amplo de
incidências que ajudaram a moldar a personalidade intelectual e política do jovem sardo e como
também Gramsci se relacionara criticamente com toda aquela atmosfera rica de ideias e
transformações sociais. Conceitos como Revolução Passiva, Hegemonia, Guerra de Movimento e
Guerra de Posição, dentre outros, emergio nesse confronto com o ambiente procuo em que Gramsci
estava inserido.
Palavras-chave: Gramsci. Internacionais. Formação.
ABSTRACT
This text aims to understand the main intellectual and political influences that will affect the personality
of Young Gramsci, and that in a way will remain and be reformulated in the Gramsci of maturity in fascist
prison. In this sense, a comprehensive bibliographic research was carried out on the main sources (facts
and works) with which Gramsci will dialectize in the contexts of the Two Internationals. As a result of the
research, one can see the wide range of incidences that helped to shape the intellectual and political
personality of the young Sardinian and how Gramsci also had a critical relationship with the whole
atmosphere rich in ideas and social transformations. Concepts such as Passive Revolution, Hegemony,
War of Movement and War of Position, among others, will emerge in this confrontation with the fruitful
environment in which Gramsci was inserted.
Keywords: Gramsci. Internationals. Formation.
1
Este texto é também fruto de uma pesquisa mais ampla que contou com o fomento da CAPES e que subsidiou a escrita da minha tese
de doutoramento.
2
Doutor em Educação pela UFMG, Mestre em Educação pela UFMG, Graduação em Pedagogia pela UFMG. E-mail:
herbert.filadelfia@gmail.com
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INTRODUÇÃO
O objetivo deste texto é apresentar e discutir como o pensamento de Antonio Gramsci é
influenciado por e forjado no contexto da Segunda (1889-1914) e da Terceira (1919-
1943) Internacionais.
Segundo Rapone (2014), a base teórica na qual se fundamenta a adesão de Gramsci
ao socialismo, desde o prinpio, é uma concepção do devir histórico em que se destaca
a função propulsora do homem, do homem como ser volitivo e consciente, arfice da
história e, ao mesmo tempo, produto, ele próprio, do movimento histórico. É uma posição
típica do específico momento da hisria cultural italiana e europeia em que se forma a
personalidade intelectual do jovem Gramsci.
São os anos da reação antipositivista e da reabilitação do lado subjetivo e espiritual da
experiência humana, ponto de partida comum de uma multiplicidade de itinerários
intelectuais, com pontos de chegada muito variados entre si. No caso de Gramsci, enquanto
será preciso tempo antes de vir a associar o socialismo a uma acepção particular do
marxismo, a busca de caminhos novos conduz rapidamente a uma visão da história
caracterizada pela afirmação mais de uma objetividade impotente do que de uma vontade
onipotente, ou seja, pela convicção de que o ambiente econômico-social e as condições
materiais da existência o podem determinar o caminho humano se não intervém, por parte
do homem, uma decisiva apropriação do espaço que se oferece à sua iniciativa (RAPONE,
2014, p. 295).
O socialismo parece a Gramsci, continua Rapone, participar de um movimento mais
amplo de renovação do pensamento, que repôs o homem no centro do processo de
constituição da realidade e fez coincidir esta última com a história produzida pelo sujeito.
Mas que tipo de socialismo é a referência para a formação inicial do jovem Gramsci?
Certamente o socialismo científico na sua vertente marxiana pode ser uma provável
resposta para essa questão. Pode parecer uma pergunta banal com uma resposta óbvia,
no entanto, o próprio marxismo (a partir da sua divulgação e vulgarizão) o foi e nem
é um elemento homogêneo. A formação de Gramsci se especificamente entre a
atmosfera política e ideológica da Segunda e da Terceira Internacionais, mas as fontes
que incidirão sobre sua personalidade não se limitarão ao marxismo (ou aos
marxismos). Gramsci absorve dialeticamente do ambiente cultural, político e ideológico
extremamente profícuo das primeiras três décadas do século XX uma ampla gama de
indicações e reflexões que alimentarão sua formação intelectual, moral e política: Croce,
Gentile, Labriola, Kipling, Henri Bergson, Romain Rolland, Luigi Pirandello, Giovanni
Papini, Giuseppe Prezzolini, Matteo Bartoli, Thomas Mann, Georges Sorel, Ernest
Renan, Marx, Lênin para citar alguns nomes; o meridionalismo salviminiano, os
estudos de glotologia, o neo-idealismo italiano, a experiência socialista e jornalística, as
primeiras eleições com sufrágio semiuniversal na Sardenha em 1913, a Primeira Guerra
Mundial, o Fordismo, a revolão bolchevique, a criação da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), o fascismo e o nazismo para citar alguns movimentos
e fatos.
DA SEGUNDA INTERNACIONAL
Segundo Steinberg (1982), a maior parte dos juízos formulados sobre o marxismo da
Segunda Internacional e sobre o kautskismo vem de alguns marxistas dos anos situados
entre as duas guerras: Korsch, Lukács, Rosenberg, Gramsci. Esses marxistas
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consideram-no um marxismo vulgar, grosseiramente mecanicista, evolucionista,
distanciado da filosofia, mera explicação da necessidade das leis do desenvolvimento
histórico, frequentemente traduzido em termos de cientificismo positivista. Trata-se de
um marxismo difuso, traduzido em termos de ideologia de partido, que perdera todos os
seus elementos revolucionários e prático-políticos, transformando-se numa espécie de
religião. Quando estava preso no cárcere fascista, Antonio Gramsci vai ainda mais longe
na sua avaliação sobre o marxismo da II Internacional. Ele se interroga sobre as formas
daquele marxismo que tinham chegado até ele, nos anos da sua juventude, e que ele
tinha combatido com tanto ardor nas fileiras do Partido Socialista Italiano. Quais eram as
fontes da filosofia doprato popular? Por meio de que mecanismos a filosofia da práxis
tinha adquirido um aroma determinista e fatalista? Gramsci escreve:
Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecanicista foi um aroma
ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo
dos entorpecentes), tornada necessária e justificada historicamente pelo cater subalterno
de determinados estratos sociais. Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta
acaba por se identificar com umarie de derrotas, o determinismo mecanicista se torna
uma foa formidável de resistência moral, de coesão, de paciente e obstinada
perseverança. Fui momentaneamente derrotado, mas a foa das coisas trabalha em meu
favor, a longo prazo, etc. A vontade real se traveste num ato de fé, numa certa racionalidade
da história, em uma forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado que aparece como
um substituto da predestinação, da providência, etc., das religiões confessionais (GRAMSCI,
1975, p.1388).
Para Fetscher (1982), a ligação da crítica econômica marxiana com uma teoria
materialista da evolução, realizada por Kautsky (e, em parte, por Engels, em suas últimas
obras), apresentava a vantagem teórica de dar ao proletariado, ainda débil e inseguro, a
confiança na vitória e a consciência de si. Ademais, um marxismo dilatado em
concepção geral do mundo podia servir para uma maior coesão dos militantes
socialdemocratas, absolutamente não homogêneos do ponto de vista social. A leitura de
O Capital, entendido como um elemento da teoria da evolução da sociedade, é
favorecida pela teoria de Darwin (e de Haeckel) sobre a evolão, à qual Kautsky e seus
contemporâneos se revelam muito sensíveis. Essa concepção, tanto no plano
psicológico quanto no ideológico, teve efeitos particularmente vantajosos para a coesão
do movimento operário e para sua certeza na vitória final. Ela representou, contudo, uma
redução e uma vulgarização consideráveis da crítica da economia política empreendida
por Marx.
