Trabalho & Educação | v.31 | n.1 | p.47-67 | jan-abr | 2022
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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2022.39227
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

1
MARQUES, Rodrigo Moreno
2
RESUMO
No trecho dos Grundrisse, conhecido como Fragmento sobre as quinas, Marx discute o papel do
conhecimento coletivo, que ele chama de intelecto geral, em processos de produção da grande
indústria, onde a automação industrial tende a expulsar do processo de trabalho o único agente capaz
de criar valor: o trabalhador. Nesse exercio de refleo, Marx imagina que essa contradão poderia
abalar as bases do modo de prodão capitalista e abrir uma janela para sua superão. O intelecto
geral de Marx é o ponto de partida do artigo, que tem como objetivos: (i) analisar a controversa hitese
acerca do intelecto geral que Marx registra nos Grundrisse; (ii) apresentar a origem da expressão
intelecto geral, que data do começo do culo XIX, cadas antes do seu registro nesse manuscrito; e
(iii) revelar como Marx supera aquela interpretão alguns anos depois, ao expor suas conclusões sobre
o papel da ciência e da técnica nos processos de produção capitalistas. Este artigo estabelece uma
interlocução com algumas reflees de Matteo Pasquinelli e Michael Heinrich, entre outros autores, em
confronto com os escritos que Marx nos legou.
Palavras-chave: Intelecto geral. Karl Marx. Marxismo. Economia Potica
ABSTRACT
In the excerpt from the Grundrisse known as Fragment on machines, Marx discusses the role of
collective knowledge, which he terms general intellect, within the production processes of large-scale
industry, where industrial automation tends to expel from the working process the only agent who can
create value: the worker. According to Marxs supposition, this contradiction could undermine the
foundations of the capitalist mode of production and bring the possibility of its overcoming. Marx's general
intellect is the starting point of the article, which aims: (i) to analyze the controversial hypothesis about
the general intellect that Marx exposes in the Grundrisse; (ii) to present the origin of the expression
general intellect, which dates from the beginning of the 19th century, decades before its registration in
this manuscript; and (iii) to reveal how Marx overcomes that interpretation a few years later, when he
presents his conclusions about the role of science and technology in capitalist production processes.
The article establishes an interlocution with some thoughts of Matteo Pasquinelli and Michael Heinrich,
among other authors, confronting them with Marxs writings.
Keywords: General Intellect. Karl Marx. Marxism. Political Economy.
1
O texto amplia discussão apresentada no III Congresso Internacional Marx em Maio, ocorrido em Lisboa (Portugal) em
maio de 2018, e no II Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo, ocorrido na Faculdade de Educação (FaE)
da UFMG, em Belo Horizonte (MG), em setembro de 2018.
A pesquisa recebeu financiamento da CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior/Ministério da Educão e Cultura.
2
Doutor e Mestre em Ciência da Informação pela Escola de Ciência da Informação (ECI) da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Teoria e Gestão da Informação, na ECI (UFMG), em Belo Horizonte
(MG). E-mail: rodrigomorenomarques@yahoo.com.br
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INTRODUÇÃO
Karl Marx, no excerto chamado Fragmento sobre as máquinas, pertencente aos
manuscritos conhecidos como os Grundrisse (MARX, 2011), levanta a possibilidade de
uma reconfiguração futura do universo do trabalho, quando ele não seria mais dominado
pela lei do valor, especialmente diante das atividades em que predomina o emprego do
conhecimento coletivo, que o autor designa intelecto geral.
3
Ao apresentar esse exercício
de refleo, Marx antevê que, com o desenvolvimento da grande instria e com o
avanço da automação industrial, a criação de riqueza iria depender menos do tempo de
trabalho empregado nos processos produtivos e passaria a depender mais da
capacidade dos trabalhadores, do avanço da ciência e da sua aplicação à prodão.
Diante dessa perspectiva, Marx argumenta que a produção baseada no valor de troca
desmoronaria, ou seja, o modo de produção capitalista iria ruir. Portanto, Marx vislumbra
um cenário em que o conhecimento e o avanço tecnológico adquirem um potencial
libertador que colocaria em xeque a dominação do capital.
Apesar de Marx jamais ter empregado novamente a expressão intelecto geral ou
desenvolvido esse exercício especulativo, essa passagem tem fomentado instigantes e
controversos debates na arena da Economia Política. Publicado pela primeira vez em
Moscou em 1939 e, depois, em Berlim em 1953, nos anos 1960 esse excerto sobre as
máquinas ganhou projeção a partir da sua divulgação pelo movimento italiano operaísta,
também conhecido como movimento autonomista. Desde então, esse fragmento tem
sido objeto de diferentes interpretações e debates calorosos (BOLAÑO, 2007;
PASQUINELLI, 2019; PRADO, 2014; VIRNO, 1990).
O intelecto geral de Marx será meu ponto de partida para a discussão apresentada nesse
artigo, cujos objetivos são: (i) analisar a controversa hipótese acerca do intelecto geral
que Marx registra nos Grundrisse; (ii) apresentar a origem da expressão intelecto geral,
que data do como do século XIX, décadas antes do seu registro nesse manuscrito; e
(iii) revelar como Marx supera aquela interpretação alguns anos depois, ao expor suas
conclusões sobre o papel da ciência e da técnica nos processos de produção capitalistas.
Este artigo está estruturado em seis seções. Após a introdução, apresento os Grundrisse
e discuto algumas passagens do Fragmento sobre as máquinas, que estão articuladas
com a não de intelecto geral.
A terceira são aborda a origem da não de intelecto geral. Conforme aponta
Pasquinelli (2019), a expressão tem sua origem no contexto do debate público que ficou
conhecido como Questão da Maquinaria, ocorrido na Inglaterra nas primeiras décadas
do século XIX. Naquela ocasião, diante da substituição massiva de trabalhadores por
máquinas industriais, surge a campanha Marcha do Intelecto, que defendia a expansão
da educação das massas para melhor qualificar os trabalhadores.
Na seção seguinte, evidencio como Marx, a partir do como da década de 1860, ao
analisar o papel do conhecimento e da tecnologia na produção capitalista, abandona
aquelas especulações sobre o intelecto geral em favor de uma interpretação mais realista
das contradições aí presentes. O conhecimento e a técnica deixam de ser apresentados
como instrumentos de emancipação da classe trabalhadora e assumem um caráter
alienado e estranhado.
3
No manuscrito, Marx registra o termo em inglês general intellect (2011, p. 589).
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Na sequência, o artigo apresenta o argumento de Michael Heinrich (2013), segundo o
qual a ideia de intelecto geral é adotada por Marx (2011) numa tentativa de decifrar o
chamado enigma de Quesnay. Se na ocasião da redação dos Grundrisse, Marx ainda
não dominava plenamente o complexo categorial necessário para elucidá-lo, alguns
anos depois ele apresentará sua resposta para aquele mistério. Nessa seção do artigo,
apresento uma série de evidências, extraídas de textos de Marx, que confirmam a
interpretação de Heinrich.
Por fim, abordo uma probletica aproximação que Pasquinelli (2019) estabelece entre
o trabalhador coletivo e o intelecto geral, aproximação essa que leva o filósofo italiano a
concluir que Marx teria abandonado a noção de intelecto geral e adotado a categoria
trabalhador coletivo por motivações políticas.