Para Andreucci (1982), em meados dos anos trinta do século XX, quando começa uma
pausa na reflexão histórica sobre o marxismo (que só seria retomada duas décadas mais
tarde), grande parte dos problemas relativos ao marxismo da Segunda Internacional já
se achava sobre a mesa: o papel de Kautsky, do kautskismo, da socialdemocracia ale
na derrota da Segunda Internacional, a redução do marxismo à ideologia de partido, a
relativa paralisia do marxismo teórico, o conúbio com o darwinismo e mais
genericamente com o positivismo, dando lugar a uma versão mecanicista e determinista
do marxismo. A visão do processo histórico como Kautsky o entendia, como o maior
teórico da socialdemocracia alemã, expressa como era então formulado o problema de
uma revolução socialista. Sua teoria, conforme assegura Waldenberg (1982), é
caracterizada pelo fatalismo e pelo economicismo, pois não leva em conta a síntese
marxiana do determinismo econômico e do ativismo político. Ao demonstrar que a
revolução socialista consiste na derrubada do capitalismo por meio de suas próprias
contradições internas, de seu natural processo de desenvolvimento, sem intervenção
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dos homens, a doutrina kautskyana desemboca necessariamente no quietismo. Na
interpretação de Waldenberg (1982), Kautsky combinou o determinismo voluntarista no
modo de conceber os fatos com um fatalismo quietista, com um automatismo
economicista, pondo o evolucionismo no lugar da dialética, excluindo o elemento
voluntarista e reduzindo o marxismo à teoria do desenvolvimento regulado e natural da
sociedade capitalista. Sobre as desfigurações teóricas provocadas no marxismo por
elementos estranhos à sua essência, que em uma fase bem precisa da repercussão
ideológica das lutas de classe, e, sobretudo durante o período da Segunda Internacional,
dos anos da sua fundação até a Primeira Guerra Mundial, foram se insinuando e se
fixando no interior da doutrina, Oldrini (1999) afirma que foram decorrentes
principalmente da circunstância de que, o tendo Marx e Engels conseguido, por
motivos independentes da sua vontade, levar a termo a construção de um sistema
filosófico do marxismo, os marxistas que vieram depois deles encontraram-se muito
frequentemente deslocados e indefesos em relação aos adversários. E sem um sistema
doutrinário para opor às suas críticas, acabaram aprofundando a aridez daquele
ecletismo incoerente, segundo o qual seria preciso completar, de fora, as doutrinas
econômicas de Marx, por exemplo, com Mach no plano físico, com Kant no plano ético
e com as teorias positivistas da arte no plano estico. Esse determinismo de ordem
filosófica continua Oldrini (1999) - que se prolonga muito além da Segunda
Internacional, até alcançar também boa parte do desenvolvimento do marxismo soviético
no período stalinista, converte-se depois, na opinião do autor, por sua vez, no plano
político, em uma espécie de fatalismo. Da lei marxiana do crescimento inevitável das
contradições do capitalismo deduz-se imediatamente a consequência que, no ato em
que as contradições amadurecem e explodem, a derrocada do capitalismo ocorre por si
mesma. Para Oldrini (1999), o empenho na luta ideológica, o pathos revolucionário
cedem lugar à resignação, por trás da qual está de espreita o oportunismo: como ficará
claro, segundo o autor, com a postura filobelicista assumida por quase todos os partidos
socialdemocratas europeus por ocasião da eclosão da Primeira Guerra Mundial (apoio
às burguesias nacionais, votações de créditos de guerra, e assim por diante).
Para Oldrini (1999), Gramsci combate desde cedo essas tendências economicistas,
fatalistas, incrustadas no marxismo e no movimento socialista, esforçando-se por
derrubar seus alicerces. O ponto de partida da sua ação e da sua reflexão, assim como
de sua inserção na história do pensamento socialista, continua o autor, deve ser buscado
no seu repúdio nítido e resoluto, presente desde o princípio, em relação ao marxismo
evolucionista e fatalista da Segunda Internacional.
À luz do exposto readquirem todo o seu justo significado as críticas de Gramsci e Lukács às
simplificações vulgarizadoras do marxismo realizadas com a Segunda Internacional, que se
estenderam até Bukharin e para além dele (materialismo mecanicista, sociologismo vulgar,
doutrina da previsão, sobrevalorização e mal-entendimento do papel da técnica das relações
de trabalho). São bem conhecidas e demasiado comentadas, as páginas de Gramsci sobre
Bukharin. Contrariamente às simplificações filosóficas bukharianas, redutivas com relação à
incidência da esfera da superestrutura, os Cadernos do Cárcere fazem valer uma dialética
muito mais articulada entre estrutura e superestrutura, onde encontra lugar e um lugar em
primeiro plano também a ação exercida pelas forças humanas, todavia sem aquela ênfase
idealista do momento da subjetividade que Gramsci denuncia e rejeita no jovem Lukács,
sem diminuir o reconhecimento da prioridade, em última instância decisiva, das leis
econômicas objetivas que operam no nível da estrutura (OLDRINI, 1999, p.73).
Em dirão ao que argumenta Oldrini (1999), o historiador italiano Leonardo Rapone
(2014) afirma que, desde cedo, em contraposição à influência determinista/mecanicista
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sofrida pelo Marxismo da Segunda Internacional, materializado na ortodoxia do Partido
Socialdemocrata Alemão, no jovem Gramsci, ao lado da reivindicação das possibilidades
realizadoras do indivíduo es a identificação do processo histórico de transformão
com um processo de libertação do espírito. A própria luta de classes é vista por Gramsci,
completa Rapone (2014), como expressão da necessidade de autonomia própria do
espírito humano, e a meta rumo à qual se projetam os esforços de emancipação do
movimento socialista é aliberdade espiritual perfeita, a adesão mais completa entre o
ato e o fato, entre a vontade e a afirmação, é o homem quem aniquilou todas as
fatalidades, todas as forças demoníacas incontroláveis.
Em 1915, em 1916 e ainda posteriormente, até que a Revolução Russa o empurre para um
debate mais aberto, com base em leituras mais aprofundadas e interpretações mais
meditadas, nenhuma referência efetiva a Marx aparece na prosa de Gramsci, e a única vez
em que se reivindica a fecundidade, aeterna juventudeda sua doutrina, faz-se menção
ao prinpio da luta de classes, logo, ao lado prático, combativo, do seu ensinamento.
Bastante precocemente, ao contrário, delineia-se o desprezo pela positivação do socialismo,
isto é, pela redução do materialismo histórico a uma concepção determinista do
desenvolvimento e pela pretensão de que a cientificidade do socialismo consista em
representar os processos sociais como processos naturais, sem relação com a iniciativa
humana (RAPONE, 2014, p. 303).
Outra queso que aparece precocemente na formação socialista de Gramsci e que
remonta ao argumento do homem como artífice da história, ou seja, à negação do
fatalismo, é o nexo lógico sobre a função da subjetividade na história e a relação entre
socialismo e cultura. A aquisição de cultura é considerada um fator determinante da
constituição política do sujeito e, portanto, do desenvolvimento da subjetividade
revolucionária. Aparece assim, in nuce no Jovem Gramsci, a ideia (que logo se tornará
um dos principais cânones de interpretação do léxico gramsciano) da necessidade de se
organizar a cultura, de elevar intelectual e moralmente as massas populares para a
realização do socialismo. É a reafirmação, mais uma vez, da potência criadora do
homem, mas uma potência que deveria ser organizada e incrementada, e o uma ideia
voluntarista, espontaneísta da ação humana.
Retomando o famoso artigo de Gramsci Socialismo e cultura, escrito em janeiro de 1916,
Rapone (2014) chama a atenção para duas considerações importantes ali contidas,
anunciadoras de desdobramentos no Gramsci da maturidade. Em primeiro lugar,
Gramsci sublinha com vigor as premissas culturais das revoluções políticas e sociais:
toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de
penetração cultural, de impregnação de ideias em agregados de homens que eram
inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos, dia a dia, hora a
hora, seus próprios problemas econômicos e políticos, sem vínculos de solidariedade
com os que se encontravam na mesma situação. Nesse sentido, Gramsci cita o exemplo
da relação entre Iluminismo e Revolução Francesa, evocando o quadro que dela
oferecera o escritor italiano De Sanctis, e esboçando o conceito de uma espécie de
revolução cultural (diz do Iluminismo: Foi ele mesmo uma magnífica revolução) que
prepara o terreno da transformação política.
Outra consideração de Gramsci, presente no texto Socialismo e cultura, e retomada por
Rapone (2014), diz respeito a um esclarecimento sobre o que uma classe em ascensão,
desafiadora da ordem estabelecida, deve considerar como cultura: não se pode chegar
até o conhecimento de si se também não se reconhecem os outros, a história deles, a
sucessão dos esforços que fizeram para ser o que são, para criar a civilização que
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criaram e que nós queremos substituir pela nossa; o objetivo último é conhecer melhor a
si mesmo através dos outros e conhecer melhor os outros através de si mesmo. A cultura
de que o proletariado deve se apropriar, em síntese, é aquela mesma que até agora foi
de poucos, não outra cultura; Gramsci não admite a ideia de que uma cultura de grau
inferior deve ser apanágio das classes trabalhadoras ou que estas devam virar as costas
para o patrimônio espiritual constituído sob a égide das classes dominantes que as
precederam.
A militância juvenil de Gramsci dentro do Partido Socialista Italiano tem a marca pétrea
do convite à tomada de posição, do se preparar para que essa tomada produza efeitos.
O que lhe provoca asco é a resignação e o fatalismo travestidos de indiferença, que afinal
de contas também é uma forma de ação, talvez irresponsável, quem sabe negligente,
mas é uma forma de ação que também produz suas consequências (na maioria das
vezes nefastas). É Gramsci quem diz que
(...) a indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a
fatalidade, aquilo com que não se pode contar; é o que abala os programas, inverte os planos
mais bem-construídos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a destroça
(GRAMSCI, 2011, p.59).
No seu artigo Indiferentes, que sai também no número único organizado por Gramsci de
La Città Futura em abril de 1917, esse ódio aos indiferentes é ao mesmo tempo uma
crítica aos que não tomam posição, aos que não se sentem sujeitos da história como
também esse texto é uma tentativa de sacudir, de tirar da zona de conforto as pessoas
que se encontravam nesse estado de paralisia entorpecente.
Odeio os indiferentes. Creio, como Friedrich Hebbel, que viver é tomar partido. Não podem
existir os que são apenas homens, os estranhos à cidade. Quem vive verdadeiramente não
pode deixar de ser cidadão e de tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia,
não é vida. Por isso, odeio os indiferentes. A indiferença é o peso morto da história.
(GRAMSCI, 2011, p.59).
Se em Descartes cogito ergo sum (penso, logo existo), em Gramsci, tomo partido, logo
vivo ouvivo, por isso tomo partido’. Viver é um ato constante de se posicionar, um ato
de buscar se reconhecer em tudo que acontece, não como vítima inocente de uma dada
circunstância, mas como artífice da mesma, como criador da própria história, mesmo que
num momento essa história se apresente como derrota. Em Gramsci está em relevo um
certo inconformismo, um asco à ircia intelectual e política. A política é o momento do
fazer, do criar, do atuar no mundo a fim de transformá-lo. E quando atuamos no mundo,
somos também modificados por ele, nos construímos como homens e mulheres nesse
movimento dialético. É nesse sentido que assim como em Marx, também em Gramsci
há uma profunda relação entre trabalho e política, uma relação de formação humana,
uma relação de criação do mundo e autocriação. Ambos (trabalho e política) são formas
de atuar no mundo, formas de ser, e o que caracteriza essas formas de ser e estar no
mundo é exatamente a atividade consciente e não a inércia fatalista e entorpecente (a
resignação).
Tomo partido, vivo, sinto que já pulsa nas consciências viris do meu partido a atividade da
cidade futura que estamos construindo. E nela, a cadeia social não pesa apenas sobre
poucos; nela, nada do que ocorre se deve ao acaso, à fatalidade, mas é obra inteligente dos
cidadãos. Não há nela ninguém que fique olhando pela janela enquanto poucos se
sacrificam, consumindo-se no sacrifício; ninguém que fique à janela, escondido, querendo
usufruir um pouco do bem que a atividade de poucos cria e manifeste sua desilusão
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ofendendo o sacrificado, o que se consumiu, porque este não teve êxito em sua tentativa.
Vivo, tomo partido. Por isso, odeio quem não se compromete, odeio os indiferentes
(GRAMSCI, 2011, p.61).
DA TERCEIRA INTERNACIONAL
Assim como a Primeira Guerra Mundial foi fundamental para a formão intelectual e
política de Gramsci, como também para uma participação cada vez mais proeminente
no interior do Partido Socialista Italiano, outro fato com mesmo peso (ou até maior, ou
pelo menos mais decisivo) foi a Revolução Bolchevique, ou ainda, para citar um famoso
artigo de Gramsci que dá as boas vindas à Revolução, A Revolução contra o Capital.
Ela é a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na Rússia, o livro
dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da fatal necessidade
de que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se
instaurasse uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer
pensar em sua desforra, em suas reivindicações de classe, em sua revolução. Os fatos
superaram as ideologias. Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos quais a
história da Rússia deveria se desenvolver segundo os cânones do materialismo histórico.
Os bolcheviques renegam Karl Marx: afirmam e com o testemunho da ação explicitada,
das conquistas realizadas que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos
como poderia se pensar e se pensou (GRAMSCI, 2011, p.62).
Revolução que, contrariando as expectativas economicistas e fatalistas de um Marxismo
oficial da Segunda Internacional, como também frustrando a maioria dos seusarautos
exilados agora nas trincheiras do Partido Socialdemocrata Alemão, é recebida com
alegria e satisfação por Gramsci, pois tal fato vai de encontro à sua escrita jornalística e
à sua atividade política, porque exalta o papel da subjetividade na história, exalta os
homens como criadores do seu próprio mundo e degola a tríade
mecanicismo/economicismo/fatalismo.
Contudo, há uma fatalidade também nestes eventos; e, se os bolcheviques renegam
algumas afirmações de O Capital, não renegam seu pensamento imanente, vivificador. Eles
apenas não são marxistas; não construíram a partir das obras do Mestre uma doutrina
rígida, feita de afirmações dogmáticas e indiscutíveis. Vivem o pensamento marxista, o que
não morre nunca, que é a continuação do pensamento idealista italiano e alemão, e que em
Marx se havia contaminado de incrustações positivista e naturalistas. E esse pensamento
põe sempre como o máximo fator da história não os fatos econômicos, brutos, mas o
homem, a sociedade dos homens, dos homens que se aproximam uns dos outros,
entendem-se entre si, desenvolvem atras destes contatos (civilização) uma vontade
social, coletiva, e compreendem os fatos econômicos, e os julgam, e os adequam à sua
vontade, até que essa vontade se torne o motor da economia, a plasmadora da realidade
objetiva, a qual vive, e se move, e adquire o caráter de matéria telúrica em ebulição, que
pode ser dirigida para onde a vontade quiser, do modo como a vontade quiser (GRAMSCI,
2011, p. 62-63).