OS GRUNDRISSE E O INTELECTO GERAL
O manuscrito intitulado Esboços da Crítica da Economia Política (Grundrisse der Kritik
der politischen Ökonomie), conhecido como os Grundrisse, foi produzido por Marx nos
anos 1857 e 1858, quase dez anos antes da publicão do Livro I de O Capital. Nesse
manuscrito, o autor registra o alcance das suas pesquisas no campo da Economia
Política depois de transcorrida uma década e meia desde que ele iniciara seus estudos
econômicos com o objetivo de revelar a anatomia da sociedade civil (MARX, 2003, p.
4), ou seja, os fundamentos da sociedade burguesa moderna e o modo de produção
capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação (MARX, 2013,
p. 78).
Nos anos que se sucederam à sua chegada a Londres como exilado em 1849, a vida
de Marx é marcada por articulações políticas e pelo trabalho de redação de artigos para
o periódico New York Daily Tribune. Se por um lado essa atividade profissional lhe
reduzia as severas dificuldades financeiras em que vivia na ocasião, por outro lado, essa
ocupação o impedia de aprofundar as pesquisas que ele havia iniciado em 1850 na
biblioteca do Museu Brinico. Em 1856, o recebimento de uma herança da mãe de
Jenny, esposa de Marx, trouxe para a família um momentâneo alívio econômico e
permitiu que Marx retomasse com afinco suas pesquisas, que vinham sendo
constantemente interrompidas desde o começo da década (BRIGGS, CALLOW, 2008;
MEHRING, 2014).
Ao final da redação desses manuscritos, Marx afirmou orgulhosamente, em carta a
Ferdinand Lassalle em 12 de novembro de 1858, que ali estava "o resultado de quinze
anos de pesquisas, ou seja, dos melhores anos da minha vida" (1983b, p. 354).
Os Grundrisse não foram redigidos com o propósito de publicação, mas para
esclarecimento do próprio autor. Trata-se de um conjunto de textos em que Marx registra
suas reflexões, ao mesmo tempo em que expõe os dilemas teóricos que enfrenta, busca
alternativas para superá-los e, nesse esforço, produz valiosos registros que revelam
como operava o seu método de investigação e como amadureciam suas ideias. Apesar
de as categorias empregadas nesse manuscrito não terem ainda o alcance e a
articulação que receberiam posteriormente em O Capital, esses textos são
importantíssimos, pois nos permitem reconstruir o percurso trilhado pelo autor durante a
constrão do seu arcabouço teórico (PAULA, 2010; ROSDOLSKY, 2001). Estamos
diante, portanto, de alguns cadernos de notas dolaboratório de Marx, segundo a feliz
expressão adotada por Bellofiori et al. (2013).
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Esse caráter investigativo e provisório dos Grundrisse diferencia esse texto de outras
obras de Marx que apresentam apurado cuidado estilístico e rigor com o aspecto
expositivo. Conforme argumenta Paula (2010, p. 7), ressalta-se o inacabamento dos
Grundrisse, seu caráter às vezes elíptico, às vezes cifrado, outras vezes ainda
exploratório, que demandaria reelaboração sistemática para ter plena eficácia
expositiva. Apesar dessas características e do fato de sua teoria do valor o estar
plenamente desenvolvida nesse texto, nota-se que alguns aspectos essenciais do
arcabouço teórico de Marx estão ali expostos de maneira reveladora e instigante. Esses
manuscritos podem ser considerados "textos únicos e insubstituíveis ao abordar, de
maneira inteiramente luminosa, questões cruciais, como as formas de produção pré-
capitalistas, como o significado histórico do avanço científico e tecnológico" (PAULA,
2010, p. 8).
Tendo em vista os objetivos do presente artigo, interessa-nos o trecho dos Grundrisse
conhecido como Fragmento sobre as máquinas (MARX, 2011, p. 587-589) em que o
autor adota o termo intelecto geral e faz algumas conjecturas sobre possíveis
desdobramentos do progresso tecnológico e da automação industrial que emergia com
a expansão da grande indústria.
Antes do referido fragmento de Marx, merecem destaque algumas reflexões do autor
sobre as metamorfoses dos meios de trabalho que, transformados cada vez mais pela
intensificação do uso da maquinaria, o vida a um aumato cujos membros
conscientes são os próprios trabalhadores:
Assimilado ao processo de produção do capital, o meio de trabalho passa por diversas
metamorfoses, das quais a última é a máquina ou, melhor dizendo, um sistema automático
da maquinaria [...] posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se
movimenta por si mesma; tal autômato consistindo em numerosos órgãos menicos e
intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros
conscientes dele (MARX, 2011, p. 580).
Nesse contexto, a atividade do trabalhador limita-se a supervisionar a ação do sistema
automático da maquinaria e evitar que ocorram falhas. Ou seja, a atividade do
trabalhador, como um supervisor da produção, limita-se a mediar o trabalho do sistema
de máquinas sobre as matérias-primas (MARX, 2011, p. 580-581).
Até a emergência da maquinaria, a produção baseava-se no instrumento tradicional de
trabalho, que era animado pela habilidade e virtuosidade do seu manipulador. A
ferramenta e o trabalho a ela associado deram lugar a um sistema no qual o trabalhador
é subjugado e dominado por um poder que lhe é estranho:
A atividade do trabalhador, limitada a uma mera abstração da atividade, é determinada e
regulada em todos os seus aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o inverso. A
ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como
autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre
ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina (MARX,
2011, p. 581).
Marx descreve um sistema em que o trabalho está subsumido à maquinaria viva,
apresentando-a como um poderoso organismo que torna insignificantes o saber e a
atividade isolada do trabalhador. Assim, o saber e o conhecimento socialmente
construídos são absorvidos pelo capital fixo: A acumulação do saber e da habilidade,
das forças produtivas do cérebro social, é absorvida no capital em oposição ao trabalho,
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e aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital
fixo (MARX, 2011, p. 582).
O autor expõe então um controverso exercício especulativo em que enfrenta uma
pergunta fundamental para a apreensão das especificidades históricas da sociedade civil
burguesa e do seu modo de produção: Qual o papel do conhecimento e da tecnologia
no modo de prodão capitalista?
Em seu exercício de reflexão, Marx (2011) afirma que, diante da crescente importância
da ciência e suas aplicações tecnológicas, a participação do trabalho humano na
produção é reduzida quantitativa e qualitativamente. Assim, o próprio capital expulsa do
processo de produção o único elemento capaz de criar valor, ou seja, o trabalho humano.
O capital produz uma contradição que opera no sentido da superação desse modo de
produção.
Na mesma medida em que o tempo de trabalho - o simples quantum de trabalho - é posto
pelo capital como único elemento determinante de valor, desaparecem o trabalho imediato
e sua quantidade como o prinpio determinante da produção [...] e é reduzido tanto
quantitativamente a uma propoão insignificante, quanto qualitativamente como um
momento ainda indispenvel, mas subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação
tecnológica das ciências naturais, de um lado, bem como à força produtiva geral resultante
da articulação social na produção total [...]. O capital trabalha, assim, pela sua própria
dissolução como a força dominante da produção (MARX, 2011, p. 583).