Em outro artigo publicado, agora no Il Grido del Popolo em maio de 1918, em virtude das
comemorações pelo centenário de nascimento de Marx, Gramsci mais uma vez
combate as apropriações economicistas que tentaram transformar o pensamento de
Marx em verdades absolutas, em dogmas. Assim, nesse sentido, combatendo essas
incrustações positivistas e celebrando os acontecimentos na Rússia de outubro de 1917,
Gramsci escreve que Marx não produziu uma doutrinazinha, Marxo é um messias
que nos legou uma série de parábolas impregnadas de imperativos categóricos, de
normas indiscutíveis, absolutas, fora das categorias de tempo e de espaço. E
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continuando, afirma que Marx deixou Um único imperativo categórico, única norma:
Proletários de todos os países, unam-se’. O dever da organização, a propaganda da
obrigação de se organizar e se associar deveria assim ser um critério de discriminão
entre marxistas e não marxistas (GRAMSCI, 2011, p.65).
A Revolução de Outubro havia vencido. A vitória levou os bolcheviques ao centro da
atenção mundial. A autoridade da concepção revolucionária leniniana e da práxis dos
bolcheviques, até então não muito conhecidas, comou a crescer rapidamente numa
parte importante do movimento socialista internacional, justamente porque a ação
revolucionária tinha sido coroada de sucesso. Segundo Reiman (1985), a vitória da
Revolução de Outubro fez com que o pensamento original de 1917 viesse a ser
submergido pelas mais diferentes interpretações, por explicações teóricas
suplementares, por justificões tricas elaboradas a posteriori. Não raramente, os
autores disto foram os próprios protagonistas dos acontecimentos: Lênin, Trótski,
Bukharin, Zinoviev, Stálin. A contribuição principal do pensamento socialista (e a
específica do pensamento bolchevique) para a revolão de 1917, continua Reiman
(1985), esteve centrada na esfera da teoria política e da tática política; tendia a justificar
as possibilidades, a necessidade e o modo de realizar a revolução política socialista.
Em direção ao que Gramsci discute no seu artigo A Revolão contra o Capital, Reiman
(1985) argumenta que a contribuição do pensamento bolchevique de 1917 foi possível
somente à custa da deformação da anterior concepção marxista da revolução socialista,
deformação pela qual a motivação do momento político se antepunha à consideração
da situação econômica e social. nin e outros dirigentes bolcheviques tinham
consciência disto, continua o autor, ainda que em proporções diferentes, e justamente
por esta razão tentaram apoiar suas concepções com a previsão de uma revolução
iminente nos países avançados, previsão que num primeiro momento parecia
confirmada pelos acontecimentos internacionais, com a eclosão de revoluções na
Europa Central no fim da Primeira Guerra Mundial, no outono de 1918.
Para Reiman (1985), os bolcheviques, que logo depois da tomada do poder se viram
diante do dilema que desde o início estava implícito em sua conceão, a imaturidade
dos pressupostos para o socialismo na Rússia, insistiam na certeza da concepção
leniniana: após a vitória na Rússia, a revolução devia alcançar outros países. Pensavam,
continua Reiman, que os insucessos das tentativas de deflagrar a revolução socialista
no Ocidente fossem só temporários, a revolução na Europa Ocidental tinha ritmos mais
lentos do que originalmente se supunha, devia lutar contra a traição dos partidos
socialistas tradicionais e superar a debilidade e a inexperiência do movimento comunista.
Segundo Reiman (1985), a base social do poder bolchevique se reduziu fortemente,
sobretudo depois que o governo, no esforço de garantir de qualquer modo o
abastecimento das cidades e do recém-formado exército vermelho, desfechou no campo
um ataque contra os camponeses médios e mais abastados. A fratura do campo popular
ofereceu uma brecha à contrarrevolão, e a Rússia se viu precipitada, por dois anos,
na voragem de uma guerra civil particularmente encarniçada e sangrenta. A concepção
original da política interna da revolução russa, elaborada pelos bolcheviques em 1917,
não pode ser realizada, conclui Reiman (1985). Na opinião do historiador tcheco, os
esforços para se passar da concepção à realização de uma economia socialista e de
uma política social terminaram por agravar uma situação já tensa e resultaram no ineficaz
sistema do chamado comunismo de guerra. A discrepância entre concepção ideal e
teórica, por um lado, e situação real, por outro, continua Reiman (1985), marcava assim
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a política interna da revolão russa (tal discrepância já era também característica de sua
política externa).
Especificamente falando sobre o caráter e o papel de liderança de Lênin, não
nacional, mas também internacional, como também escrevendo sobre o ambiente no
qual amadureu a formação do mesmo, Gramsci num artigo de 1924 publicado no
LUnità, logo após a morte de Lênin, diz que ele foi o iniciador de um novo processo de
desenvolvimento da história, mas o foi por ser também o expoente e o último momento
mais individualizado de todo um processo de desenvolvimento da história passada, não
só da Rússia, mas do mundo inteiro. Gramsci se pergunta se foi por acaso que ele se
tornou o líder do Partido Bolchevique e se foi por acaso que o Partido Bolchevique se
tornou o partido dirigente do proletariado russo e da não russa. Respondendo a si
mesmo, Gramsci afirma que:
A seleção durou trinta anos, foi trabalhosíssima, assumiu com frequência as formas
aparentemente mais estranhas e absurdas. Teve lugar no terreno internacional, em contato
com as mais avançadas civilizações capitalistas da Europa Central e Ocidental, na luta entre
os partidos e frações que formavam a II Internacional antes da guerra. Prosseguiu no seio
da minoria do socialismo internacional, que permaneceu pelo menos parcialmente imune ao
contágio social-patriótico. Foi retomada na Rússia quando da luta para conquistar a maioria
do proletariado, para compreender e interpretar as necessidades e aspirações de uma
numerosíssima classe camponesa, dispersa num imenso território. Continua ainda, a cada
dia, porque a cada dia é preciso compreender, prever, prover. Essa seleção foi uma luta de
frações, de pequenos grupos; foi luta individual. Significou cisões e unificações, detenções,
exílio, prisão, atentados; foi resistência contra o desencorajamento e o orgulho; significou
passar fome quando se tinha à disposição milhões em ouro; significou conservar o espírito
de um simples operário mesmo quando se estava sentado no trono do czar. Significou não
desesperar até mesmo quando tudo parecia perdido, mas recomeçar, com paciência, com
tenacidade, mantendo todo o sangue frio e o sorriso nos lábios, quando os outros perdiam
a cabeça (GRAMSCI, 2011, p.95-96).