Nesse trecho do manuscrito, Marx aborda a maquinaria inserida num processo de
controle do capital sobre o trabalhador, por meio do qual o trabalho humano é dominado
pelo trabalho da maquinaria. No entanto, algumas páginas depois, Marx passa a
examinar posveis desdobramentos que poderiam advir do desenvolvimento da grande
indústria. Ele divaga sobre os limites históricos da base cnica do capitalismo avançado
e vislumbra um cenário em que o conhecimento iria adquirir um potencial libertador que
colocaria em xeque a dominão do capital. Marx entrevê a possibilidade dessa
reviravolta revolucionária em um tempo futuro quando os processos produtivos
dependeriam fundamentalmente do conhecimento coletivo, que ele designa intelecto
geral.
Antes de apresentar esse exercício de refleo, o autor aponta a perspectiva de
apropriação pela classe trabalhadora do conhecimento científico empregado na
produção. Além disso, antevê que, com o desenvolvimento da grande indústria, a crião
de riqueza iria depender menos do tempo de trabalho empregado nos processos
produtivos, passando a depender mais da capacidade dos trabalhadores e do avanço
da ciência e sua aplicação à produção. Nos termos de Marx:
à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza efetiva passa a
depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder
dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que - sua poderosa
efetividade -, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que
custa sua produção, mas que depende, ao contrário, no nível geral da ciência e do progresso
da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção (MARX, 2011, p. 587-588).
Ao apresentar essas conjecturas, Marx prenuncia uma situão futura quando a
produção de valor deixaria de depender fundamentalmente da quantidade de tempo
trabalhado. Nesse contexto, afirma ele, a produção baseada no valor de troca
desmoronaria, ou seja, o capitalismo iria ruir:
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Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de sustentação da produção e
da riqueza não é nem o trabalho imediato que o pprio ser humano executa nem o tempo
que ele trabalha, mas a apropriação da sua própria força produtiva geral, sua compreeno
e seu domínio da natureza por sua existência como corpo social - em suma, o
desenvolvimento do indiduo social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a
riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse
novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Tão logo o
trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho
deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida [...]. O trabalho excedente da massa deixa de
ser condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho de uns
poucos deixa de ser condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano.
Com isso, desmorona a prodão baseada no valor de troca (MARX, 2011, p. 588).
Essa contradição, que opera no sentido de superar a dominação do capital, traz a
possibilidade do livre desenvolvimento das individualidades, pois a redução do tempo de
trabalho socialmente necessário a um mínimo não estaria mais voltada à amplião do
tempo de trabalho excedente, mas à "formação artística e científica etc. dos indivíduos
por meio do tempo liberado e dos meios criados para todos eles" (MARX, 2011, p. 588).
É o próprio capital, "contradição em processo" segundo Marx, que reduz o tempo de
trabalho a um mínimo e, simultaneamente, toma o tempo de trabalho como "única
medida e fonte da riqueza". Assim, o capital "diminui o tempo de trabalho na forma do
trabalho necesrio para aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida
crescente o trabalho supérfluo como condição - questão de vida e morte - do necessário
(MARX, 2011, p. 589). Essas especulações ensejam a possibilidade de que o tempo
livre, o o tempo de mais trabalho, seja associado à riqueza:
Uma nação é verdadeiramente rica quando se trabalha 6 horas em lugar de 12 horas. A
riqueza não é o comando sobre o tempo de trabalho excedente (riqueza real), mas tempo
disponível para cada indiduo e toda a sociedade para além do usado na produção imediata
(MARX, 2011, p. 589).
Segundo essa perspectiva emancipatória, vislumbrada nesse exercício de reflexão
sobre o progresso da maquinaria e a aplicão do conhecimento aos processos de
produção, o aprimoramento tecnológico do capital fixo indicaria em que medida o
intelecto geral, isto é, o conhecimento socialmente construído, teria se tornado uma força
produtiva imediata e assumido o controle das condições do processo vital da sociedade.
A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas
de fiar automáticas etc. Elas o produtos da indústria humana; material natural
transformado em órgãos do cérebro humano criados pela ação humana; força do saber
objetivada. O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber social geral,
conhecimento, deveio foa produtiva imediata e, em conseqncia, até que ponto as
próprias condições do processo vital da sociedade ficaram sob o controle do general intellect
e foram reorganizadas em conformidade com ele. Até que ponto as forças produtivas da
sociedade são produzidas, não na forma do saber, mas como órgãos imediatos da práxis
social; do processo real da vida (MARX, 2011, p. 589, grifo nosso).
Em suma, nessas passagens dos Grundrisse, Marx registra uma controversa digressão
que ele jamais retomaria em qualquer outra publicação ou manuscrito. Ele levanta a
possibilidade de uma reconfiguração do universo do trabalho, especialmente nos
processos de produção em que predomina o emprego do conhecimento e da tecnologia,
quando a lei do valor deixaria de vigorar, fomentando a autodestruição do modo de
produção capitalista.
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Mas qual seria a origem da expressão intelecto geral que Marx adotou apenas uma vez
em toda sua vida?
A ORIGEM DA NOÇÃO DE INTELECTO GERAL
Pasquinelli (2019), em instigante pesquisa documental e bibliográfica, revela a origem da
expressão intelecto geral, que remonta ao começo do século XIX, na Inglaterra, algumas
décadas antes de Marx empregá-la nos Grundrisse. Em carta enviada em maio de 1824
ao jornal britânico The Times, o industrialista e socialista utópico Robert Owen afirmava
que, naqueles anos, a mente humana estava obtendo os mais rápidos e extensivos
avanços no conhecimento da natureza humana e no conhecimento geral. Owen
chamou esse fenômeno de marcha do intelecto” e acreditava que ele tinha atingido tal
ritmo que não poderia mais ser interrompido. Assim, na ocasião, surgiu a campanha
Marcha do Intelecto, que defendia a melhoria de males da sociedade por meio de
programas de educação pública para as classes mais pobres. Esse movimento estava
inserido na chamada Questão da Maquinaria, um debate público ocorrido naquele país,
quando crescia o desemprego de trabalhadores que estavam sendo massivamente
substituídos por máquinas industriais. Como remédio para esse problema que emergia
nos primórdios da automação industrial inglesa, a campanha demandava uma educação
que qualificasse trabalhadores para lidar com o maquinário industrial. Nesse contexto,
em 1823 foi criado o Instituto de Mecânica de Londres () e
em 1829, fundada a Sociedade para Difusão de Conhecimento Útil (Society for Diffusion
of Useful Knowledge), voltada para aqueles que não tinham acesso ao sistema escolar.
No mesmo ano, foi fundada a London University, que se tornaria depois a University
College London.
A campanha Marcha do Intelecto desencadeou uma resposta reacionária por parte do
jornal The Times, que passou a publicar regularmente até o ano de 1850, sob o título
Marcha do Intelecto, alguns textos, gravuras e poemas que ridicularizavam e satirizavam
as limitações intelectuais dos semiletrados da classe trabalhadora, bem como suas
ambições intelectivas. Nessa série de publicações, o racismo também se fazia presente,
como, por exemplo, em uma publicação intitulada “Marcha do Intelecto da África, que
zombava da ascensão social de um califa argelino (HANCHER, 2016).
Esse discurso textual e imagético que se manifestou por tão longo período nas páginas
do jornal The Times revela como a burguesia inglesa tratava o conhecimento e a ciência:
não somente como símbolo de uma classe superior, mas tamm como instrumento de
dominação de classe. A sinceridade brutal desse discurso nos remete ao projeto social
que Bernard de Mandeville defendia em sua Fábula das Abelhas, publicada
originalmente no como do século XVIII:
Para que a sociedade seja feliz e o povo tranquilo nas circunstâncias mais adversas, é
necessário que grande parte dele seja ignorante e pobre. O conhecimento não só amplia,
como multiplica nossos desejos. [...] Portanto, o bem-estar e a felicidade de todo Estado ou
reino requerem que o conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos
limites de suas ocupações e jamais se estenda além daquilo que se relaciona com sua
missão. Quanto mais um pastor, um arador, ou qualquer outro camponês souber sobre o
mundo, e sobre o que é alheio ao seu trabalho e emprego, menos capaz será de suportar
as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria e contentamento. A leitura, a escrita e a
aritmética [...] são muito perniciosas aos pobres (MANDEVILLE, 1732, p. 328).
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Em 1828, o periódico The London Magazine, rival e opositor do Gentleman's Magazine,
que representava os Tories conservadores, endossou a Marcha do Intelecto, em nome
do benefício dointelecto geral do país, em um texto intitulado Educação do Povo, que
abriu a edição de abril-julho:
São quase vinte anos desde que o primeiro impulso foi dado para o intelecto geral desse
país, por meio da introdução de um novo sistema de ensino da leitura e da escrita, por meio
de métodos mais baratos e eficazes do que os anteriores [...]. O espírito público tem
avançado infinitamente. Apesar de toda a zombaria envolvida na expressão marcha do
intelecto, o fato inegável é que o intelecto geral do país progrediu bastante. E um dos
primeiros frutos da inteligência estendida tem sido a convicção universal de que nosso
sistema legal, muito longe de ser o melhor do mundo, é extremamente ruim e está diante de
uma necessidade premente de reforma e revisão (THE LONDON MAGAZINE, 1828).
Mas a ideia de intelecto geral não ganhou projeção apenas em jornais da época. Ideia
semelhante tamm se fez presente nas obras de autores da Economia Política que
Marx (2011, 2013, 2017a) explorou e citou, como, por exemplo, os socialistas William
Thompson (1824), Thomas Hodgskin (1827) e Robert Owen (1837), os cientistas
Charles Babbage (1832) e Andrew Ure (1835), dentre outros.
Conforme destaca Pasquinelli (2019), o socialista William Thompson foi o precursor no
uso da expressão intelecto geral (THOMPSON, 1824, p. 298). No mesmo sentido,
Thompson também empregou os termos conhecimento geral da mente humana (1824.
p. 330), progresso do conhecimento geral (1824, p. 369, 376, 379) e potência
intelectual geral (1824, p. 291). Thompson empregou a expressão intelecto geral numa
passagem em que critica a desigual distribuição de conhecimento entre os homens e as
mulheres:
o intelecto geral de toda a comunidade, masculina e feminina, é atrofiado ou pervertido na
infância, ou mais comumente ambos, ao ocultar das mulheres o conhecimento possuído
pelos homens. [...] Por meio da manutenção da ignorância nas mulheres, metade da raça
humana se opõe em interesse e está em incessante conspiração contra a superioridade
intelectual da outra metade. [...] O único e simples remédio para os males decorrentes
dessas instituições quase universais da escravidão doméstica de metade da raça humana
é erradi-los totalmente. Dar a homens e mulheres direitos civis e políticos iguais
(THOMPSON, 1824, p. 298-300).
Thompson defende o fim da crescente separão entre conhecimento e trabalho que ele
percebe em seu tempo. No curso do progresso da civilização, argumenta ele, o trabalho
e o conhecimento naturalmente acabaram se separando, pois os processos de trabalho
se tornavam mais complicados e requeriam mais acurácia e habilidade; o progresso do
conhecimento abrangia mais objetos e necessitava de mais tempo e atenção para ser
alcançado (1824, p. 275). No entanto, Thompson, de maneira otimista, prenunciava que
o pleno desenvolvimento da civilização iria unir novamente trabalho e conhecimento”
(1824, p. 275). Em uma futura civilização melhorada, sob a influência da segurança
perfeita, eles se reunirão novamente, aprimorados e maduros, para não mais se separar,
porque a felicidade de todos o exige; e porque o próprio progresso e desenvolvimento
da arte social desdobrou os meios para tal (1824, p. 275-276). Segundo Thompson, a
distribuição de conhecimento (1824, p. 278) seria um dos elementos que conduziriam
à chamada igualdade voluntária na distribuição de riqueza (1824, p. 381).
Porém, apesar do seu otimismo, Thompson (1824, p. 291-293) reconhecia que, na
produção industrial, o conhecimento e o treinamento laboral constituíam um poder
contrário aos interesses dos trabalhadores. As operações industriais repetitivas podiam
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ser conduzidas por trabalhadores totalmente ignorantes em relação aos princípios do
conhecimento aí envolvido, tão ignorantes quanto cavalos ou máquinas empregadas.
O autor (1824, p. 291) criticava os males do treinamento parcial, que forjava autômatos
intensivamente treinados com o objetivo claro de manter os trabalhadores distantes do
efetivo conhecimento da máquina e impedi-los de perceber a exploração a que estavam
sendo submetidos. Nas palavras de Thompson, o objetivo por trás dessa realidade seria
manter a parte viva da maquinaria ignorante dos dispositivos secretos que regulam a
máquina e para reprimir as potências gerais de suas mentes, com receio de que,
pesquisando, eles descobrissem que foram feitos para trabalhar duramente para outros e
que os frutos de seus próprios trabalhos foram, por meio de centenas de artifícios, tirados
deles (1824, p. 292-293).
Thompson não era uma voz isolada no enfrentamento dessas questões. Naquele tempo,
também tomaram parte no debate Thomas Hodgskin (1827)
4
, Charles Babbage (1832)
5
,
Andrew Ure (1835)
6
, Robert Owen (1837)
7
, dentre outros.
Portanto, conforme acertadamente defende Pasquinelli (2019), é com esse conjunto de
autores e temáticas que Marx está dialogando no Fragmento sobre as máquinas (MARX,
2011), assim como no Livro I de O Capital (MARX, 2013), especialmente na são IV,
nos capítulos 12 - Divisão do trabalho e manufatura e 13 - Maquinaria e grande indústria,
onde Marx retoma a discussão do tema.
Porém, ao retomar o tema em sua obra magna, Marx (2013) revela, com rigor e clareza,
uma apreensão da realidade bastante distinta daquela que havia rascunhado dez anos
antes no Fragmento. Na obra madura de Marx, não há nenhuma referência a um
possível caráter emancipatório no conhecimento materializado na maquinaria. O
conhecimento científico e os avanços tecnológicos empregados nos processos
produtivos capitalistas não engendram o desmoronamento da produção baseada no
valor de troca. Nessa nova perspectiva de Marx, a tecnologia, tendo sido subsumida à
sociabilidade do capital, constitui um instrumento a serviço da alienação e do
estranhamento do trabalho e dos produtos do trabalho, um instrumento cuja finalidade é
a amplião do roubo da riqueza produzida pela classe trabalhadora. É o que o artigo
aborda a seguir.
4
Thomas Hodgskin, socialista ricardiano de tendências libertárias, foi um dos fundadores do London Mechan.