Gramsci retoma alguns elementos centrais da política e da teoria leniniana,
principalmente quando desenvolve seu conceito de hegemonia. Já preso, sob a égide
do fascismo mussoliniano, em uma das suas notas nos Quaderni, faz referência à
valorização por parte de Lenin da frente de luta cultural que começa a ter lugar na
sociedade, devido às mudaas nas relações entre as classes sociais, construindo,
dessa maneira, a doutrina da hegemonia como complemento do Estado-força:
[...] o maior teórico moderno da filosofia da práxis, no terreno da luta e da organização política,
com terminologia política, tem em oposição às diversas tendências «economicistas»
valorizado a frente de luta cultural e construído a doutrina da hegemonia como complemento
da teoria do Estado-força e como forma atual da doutrina quarantottesca da «revolução
permanente» (GRAMSCI, 1975, p.1235).
Há, portanto, uma atualização da fórmula de 1848’ da revolução permanente,
formulada no Manifesto do Partido Comunista, que se expressa no conceito de
hegemonia. Isso significa a compreensão das novas características do Estado, como
também da necessidade de elaborar novas estratégias de luta. A fórmula da
hegemonia é o reconhecimento da superação, na teoria e na prática, da fórmula de
1848. Lênin identifica a necessidade de mudanças em relação às estratégias de luta que
a classe revolucionária deveria adotar para atingir os objetivos de transformação social.
Suas perspectivas aparecem principalmente nas políticas adotadas para a Rússia, no
final da I Guerra Mundial, quando começaram a ficar mais claras as relações de força
interna e externa ao país. No plano interno, Lênin propõe a Nova Política Econômica
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(NEP), como estratégia para lidar com a reação camponesa ao socialismo. A Nova
Política Econômica foi proposta em 1921, num quadro de reação dos camponeses (que
então constituíam 70% da sociedade russa) ao socialismo. Para obter o consentimento
dos camponeses às mudaas em curso na Rússia após a Revolução, Lênin precisou
fazer concessões no campo econômico. Concessões que dentro daquela conjuntura
poderiam parecer recuos das conquistas iniciadas em 1917 pela Revolução
Bolchevique. A Rússia vivia uma situação caótica, uma crise social e econômica, como
consequências da Primeira Guerra Mundial e da Guerra Civil. Era um quadro de miséria,
e para aguçar a situação, não contaram com o apoio técnico e financeiro da esperada
revolução nos países industrializados, principalmente a Alemanha. Era necessária uma
política para a economia que representasse também a busca de quebrar a reação
camponesa. A NEP atendia parcialmente aos interesses dos camponeses, porque
permitia determinadas práticas de mercado entre os mesmos, como venderem parte da
sua produção a pro fixo para o Estado, ao mesmo tempo em que cessavam
determinadas práticas vigentes durante o chamado Comunismo de Guerra como a
requisição forçada de víveres agrícolas e matérias primas, o racionamento de alimentos
e produtos industrializados, a distribuição de tíquetes e talões de racionamento no lugar
de pagamentos em moeda e trocas diretas de produtos.
É evidente que uma política econômica que permitisse certas relações de mercado
poderia trazer críticas de dentro do próprio movimento revolucionário russo,
principalmente do proletariado que vivia sob condições materiais muito inferiores aos
nepmen
3
. Num texto pré-carcerário, datado de 14 de junho de 1926, quando escreve
para o Comitê Central do Partido Comunista Soviético com a intenção de alertar os
camaradas soviéticos sobre o perigo das lutas internas ali presentes, Gramsci afirma que
jamais na hisria ocorrera que uma classe dominante, em seu conjunto, se visse em
condições de vida inferiores a determinados elementos e estratos da classe dominada e
submetida. Para ele, tal tipo de contradição fora reservada pela história ao proletariado
russo; assim, residiam em tal contradição os maiores perigos para a ditadura do
proletariado, sobretudo nos pses onde o capitalismo não alcançara um grande
desenvolvimento e não conseguira unificar as forças produtivas.
Segundo Gramsci, era dessa contradição que, de resto, apresentava-se já sob alguns
aspectos nos países capitalistas onde o proletariado alcaara objetivamente uma
função social mais elevada que nasciam o reformismo e o sindicalismo, que nasciam
o espírito corporativo e as estratificações da aristocracia operária. Mas ressaltava que o
proletariado não poderia se tornar classe dominante se não superasse essa contradição,
sacrificando seus interesses corporativos; não podendo manter sua hegemonia e sua
ditadura se, mesmo quando se torna dominante, não sacrificar tais interesses imediatos
em nome dos interesses gerais e permanentes de classe.
E para Gramsci a razão das lutas internas no Partido Comunista da URSS residia nessa
contradição. Para ele, era o elemento essencial das discussões entre seus camaradas.
Reside neste elemento a raiz dos erros do bloco das oposições e a origem dos perigos
latentes contidos em sua atividade. Na ideologia e na prática do bloco das oposições,
3
NEPmen foram homens e mulheres empreendedores (NEPmenshi) que levaram vantagem das
oportunidades para o comércio privado e da fabricação em pequena escala criados pela Nova Política
Econômica (NEP) (Disponível em: http://www.soviethistory.org. Acesso em: 10 jun. 2013).
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renasce plenamente toda a tradição da socialdemocracia e do sindicalismo, que impediu até
agora o proletariado ocidental de se organizar em classe dirigente (GRAMSCI, 2011, p.109).
Somente uma firme unidade e uma firme disciplina no partido que governava o Estado
operário poderiam assegurar a hegemonia proletária em regime de Nova Política
Econômica, ou seja, em pleno desenvolvimento da contradição mencionada por
Gramsci. Mas a unidade e a disciplina, neste caso, pensava, não poderiam ser
mecânicas e coercitivas. Deveriam ser leais e obtidas pela convicção; não deveriam ser
as de um destacamento inimigo aprisionado ou cercado, que pensa sempre em fugir ou
em atacar de surpresa. Ao terminar sua carta, Gramsci faz um alerta aos camaradas
russos de que a unidade do partido revolucionário era essencial para a consolidação não
só da Revolução de 1917, mas também das forças revolucionárias mundiais que tinham
na Rússia seu espelho.
A unidade de nosso partido iro da Rússia é necessária para o desenvolvimento e o triunfo
das forças revolucionárias mundiais: todo comunista e internacionalista deve estar disposto
a fazer os maiores sacrifícios para que tal necessidade se realize. Os prejuízos de um erro
cometido pelo partido unido são facilmente superáveis; os prejuízos de uma cisão ou de uma
prolongada situação de cisão latente podem ser irreparáveis e mortais (Ibidem, p.109).
Segundo Di Biagio (2010), são inúmeras as citações dos escritos de Gramsci,
subsequentes à sua estada em Moscou (3 de junho de 1922 a 3 de dezembro de 1923),
que se poderiam reunir como prova do fato de que assimilou em primeiro lugar uma
concepção de hegemonia que o próprio Lênin, desde 1902, havia submetido às
exigências polêmicas contra o economicismo’, entendido como defesa corporativa do
próprio particular por obra de uma classe que, ao contrário, só conquistaria a plena
legitimidade para exercer suas funções dirigentes sob a condição de se mostrar disposta
a suportar sacricios e esforços inauditos em nome dos interesses da humanidade. Em
abril-maio de 1925, o comunista italiano propunha uma distião entre luta econômica e
luta política que se revelava quase uma paráfrase do Que fazer? de Lênin, seja nos
termos em que se condenava a espontaneidade, seja na indicação da condição
indispensável para o proletariado se tornar classe dominante (isto é, que o proletariado
tenha consciência de ser o protagonista de uma luta geral que alcança todas as queses
mais vitais da organização social). Continua a autora,
Com efeito, foi somente depois da sua estada na União Soviética que Gramsci começou a
realizar a obra de tradução em linguagem histórica italiana” dosprincipais postulados da
doutrina e da tática da Internacional Comunista. Um dos primeiros e mais significativos
resultados desta obra foi a elaboração de um conceito de hegemonia que acolhia, em
particular, as indicações derivadas do terceiro pleno da Internacional (junho de 1923) sobre
a necessidade de que os partidos comunistas europeus ampliassem sua base social, se
tornassem partidos de massa, ou seja, conquistassem a maioria do povo italiano, através
da aplicação da tática da frente única, dirigida aos rivais socialdemocratas, e da promoção
de uma equivalente da Smychka (aliança entre operários e camponeses) nos respectivos
contextos nacionais (DI BIAGIO, 2010, p.88).