5
O cientista, matetico e inventor Charles Babbage é conhecido por ter concebido um equipamento mecânico
considerado a primeira calculadora progravel da história. Antes dele, Blaise Pascal e Gottfried Leibniz já tinham criado
engenhocas mecânicas de calcular. O salto conceitual de Babbage foi projetar um equipamento que não desempenhava
apenas um tipo de cálculo, mas podia ser programado para executar diferentes operações. Sua inspiração foi o
revolucionário tear automático de Joseph-Marie Jacquard, que usava cartões perfurados para definir a trama do tecido de
seda (ISAACSON, 2014).
6
O liberal Andrew Ure foi médico, químico, geólogo e fundador do observatório Garnet Hill. Marx se refere às ideias de
Ure como a a expreso clássica do espírito fabril, não só por seu franco cinismo, mas também pela ingenuidade com
que deixa escapar as contradições irrefletidas que habitam o cérebro do capital (MARX, 2013, p. 509).
7
O socialista e industrial Robert Owen, pai das fábricas e armazéns cooperativos (MARX, 2013, p. 571), tinha, segundo
Marx, planos utópicos de reforma social (2013, p. 151). No entanto, merece nota o fato de que Owen inspirou Marx em
suas reflexões sobre Educação: Do sistema fabril, como podemos ver em detalhe na obra de Robert Owen, brota o germe
da educação do futuro, que há de conjugar, para todas as crianças a partir de certa idade, o trabalho produtivo com o
ensino e a ginástica, não só como forma de incrementar a produção social, mas como único todo para a produção de
seres humanos desenvolvidos em suas múltiplas dimenes (MARX, 2013, p. 554).
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O PAPEL DO CONHECIMENTO E DA TECNOLOGIA NO MODO DE PRODUÇÃO
CAPITALISTA
Alguns anos depois de especular nos Grundrisse sobre o possível caráter emancipatório
do intelecto geral, Marx mostra ter superado aquela interpretação. Isso fica evidente em
diversos registros e publicações em que o autor trata do conhecimento científico e
tecnológico aplicado aos processos de produção capitalistas. Merece destaque, em
primeiro lugar, O Capital Livro I (MARX, 2013), especialmente a seção IV, que aborda
o mais-valor relativo, a cooperação, a divisão do trabalho, a maquinaria e a grande
indústria. Tamm são relevantes os textos preparatórios para publicação de O Capital,
como os cadernos V, XIX e XX dos Manuscritos de 1861-1863 (MARX, 1994a, 1994b,
2007, 2010a), assim como o Capítulo VI (inédito) de O Capital, redigido em 1864 (MARX,
1978).
Nesses trabalhos de Marx, são encontradas fartas evidências textuais que comprovam
que sua controversa hipótese sobre intelecto geral foi abandonada por ele. Em seu lugar,
emerge uma interpretação mais consistente acerca das relações sociais que constituem
o modo de produção especificamente capitalista. Marx enfatiza que, a partir da revolução
industrial, o conhecimento e a cnica aplicados aos processos produtivos passam a
estar subordinados ao capital em detrimento da classe trabalhadora.
A obra de Babbage (1832) apresenta um princípio com o qual Marx (2013) concorda ao
analisar o papel da maquinaria na produção capitalista. Segundo esse princípio, a divisão
técnica do trabalho deve ser feita para minimizar o aprendizado e as habilidades
necessárias ao labor, com o objetivo de baratear os custos de produção.
8
Quanto mais
pormenorizadas forem a divisão e a subdivisão do trabalho, menor será o nível de
habilidade requerido na produção. Uma vez que, entre as atividades fracionadas,
algumas exigem diferentes graus de perícia e força, o fracionamento permite comprar
precisamente a exata quantidade de cada uma das parcelas necessárias aos processos
produtivos. Assim, as frações da força de trabalho responsáveis pelo trabalho dividido
podem ser compradas pelo capitalista pelo seu menor valor individual. Segundo as
palavras de Babbage:
A facilidade de adquirir habilidade em um único processo, bem como o breve período
requerido para que ela se torne uma fonte de lucro, induzirão um número maior de pais a
introduzir seus filhos nela. Adicionalmente, a partir desta circunstância, aumentando o
número de trabalhadores, os salários logo cairão (1832, pp. 170-171).
Babbage é um dos pioneiros defensores da "divisão do trabalho mental" (1832, p.191).
Sua referência aos 'diferentes graus de perícia e força' evidencia que seu ponto de vista
se aplica aos trabalhos desqualificados e àqueles eminentemente dependentes da
cognição, do conhecimento e das habilidades dos trabalhadores.
Para Marx (2013), o desenvolvimento e o aprimoramento tecnológico decorrem da
divisão do trabalho, ou seja, têm origem nos processos de trabalho que constituem o
modo de produção capitalista. Nesse contexto, surge uma organização social do trabalho
parcelado que deforma os trabalhadores, aprisionando cada um deles em uma fração
da sua profissão. Conforme argumenta Marx, o trabalhador coletivo, que constitui o
8
Essa perspectiva de Babbage (1832), que Marx explora com profundidade em O Capital Livro I (MARX, 2013), já
estava presente nas reflexões do jovem Marx, na sua crítica endereçada a Proudhon em Miséria da Filosofia (MARX,
2017b).
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mecanismo vivo da produção manufatureira, está fundamentado no trabalho
fragmentado e parcial que aleija cada trabalhador que toma parte nessa atividade
coletiva, transformando-os em aberrações.
Enquanto a cooperação simples deixa praticamente intocado o modo de trabalho dos
indivíduos, a manufatura o revoluciona desde seus fundamentos e se apodera da força
individual de trabalho em suas raízes. Ela aleija o trabalhador, converte-o numa aberração,
promovendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da represo de um mundo
de impulsos e capacidades produtivas (2013, p. 434).
Como desdobramento desse processo, quando o modo de prodão capitalista atinge
o estágio da grande indústria, ocorre a separação entre as potências intelectuais do
processo de produção e os próprios trabalhadores. O trabalho se separa do
conhecimento cienfico e este último passa a servir ao capital, em detrimento da classe
trabalhadora.
As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por
muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles
no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências
intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e como poder que
os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista
representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de
trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um
trabalhador parcial, e se consuma na grande instria, que separa do trabalho a ciência
como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital (2013, p.435).
Ao abordar o conjunto da fábrica em sua forma mais desenvolvida, Marx enfatiza que na
grande indústria consuma-se a separão entre o conhecimento materializado na
maquinaria e o trabalho manual. A máquina, diz Marx, ao contrário de facilitar o trabalho,
torna-se meio de tortura, pois não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de
conteúdo” (2013, p. 495). A habilidade do operador de quinas perde a relevância
quando o conhecimento científico é incorporado ao sistema da maquinaria, que constitui
uma potência do capital sobre o trabalho. Diz Marx:
A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, assim
como a transformação daquelas em poncias do capital sobre o trabalho, consuma-se [...]
na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do operador
de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante
a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão
incorporadas no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder dopatrão
(master) (2013, p. 495).
Em relação à separação e à oposição entre conhecimento e trabalho, Marx (2013, p.435)
concorda com Thompson e cita textualmente suas palavras:
o conhecimento, em vez de aumentar nas mãos do trabalhador suas próprias forças
produtivas para ele mesmo, [...] contrapõe-se a ele em quase toda parte [...]. O conhecimento
torna-se um instrumento que pode ser separado do trabalho e oposto a ele. (THOMPSON,
1824, p.274).
A reprodão do capital, como força produtiva social, passa a ser condicionada pelo
empobrecimento das forças produtivas individuais do trabalhador. Essa compreensão
leva Marx (2013, p. 435) a concordar com Adam Ferguson, tutor de Adam Smith:
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A ignorância é mãe tanto da instria quanto da superstição. A reflexão e a imaginação estão
sujeitas ao erro; mas o hábito de mover o pé ou a mão não depende nem de uma nem de
outra. Por essa razão, as manufaturas prosperam mais onde mais se prescinde do espírito,
de modo que a oficina pode ser considerada uma máquina, cujas partes são homens
(FERGUSON, 1782, p. p. 305).
O conhecimento e o avanço tecnológico decorrentes da sua incorporação ao maquinário
industrial assumem a forma social do capital constante, ou seja, trabalho morto que
domina e suga a força de trabalho viva. Em lugar de emancipar o trabalhador, o
conhecimento materializado no trabalho morto das máquinas subordina o trabalho vivo
dos seres humanos para que o capital cumpra sua sina insaciável: ser valor que se
autovaloriza à custa do roubo do tempo de trabalho e, em última insncia, do roubo da
própria vida. Nos termos de Marx, o capital é trabalho morto, que, como um vampiro,
vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo
suga (2013, p. 307).
Essa perceão da realidade já se mostra consolidada no manuscrito Capítulo VI
(inédito) de O Capital de 1864 (MARX, 1978). Nele, o autor aborda a transição da
subsunção formal do trabalho ao capital para a subsunção real do trabalho ao capital,
quando a aplicação da ciência aos processos produtivos de grande escala assume
importância central. A percepção dessa transformação leva Marx a afirmar que esse é o
momento da gênese de algo específico, isto é, o advento do modo de produção
especificamente capitalista (1978, p. 55, grifo nosso). Trata-se de um um modo de
produção tecnologicamente específico que metamorfoseia a natureza real do processo
de trabalho e suas condições reais. (1978, p. 66). Nesse processo de transformação
social, a ciência e a maquinaria são elementos fundamentais. É na subordinão real do
trabalho ao capital que desenvolvem-se as forças produtivas sociais do trabalho, e, por
força do trabalho em grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à
produção imediata. (1978, p. 66).
9
Nesse contexto histórico, o conhecimento científico se apresenta subordinado à
sociabilidade do capital. Conforme explica Marx, com o modo de produção
especificamente capitalista e a subsunção real, [...] a aplicação da ciência - esse produto
geral do desenvolvimento social - ao processo imediato de produção, tudo isso se
apresenta como força produtiva do capital, não como força produtiva do trabalho (1978,
p. 55). Os processos produtivos passam a ser comandados pela maquinaria, que se
converte no verdadeiro dominador do trabalho vivo (1978, p. 14). Ao apontar essa
dominação da coisa sobre o homem, [...] do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do
produto sobre o produtor", Marx destaca que estamos diante da "a conversão do sujeito
em objeto e vice-versa (1978, p. 20-21).
10
Em suma, na grande indústria, o capital se liberta da dependência do conhecimento do
trabalhador quando o sistema de quinas se torna instrumento para subsunção real do
trabalho ao capital. A relação sujeito-objeto é invertida, ou seja, o conhecimento
materializado no maquinário passa a ditar a forma e o ritmo do processo de trabalho
(BOLAÑO, 2007; MARQUES, 2020; ROMERO, 2005).
9
Sobre a subsunção formal e a subsunção real, vide Bolaño (2007) e Marques (2020).
10
Esse domínio do produto da criação humana sobre o sujeito produtor, isto é, da criatura sobre o criador, representa a
mesma relão que, no terreno ideológico, se apresenta na religião” (MARX, 1978, p. 21).
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Portanto, a análise de Marx sobre o processo capitalista de produção revela que o
conhecimento e a tecnologia são forças produtivas subordinadas ao capital ou, mais
precisamente, elementos fundamentais das forças produtivas sociais, que são
dominadas pelo capitalista em oposição à classe trabalhadora, com o objetivo de
extorquir dela o mais-valor que ela produz.
Surge, assim, uma relão de alienação e estranhamento dos trabalhadores em relação
aos frutos das criações coletivas da classe trabalhadora. Alienação e estranhamento são
noções caras a Marx desde sua juventude. Nos Manuscritos econômico-filosóficos de
1844 (MARX, 2010b), ele argumenta que, na medida em que a produção da classe
trabalhadora é apropriada pelo capitalista, o trabalhador é despojado do produto do seu
trabalho. Ele passa a se relacionar com o produto do seu trabalho como com um produto
alienado, isto é, objetivado ou externalizado, um produto cujo poder independe do
produtor. Adicionalmente, quanto mais se desenvolve a prodão capitalista, cada vez
mais a criação do ser humano se torna um poder hostil ao próprio criador, ou seja, uma
criação estranhada. Quanto mais se expande a sociabilidade do capital, menos o
trabalhador pode possuir e "tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital"
(2010b, p. 81). Mas esse estranhamento se manifesta também e, principalmente, no ato
da produção, dentro da própria atividade produtiva, atividade que também assume um
caráter estranhado. Nesse processo, o trabalhador estranha a si mesmo e estranha sua
essência humana. A propriedade privada da mercadoria que resulta da produção
capitalista se revela o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho
exteriorizado. Em última instância, essa propriedade privada resulta do trabalho
exteriorizado, isto é, [...] homem exteriorizado, [...] trabalho estranhado, [...] vida
estranhada, [...] homem estranhado (2010b, p.87).
Se as noções de alienão e estranhamento já estão registradas nos escritos do jovem
Marx, não é na sua obra de juventude e nem nos Grundrisse que encontraremos
resposta para a seguinte questão que subjaz ao Fragmento sobre as máquinas: Como
explicar o fato de que a tecnologia e a automação industrial expulsam do processo
produtivo o único elemento capaz de criar valor (o ser humano) sem que, com isso,
desmorone a produção baseada no valor de troca?
A pergunta colocada relaciona-se com um problema que o fisiocrata François Quesnay
usava para confrontar seus adversários no século XVIII: o fato de que, por um lado, os
capitalistas estão interessados apenas no valor de troca das mercadorias, mas, por outro
lado, eles estão em permanente esforço para reduzir o valor de troca dos seus produtos.
Se, na ocasião da redação dos Grundrisse, Marx ainda não tinha resposta para o
problema colocado, no começo dos anos 1860, ele demonstra ter decifrado aquele
enigma.
MARX DECIFRA O ENIGMA DE QUESNAY
Ao analisar o , Heinrich (2013) defende que a abordagem
sobre o intelecto geral de Marx (2011) representa um equívoco que ele iria superar alguns
anos depois. Esse desacerto de Marx teria duas origens principais. A primeira seria sua
visão ainda imatura sobre as crises capitalistas. Ao redigir aqueles manuscritos nos anos
1857 e 1858, estava em curso a primeira crise econômica genuinamente mundial e ele
acreditava que aquele era o prenúncio do colapso final do modo de prodão capitalista.