Além da proposta da NEP no plano interno, outra proposição leniniana, e levada em
conta por Gramsci, é a política da frente única que deveria ser adotada no plano externo.
Lênin a proe no IV Congresso da III Internacional, pela qual orienta a aproximão
entre socialistas e comunistas no sentido de fortalecer o movimento proletário
internacional ante a reação dos países aliados.
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Em 1922, no IV Congresso da III Internacional, Lênin propõe a fórmula da frente única da
classe operia, fundada sobre a unidade de ação sindical e política entre comunistas e
socialistas (o que não exclui, naturalmente, a crítica às posições dos socialistas) (GRUPPI,
1978, p.140).
Segundo Gualtieri (2010), a política da frente única foi inicialmente criticada por Gramsci
e pela direção do recém-criado PCdI. Mas em torno de 1924, Gramsci revê sua posição.
Reconhece que Lênin percebera o início de uma nova etapa na luta de classes, em
âmbito nacional e internacional.
Inicialmente, Gramsci não aceita a tática da frente única. Mas, em 1924, faz uma autocrítica
e aprova a proposição de Lênin. Depois de 1926, quando se encontra nos rceres do
fascismo italiano, ele reflete sobre os limites das concepções defendidas pelo movimento
operário mundial para realizar a revolução socialista. É quando investiga a passagem da
guerra de movimento à guerra de posição e, assim, da fórmula da revolução permanente
para a da hegemonia civil”. Então, ele indica a importância da frente cultural, ao lado das
frentes econômicas e políticas, salientando o fato de que fora Lênin quem observara a
necessidade dessa iniciativa (DORE SOARES, 2000, p. 46-47).
No caso da frente única, a aliança entre comunistas e socialistas era primordial ao
fortalecimento do socialismo diante do soerguimento das nações que formaram um
pacto internacional para isolar a Rússia, como os Estados Unidos, a Inglaterra e a
França. Além disso, manifestações de extrema direita já tinham começado a aparecer
na Alemanha e na Itália. Portanto, para Gramsci, a estratégia da frente única e também
a Nova Política Ecomica (NEP) teriam lançado os fundamentos para o
desenvolvimento da doutrina da hegemonia civil.
Elas marcariam a passagem daguerra de movimento àguerra de posição. É a partir
delas que Gramsci atribui a Lênin a elaboração da doutrina da hegemonia, a qual seria
a nova referência conceitual para entender o Estado moderno, típico das sociedades
ocidentais de capitalismo avançado. Essas políticas são tomadas por ele como
referência da formulação de novas estratégias para a luta social, que superavam o
confronto direto e aberto com a suposta máquina estatal ou o Estado Restrito. A
avaliação das políticas de Lênin aparece nos escritos carcerários de Gramsci.
[...] Me parece que Ilici (Lênin) compreendera que ocorria uma mudança da guerra de
movimento, aplicada vitoriosamente no Oriente em 17, à guerra de posição que era a única
possível no Ocidente, onde, como observava Krasnov, em breve espaço os exércitos
podiam acumular infinitas quantidades de munições, onde os quadros sociais eram ainda
por si capazes de se tornarem trincheiras municiadas. Isso me parece significar a fórmula da
«frente única» que corresponde à concepção de uma única frente de Entendimento sob o
comando de Foch (GRAMSCI, 1975, p.866).
Na Europa Central e Ocidental o desenvolvimento do capitalismo determinou não
apenas a formação de amplos estratos proletários, mas também criou um estrato
superior, a aristocracia operária, com seus anexos de burocracia sindical e de grupos
socialdemocratas. Segundo Gramsci, a determinação que na Rússia era direta e lançava
as massas às ruas para o assalto revolucionário, complicava-se na Europa Central e
Ocidental em função de todas essas superestruturas políticas, criadas pelo maior
desenvolvimento do capitalismo; tornando mais lenta e prudente a ação das massas e,
portanto, requerendo do partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática bem
mais complexas e de longo alcance do que aquelas que foram necessárias aos
bolcheviques no período entre março e novembro de 1917.
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Segundo Gramsci, Lênin ensinara que para vencer o inimigo do proletariado que era
poderoso e que possuía muitos meios e reservas à sua disposição , a classe
revolucionária teria não somente que aproveitar as fissuras apresentadas pelo seu bloco,
mas também utilizar todo aliado possível, ainda que incerto, oscilante e provisório.
Ensinou que, na guerra dos exércitos, não se pode atingir o objetivo estratégico, que é a
destruição do inimigo e a ocupação do seu território, sem ter antes atingido uma série de
objetivos táticos, visando a desagregar o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto.
Todo o período pré-revolucionário se apresentava como uma
(...) atividade predominantemente tática, voltada para a aquisição pelo proletariado de novos
aliados, para a desagregação do aparelho organizativo de ataque e de defesa do inimigo,
para o conhecimento e esgotamento de suas reservas (GRAMSCI, 2011, p.103).
Lênin não teve tempo de desenvolver plenamente a fórmula da hegemonia, apesar de
-la intuído como assinala Gramsci, chamando a atenção para as políticas que adotou,
como a NEP e a frente única.
Para De Felice (1978), a reflexão sobre a passagem da guerra de movimento à guerra
de posição, que Gramsci nos Quaderni considera a questão de teoria política mais
importante que emerge no pós-guerra, mas também a mais difícil de estabelecer
corretamente, permite-lhe intervir no debate do movimento comunista internacional com
uma contribuição de grande relevância, definindo uma relação fecunda com os
processos em movimento e com a questão da crise do capitalismo, superando a
oscilação entre catastrofismo e apologia do presente, e o empirismo esquemático da
categoria deestabilização, levemente adjetivada. Sobre essa questão e a tendo como
parâmetro, continua De Felice (1978), por todos os anos de 1920 mas com implicações
que vão além se mediu a formação, a resistência e a maturidade dos grupos dirigentes
do comunismo internacional, mas também a polarização no interior do grupo dirigente
bolchevique e, ainda mais relevante, a questão da soldagem entre a experiência
soviética e os movimentos revolucionários dos outros pses, atingindo, portanto, um
ponto delicado, mas central, que é aquele da concepção mesma do processo
revolucionário.
Próxima à oscilação abordada por De Felice (1978), mas com características singulares,
já se discutia no interior do Partido Bolchevique, antes mesmo da morte de Lênin, uma
questão central não só para a Rússia, mas que posteriormente seria também uma das
questões mais importantes (senão a principal) envolvendo os Partidos da III
Internacional: o futuro da Revolução, isto é, expandir a Revolução de Outubro para os
demais países da Europa Central e Ocidental, ou, ao contrário, construir o socialismo
num só país. Essa questão ficou conhecida comoa questão russa’ e será responsável
por um processo de cisão irreversível no interior do Partido líder da III Internacional.