Em carta enviada a Engels em 8 de dezembro de 1857, Marx afirma: estou trabalhando
como louco ao longo de todas as noites na organização de meus estudos econômicos
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para que eu tenha claros os esboços antes do dilúvio” (1983a, p. 217). O segundo motivo
que teria induzido Marx a seu equívoco seriam as insuficiências de suas conceões na
ocasião da redão dos . Marx (2011) ainda não tinha uma distião clara
entre trabalho abstrato e trabalho concreto; não distinguia ainda valor e valor de troca,
ainda que já distinguisse valor e valor de uso; tinha problemas com a noção de capital
constante, privilegiando a ideia de capital fixo; e, o mais importante, ele ainda não tinha
um conceito adequado de mais-valor relativo.
Nos anos posteriores, Marx superou aquele imbróglio registrado no 
. Dois aspectos foram fundamentais para essa superação. O primeiro deles foi
o fato da crise econômica internacional que estava em curso não ter se prolongado muito
e, após seu término, a produção capitalista dela emergida ganhou força. Marx retirou
importantes lições desse episódio e, ao final da década de 1870, seu arcabouço teórico
havia incorporado as crises capitalistas de maneira bem diferente, mais desenvolvida e
realista. Outro aspecto fundamental para superação daquele equívoco foi o avanço das
pesquisas de Marx, que permitiu que ele compreendesse melhor as relações sociais
envolvidas nos processos produtivos que passam por aprimoramentos tecnológicos ou
são automatizados (HEINRICH, 2019).
Em (2013), assim como nos (2011), Marx discute a revolução das
condições técnicas e sociais do processo de trabalho e a redução do trabalho imediato
que decorre da automação industrial. Porém, n’ , Marx descreve a grande
indústria em termos bem diferentes. A automação industrial, que expulsa trabalhadores
do processo produtivo, não é apresentada como elemento que ameaça o modo de
produção capitalista, mas gera aumento da extração de mais-valor. Apesar de Marx
reconhecer que a habilidade do trabalhador individual se torna insignificante diante da
aplicação da ciência à produção industrial, ele não descreve essa constatação como algo
que abale o modo de produção capitalista. Ao discutir a automação que emerge com a
grande indústria, Marx sustenta que o trabalho abstrato continua sendo a substância do
valor e o tempo de trabalho continua sendo a medida do valor. Além disso, ele percebe
que as potencialidades intelectuais envolvidas no processo de trabalho estão a serviço
do capital e contra a classe trabalhadora (HEINRICH, 2013).
Portanto, quando Marx (2013) publica , ele apresenta interpretações bem mais
consistentes para aqueles problemas que havia enfrentado nos e,
posteriormente, no começo da década de 1860. A principal chave para desvendar o
enigma colocado é a noção de mais-valor relativo. Em 1863, Marx já tinha clareza disso,
conforme comprovam os textos preparatórios para  , conhecidos como
 (1994a, 1994b, 2007, 2010a). A partir de então, Marx passa
a distinguir dois tipos de mais-valor: o absoluto e o relativo.
Ele chama de mais-valor absoluto aquele extraído por meio da ampliação da jornada de
trabalho, tanto no sentido extensivo, quanto intensivo. No caso do mais-valor absoluto, o
limite da explorão capitalista é o limite físico e mental do trabalhador.
Já o mais-valor relativo surge quando há umaelevação da força produtiva do trabalho”
(2013, p. 390), ou seja, quando há aumento de produtividade decorrente de
aprimoramentos e avanços tecnológicos na produção, que permitem que um capitalista
reduza parte da jornada de trabalho que o trabalhador dedica à prodão do valor da
mercadoria (tempo de trabalho necessário). Nessa situação, cresce proporcionalmente
a outra parte da jornada de trabalho (tempo de trabalho excedente), durante a qual o
trabalhador produz o mais-valor, que é apropriado pelo capitalista, ainda que a carga
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horária total da jornada não se altere. Isso se dá uma vez queo valor individual dessa
mercadoria se encontra, agora, abaixo de seu valor social, isto é, ela custa menos tempo
de trabalho do que a quantidade do mesmo artigo produzida em condições sociais
médias (2013, 391). Nas situações em que esse aumento de produtividade gera uma
redução no valor das mercadorias que compõem os meios de subsistência do
trabalhador, ocorre um fato adicional que é a redução do valor da força de trabalho e seu
consequente barateamento.
Assim, o emprego da ciência e da técnica no desenvolvimento da maquinaria não é
fenômeno que abre janelas para emancipação do trabalhador como Marx havia cogitado
anteriormente nos , mas, sim, o meio mais poderoso de incrementar a
produtividade do trabalho, isto é, de encurtar o tempo de trabalho necessário à produção
de uma mercadoria (MARX, 2013, p. 475). Dessa maneira, a maquinaria se torna um
instrumento para aumentar a produção de mais-valor:
Como qualquer outro desenvolvimento da foa produtiva do trabalho, [a maquinaria] deve
baratear mercadorias e encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador necessita
para si mesmo, a fim de prolongar a outra parte de sua jornada, que ele dá gratuitamente
para o capitalista. Ela é meio para a produção de mais-valor (MARX, 2013, p. 445)
A possibilidade de extração de mais-valor relativo, viabilizada pelo avanço tecnológico
aplicado à produção, empurra os capitalistas para uma permanente disputa pela
aplicação da ciência e da técnica aos processos produtivos:
A máquina produz mais-valor relativo não ao desvalorizar diretamente a força de trabalho
e, indiretamente, baratear esta última por meio do barateamento das mercadorias que
entram em sua reprodução, mas também porque, em sua primeira aplicação esporádica,
ela transforma o trabalho empregado pelo dono das máquinas em trabalho potenciado,
eleva o valor social do produto da máquina acima de seu valor individual e, assim, possibilita
ao capitalista substituir o valor diário da força de trabalho por uma parcela menor de valor do
produto diário (MARX, 2013, p. 479).
A punção para extrair mais-valor relativo faz com que o modo de produção capitalista
esteja sempre em constante revolução nas condições de produção”, no modo de
produção e, assim, no próprio processo de trabalho (2013, p. 389). A busca pelo
aumento do mais-valor relativo se torna uma força coercitiva do capital que acaba por
revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho, portanto,
revolucionar o próprio modo de produção (2013, p. 390).
Os (1994a, 1994b, 2007, 2010a) mostram que, naquela
ocasião, Marx não somente apontava que a automão industrial era uma tenncia
geral da produção capitalista, como também já conseguia justificar esse fenômeno.
[O trabalho morto] surge aqui como meio para substituir o trabalho vivo ou como aquele meio
de fazer diminuir o número de trabalhadores. Essa diminuição do trabalho humano aparece
como especulação capitalista, como meio para aumentar a mais-valia. [...] O valor individual
das mercadorias produzidas pela introdução geral da maquinaria põe-se diferentemente de
seu valor social, e os capitalistas tomados isoladamente apropriam-se da parte referente a
essa diferença. Aqui aparece a tendência geral da produção capitalista tomada em todos os
seus ramos produtivos: o trabalho humano substituído pela máquina (MARX, 2010a, p.232-
233).