Para Pons (2010) a chamadaqueso russa pode ser entendida seja como a
problemática da relação entre os interesses da Revolução Russa e os da revolução
mundial, seja como as consequências da luta pela sucessão no grupo dirigente
bolchevique. Essa questão impôs-se ao centro da atenção de todos os partidos
comunistas. Em geral, continua Pons (2010), os historiadores viram tal questão atras
do prisma das diretrizes do Komintern sobre a bolchevizão e sob o perfil da
intervenção do centro moscovita com o objetivo de condicionar, destituir, modificar os
grupos dirigentes periféricos. Mas seu significado foi muito além do disciplinamento
Kominterniano; a queso russa alcançou os partidos comunistas, projetando dentro
deles as categorias e as divisões próprias dos bolcheviques, conclui o historiador italiano.
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Para Aggio e Henriques (2010), a Revolução iniciada em outubro de 1917 acabaria
confinada à circunstância oriental e o movimento comunista nucleado na III Internacional
o Komintern -, se debateria, a partir de 1921, entre a hitese, nunca abandonada, de
uma suposta revolução iminente em alguns países-chave da Europa Ocidental, ou, em
vez disso, a de uma estabilização relativa’ do capitalismo, o que estaria a exigir uma
imaginação política mais sofisticada, de tipo aliancista, como aquela requerida pelo
estabelecimento das frentes únicas de partidos e movimentos operários, inclusive
socialdemocratas e reformistas.
Sobre a questão da estabilizão relativa do capitalismo, De Felice (1978) considera o
debate empreendido durante a III Internacional complexo e não linear. Para o autor, de
fato, se o registro formal de uma desaceleração da crise revolucionária e do
fortalecimento da resistência do capitalismo acontece na reunião do V Executivo
ampliado da Internacional Comunista (1925), tal avaliação acontece apenas um ano
depois do V Congresso da IC (1924), que foi marcado por um deslocamento geral à
esquerda das orientações do comunismo internacional; para De Felice (1978), tal
discrepância não acontece sem consequências seja na definição do fenômeno, seja na
capacidade de apropriar-se e de dominar os processos históricos gerais.
Segundo De Felice (1978) é muito fácil identificar as implicações gerais, e não apenas
políticas, relacionadas à definição da estabilizão relativa: o acento sobre o primeiro
elemento da definição significava o reconhecimento da possibilidade pelo capitalismo de
superar as próprias contradições e colocava, portanto, em discussão a tese fundamental
sobre a qual era baseada a análise, a elaboração e a própria iniciativa do comunismo
internacional (a atualidade da revolução); já o acento sobre o segundo elemento
significava marginalizar a análise científica da realidade, as experiências reais com as
quais ainda o movimento se chocava, reintroduzindo na relação com os fenômenos em
movimento elementos de finalismo.
Componente essencial na alise da estabilização, continua De Felice (1978), era a
avaliação a se fazer dos processos de reorganização técnico-produtiva (a
racionalização) em relação às perspectivas de desenvolvimento do capitalismo. O
relatório de Bukharin (VIII Plenum da IC que acontece entre novembro e dezembro de
1926) Estabilização capitalista e revolução proletária pode ser assumido como
referência para mensurar a comuno de temática com a reflexão gramsciana presente
nos Quaderni e especificamente no Caderno 22, mas também a profundidade das
diferenças seja no estabelecimento, seja nas perspectivas, conclui De Felice (1978). E a
contribuição de Bukharin sobre esse nó decisivo constitui um ponto alto no debate e na
reflexão comunista. De Felice (1978) afirma que o relatório de Bukharin é amplo: são
apresentados os dados que mostram a retomada capitalista (aumento da produção,
recomposição dos acordos comerciais interrompidos por causa da guerra) juntamente
aos elementos que mostram as modificações no processo de produção e reprodução
(irregularidades do clico industrial, desigualdade de desenvolvimento, cronicidade do
desemprego); Central é a consideração da importância crescente dos Estados Unidos
no equilíbrio internacional, da passagem para esse da hegemonia capitalista e da
transferência progressiva do comércio mundial do Atlântico para o Pacífico. Nesse
relatório de Bukharin, Os Estados Unidos exprimem em medida acentuada a curva
ascendente da economia capitalista, afirma De Felice (1978). Outra questão importante
contida no relatório de Bukharin, e retomada pelo historiador italiano, diz respeito à
importância do fenômeno da racionalização, que tem nos Estados Unidos e na
Alemanha um campo privilegiado de aplicação.
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Segundo De Felice (1978), na conclusão do debate, Bukharin reafirma com ainda mais
nitidez sua posição, distinguindo na racionalização o aspecto técnico, a ser salvo, e
aquele social, a ser combatido. Está presente nessa distião a proposta de uma relação
linear entre socialismo e desenvolvimento das forças produtivas, ainda que o ponto
central pareça ser evitar a questão do desenvolvimento, conclui o historiador italiano.
Gramsci no seu Caderno 22 consegue superar os impasses relacionados à questão da
estabilização do capitalismo e também a indeterminação presente no relatório de
Bukharin quando insere a racionalizão capitalista (o americanismo) no âmbito da mais
ampla queso do desenvolvimento e da transformação da formação ecomico-social
capitalista, ou seja, Gramsci elabora na análise dos processos em movimento, categorias
com as quais critica o catastrofismo e o economicismo ainda largamente presente nas
análises do comunismo internacional. Central, no realizar esse deslocamento de campo
e no medir a novidade do estabelecimento analítico, é a categoria de revolução passiva,
conclui De Felice (1978).
Sobre a queso de se expandir a Revolução para outros países ou, ao contrário,
construir e fortalecer osocialismo em um só país, percebe-se que o debate em torno
dela não era novo e não estava circunscrito à década de 1920-30 no interior da III
Internacional.
Para Knei-Paz (1985), Trótski, antes mesmo do início da Revolução em 1917, concebia
a teoria da revolução permanente (ou a revolução do atraso) como a única solução
possível ou o único modo de realizar a modernização e, ao mesmo tempo, a única
possível consequência do modelo que estava emergindo das específicas características
econômicas, sociais e políticas da Rússia que sofria de cima para baixo uma incipiente
modernização e industrialização patrocinadas pelo Czar, sem, no entanto, possuir uma
burguesia robusta. Para Trótski, continua Knei-Paz (1985), só seria possível transformar
a Rússia e fazer desaparecer suas anomalias por meio de um único e ininterrupto salto
em direção ao mundo moderno, capitaneado pela classe operária.
Segundo Knei-Paz (1985), Trótski não erao ingênuo a ponto de crer que, com base
nas condições majoritariamente primitivas e miseráveis da economia, pudesse surgir um
mundo moderno, mais ou menos socialista: as exigências da sociedade e as declaradas
intenções da classe revolucionária, ainda que seguidas por imediatas transformações
institucionais, não teriam sido suficientes para assegurar um salto que terminasse na
conquista do milênio socialista. O próprio Marx, continua o historiador polonês, não tinha
colocado como condição do socialismo a capacidade do homem já experimentada na
fase do capitalismo avançado de desenvolver aos mais altos níveis os meios e a
organização da produção econômica? Nesse sentido, continua Knei-Paz (1985), a
Rússia, quaisquer que tivessem sido as transformações industriais dos últimos decênios
do século XIX, estava somente no início e, no período pós-revolucionário, qualquer
tentativa pessoal de basear-se unicamente nos próprios recursos internos acabaria
pensava Trótski num completo desastre: ou o caos total ou uma tirania burocrática. À
luz desta premonição, conclui Knei-Paz (1985), não é, portanto difícil compreender como
no contexto da revolução do atraso Trótski colocasse o acento na revolução europeia
e mundial. Sem tal revolução, e KneiPaz (1985) pensa que Trótski estava certo, a
revolução russa estaria condenada à vingança do atraso’. Trótski era certamente
internacionalista por temperamento e mentalidade, mas o seu internacionalismo não era
somente a moldura idealista que lhe é tão frequentemente atribuída, mas era parte
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integrante da sua conceão das necessidades materiais da revolução russa, finaliza o
historiador polonês.
Importante salientar que o adjetivo permanente do conceito de revolução permanente’
de Trótski é sinimo de ininterrupta, de contínua. Assim, os acontecimentos de 1917
e os posteriores confirmaram a validade da teoria da revolução permanente? Para Knei-
Paz (1985), Trótski era levado a dar uma resposta positiva; e em certos aspectos, pode-
se pensar que o próprio Lênin tenha reconhecido a sua validade hisrica, acrescenta o
historiador polonês.
Segundo Knei-Paz (1985), Trótski, de qualquer modo, nos anos em que esteve no poder,
agiu como se a sua teoria estivesse se efetivando plenamente na realidade, e esperava
a revolução europeia como o último ato da dramática representação que ia se
desenvolvendo. Na realidade, ao contrário, a revolução europeia o aconteceu, e a
teoria da revolão permanente e a própria União Soviética encontraram-se diante de
uma realidade imprevista. Em última análise, acrescenta Knei-Paz (1985), as novas
alternativas que se apresentaram consistiam na doutrina do socialismo em um só país
e no sistema político que depois seria definido como stalinismo, enquanto a teoria da
revolução permanente era submetida a um maciço ataque político e doutrinário e
considerada uma heresia.
Doze anos depois de outubro de 1917, já no seu exílio, continua Knei-Paz (1985), Trótski
estava convencido, assim como doze anos antes, de que uma revolução operária
circunscrita às fronteiras da Rússia corria o perigo de um colapso. O historiador polonês
Baruch Knei-Paz, que dentre suas obras, publicou em 1974 o livro O pensamento Social
e Político de Leon Trótski, afirma que um dos postulados de base da teoria da revolução
permanente de Trótski é que um país atrasado pode ser o primeiro a ver realizada uma
revolução operária, mas não pode atingir o socialismo antes dos demais países
avançados, fora do contexto histórico mundial. Depois da morte de Lênin, afirma Pons
(2010), Gramsci não estabeleceu uma relação uvoca com nenhuma das correntes nas
quais se dividiu o bolchevismo, mas também jamais se afastou completamente das
categorias de pensamento bolchevique. Para Pons (2010), sua visão da NEP como
sistema de equilíbrios, desenvolvida nos Cadernos, apresentava uma evidente
inclinação bukhariniana’, além de uma óbvia derivão dos últimos escritos de nin, e
se nutria de uma concepção da dialética interna de partido de clara matriz trotskista. Nos
anos do cárcere, continua Pons (2010), Gramsci se mostrou consciente do cleo
bonapartista ativo no pensamento de Trotski, mas também viu Bukharin como o espelho
de uma ideologia oficial retida na fase econômico-corporativa’.
Para Pons (2010), Gramsci revelou uma sintonia evidente com Bukharin em torno da
ideia de que fosse de fato possível conciliar o processo de State Building soviético com
um papel ativo do comunismo internacional, num horizonte delineado em torno da
centralidade da URSS, mas ancorado na tradição revolucionária. Mas sua interpretação
do socialismo num só país, continua o historiador italiano, não limitava o papel do
movimento comunista à defesa da URSS e assumia como critério essencial de avalião
a capacidade de exercer uma hegemonia ideal.Por isso, a orientação isolacionista da
URSS e a orientação secria do Komintern, sob a direção de Stalin, tinham de parecer
a Gramsci no cárcere, a efetivação de um perigo já apontado (PONS, 2010, p.173).
Depois de 1929, afirma Pons (2010), o pensamento de Gramsci não seguiu nem o
percurso de Trótski, estruturado em torno da categoria de degeneração, nem o de
Bukharin, até o fim inclinado a apresentar a ditadura de Stalin como uma resposta
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necessária ao contexto internacional. Em vez disso, finaliza Pons (2010), a crítica de
Gramsci contra a virada ditada por Stalin no final dos anos 20 apresentava a centralidade
do nexo interior-exterior: através do prisma de tal interação, viu na Rússia pós-leniniana
a ausência das características indispensáveis ao exercício da hegemonia. Segundo
Pons (2010), a única passagem dos Quaderni em que aparece uma referência explícita
a Stalin, que remonta a fevereiro de 1933, apresenta-se-nos sob um ângulo diverso
daquele, habitualmente assinalado, da adesão de Gramsci ao socialismo num só país.
Sem dúvida, conclui o historiador italiano, Gramsci manteve uma adesão de princípio à
ideia: mas não pode escapar o fato de que sua polêmica antitrotskista era então um
expediente para criticar na realidade o curso político de Stalin e, verossimilmente,
também a linha secria do Komintern. Para Pons (2010), Gramsci delineou uma crítica
do nexo nacional-internacional na política da URSS, nas formas assumidas depois de
1928.
O desenvolvimento é na direção do internacionalismo, mas o ponto de partida é «nacional»
e é desse ponto de partida que interessa levar em consideração os movimentos. Mas a
perspectiva é internacional e não pode ser outra que essa. Importante, portanto, estudar
exatamente a combinação de forças nacionais que a classe internacional deverá dirigir e
desenvolver segundo a perspectiva e as diretrizes internacionais. A classe dirigente só pode
ser considerada como tal se interpretar exatamente essa combinação, da qual essa mesma
é componente e enquanto tal, justamente, pode dar ao movimento um certo direcionamento
em certas perspectivas. Sobre esse ponto me parece estar localizado o dissídio fundamental
entre Leone Davidovici (Trótski) e Bessarione (Stalin) como intérprete do movimento
majoritário (GRAMSCI, 1975, p. 1729).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No confronto ideológico e político com a atmosfera da Segunda e da Terceira
Internacionais, Gramsci se forma, critica os elementos positivistas, economicistas e
mecanicistas que se apropriaram da filosofia da práxis, deturpando-a, como também
elabora e reelabora conceitos fundamentais que o auxiliarão na tentativa de pensar a
construção de uma hegemonia por parte dos grupos sociais subalternos. O pensador
sardo se apropria dialeticamente de ideias e conceitos forjados num movimento por ele
compreendido e lido’ de organização da sociedade civil e a respectiva ampliação do
Estado Burguês nas sociedades de capitalismo avançado, não deixando passar
despercebidos os limites e alcances de tal ampliação. Mas não serão apenas as ideias
e os conceitos surgidos nos contextos das Internacionais e do ambiente de luta socialista
e comunista que o influenciarão. Principalmente durante a tessitura dos Quaderni e a
discussão do conceito de hegemonia, Gramsci dialogará com correntes anteriores ao
seu contexto de formação e de vertentes não marxistas como, por exemplo, a obra de
Renan. E isso acontece exatamente quando pensa em construção da hegemonia por
parte dos grupos sociais subalternos, colocando em relevo o aspecto da organização da
cultura e a educação das massas.
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Data da submissão: 06/03/2021.
Data da aprovação: 29/04/2021.