Marx afirma que a automação industrial que expulsa os trabalhadores do processo
produtivo é, na verdade, um instrumento para autovalorização do capital: A
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autovalorização do capital por meio da máquina é diretamente proporcional ao número
de trabalhadores cujas condições de existência ela aniquila (2013, p. 502-503). Porém,
completa ele, a expansão da automação industrial tem limites práticos, pois, sob a ótica
do capitalista, essa expansão só pode acontecer nas situações em que o maquinário
custe menos trabalho do que o trabalho que sua aplicão substitui (2013, p. 466). Em
outras palavras, Marx compreendeu que a tenncia de redução do trabalho imediato
nos processos industriais automatizados tem um claro limite, que é o custo do capital
constante em relão ao custo do capital variável, isto é, o custo do maquinário em
relação ao preço da força de trabalho.
Diante desse entendimento, Marx conclama os trabalhadores a não se revoltar contra a
maquinaria, pois ela é apenas umaforma determinada do meio de produção, [...] base
material do modo de produção capitalista (MARX, 2013, p. 500). O inimigo a ser
combatido, explica Marx, é a forma social de exploração da tecnologia:
Foi preciso tempo e experiência até que o trabalhador distinguisse entre a maquinaria e sua
aplicação capitalista e, com isso, aprendesse a transferir seus ataques, antes dirigidos contra
o próprio meio material de produção, para a forma social de exploração desse meio (MARX,
2013, p. 501)
Em suma, essas passagens revelam que Marx, ao decifrar o enigma de Quesnay e
tendo apreendido o papel do conhecimento nos processos de produção capitalistas,
acaba divergindo frontalmente da perspectiva do intelecto geral que ele havia esboçado
no .
Bolaño (2008) alerta que os insights que Marx esboça no Fragmento não devem ser
isolados do pensamento que foi expresso, finalizado, visto e revisto por Marx na sua obra
mais completa. Esse tipo de leitura parcial pode dar margem para diversos tipos de
interpretações enigmáticas e sujeitas a mistificações.
Não à toa a ideia de intelecto geral de Marx tem sido referência para muitos dos autores
que se perderam no pântano do pós-modernismo, a exemplo de Lazzarato (1996), Gorz
(2005), Hardt e Negri (2001), Moulier-Boutang (2011) e Vercellone (2007). O próprio
Pasquinelli (2019, p. 54) endossa uma falácia pós-modernista ao afirmar que a teoria do
valor de Marx não se aplicaria ao domínio do conhecimento e da inteligência.
Encerrando o artigo, abordo, na sequência, uma problemática aproximação que
Pasquinelli (2019) estabelece entre o trabalhador coletivo e o intelecto geral. Tendo essa
aproximão como referência, o filósofo italiano acaba formulando uma questionável
hipótese: Marx teria abandonado a noção de intelecto geral e adotado a categoria
trabalhador coletivo por motivações políticas.
TRABALHADOR COLETIVO, INTELECTO GERAL E POLARIZAÇÃO DO
CONHECIMENTO
Pasquinelli (2019) incorre em desacerto ao dizer que, em O Capital, Marx apresenta a
figura do trabalhador coletivo comoum tipo de reencarnão do intelecto geral (2019,
p. 47), ou a transmutação do intelecto geral (2019, p. 53).
Essa interpretação se mostra questionável, em primeiro lugar, por um aspecto conceitual.
Em Marx (2011), a expressão intelecto geral representa o conhecimento coletivo, tomado
como uma construção social que se materializa nos aparatos tecnológicos empregados
dos processos produtivos. Com sentido completamente distinto desse, a expressão
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trabalhador coletivo, empregada por Marx (1978, p. 71-72; 2013, p. 423-424, p. 577-578),
representa uma combinação heterogênea de trabalhadores que coloca em movimento
um processo de produção capitalista, que é simultaneamente processo de trabalho
social e processo de valorizão. Considerando que o trabalhador coletivo é o agente
que desenvolve o intelecto geral na práxis social dos processos de trabalho, confundir ou
misturar essas duas expressões sugere um tipo de erro enfaticamente criticado por Marx:
a invero da relão sujeito-objeto, na qual o sujeito criador é confundido com o fruto da
sua crião, num processo de fetichizão.
Há no Livro III de O Capital, uma passagem em que Marx emprega a expressão trabalho
geral num sentido equivalente ao da noção de intelecto geral para designar todo
trabalho científico, toda descoberta, toda invenção (2017a, p. 133). Ao fazê-lo, ele
aponta a necessidade de diferenciar trabalho geral de trabalho social. Em outras
palavras, Marx defende a necessidade de distinguir o intelecto geral e o trabalho social,
ou seja, distinguir a criação e o seu criador.
[...] apenas a experiência do trabalhador combinado [kombinirten Arbeiters]
11
descobre e
mostra onde e como se deve economizar, como as descobertas realizadas podem ser
aplicadas do modo mais simples, quais são as dificuldades práticas na aplicação da teoria
seu emprego no processo de produção que precisam ser superadas etc. Ademais, é
preciso diferenciar trabalho geral [allgemeiner Arbeit]
12
de trabalho social [gemeinschaftlicher
Arbeit]
13
. Ambos desempenham seu papel no processo de produção, ambos se mesclam,
mas ambos também se distinguem entre si. Trabalho geral é todo trabalho científico, toda
descoberta, toda invenção. Ele é condicionado, em parte, pela cooperação com o trabalho
vivo, em parte, pela utilização dos trabalhos anteriores. O trabalho social pressupõe a
cooperação direta entre os indivíduos (MARX, 2017a, p. 132-133).
Mas o desacerto de Pasquinelli (2019) decorre também de um aspecto que não é de
ordem conceitual, mas ontológico: Marx adota a noção de trabalhador coletivo num
esforço para descrever um agente real que efetivamente existe em sua materialidade
social.
Voltemos à obra de Marx (1978, 2013) para resgatar sua concepção de trabalhador
coletivo. Esse resgate será útil para demonstrar que essa noção incorpora algumas
contradições intrínsecas à classe trabalhadora que não estão presentes no Fragmento
sobre as máquinas.
O trabalhador coletivo emerge da divisão do trabalho, na produção capitalista avançada
que cria o processo de produção em larga escala. Nesse contexto, o trabalhador
individual deixa de ser o agente real do processo de trabalho. O trabalho que se torna
relevante para produção de valor passa a ser o que decorre da combinação de múltiplos
trabalhadores que executam diferentes atividades parciais, incluindo aquelas
eminentemente manuais e desqualificadas, assim como aquelas que têm forte caráter
intelectual ou exigem altos níveis de qualificação. Esse conjunto de trabalhadores
constitui o que Marx designa de trabalhador coletivo, uma massa complexa e
heterogênea de trabalhadores que têm diferentes capacidades de trabalho,
diversificadas qualificões e habilidades. A maior parte desses trabalhadores são
desqualificados e desempenham somente tarefas manuais e repetitivas. Mas também
11
Na edição em inglês, combined labour (MARX, 1894, p. 73).
12
Na edição em inglês, universal labour (MARX, 1894, p. 73).
13
Na edição em inglês, co-operative labour (MARX, 1894, p. 73).
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compõem o trabalhador coletivo, ainda que em menor número, os indivíduos que têm
formação educacional superior e exercem cargos, como, por exemplo, de engenheiro ou
de gerente (MARX, 1978, p. 71-72; 2013, p. 423-424, p. 577-578).
Embora essa descrição do trabalhador coletivo de Marx pressuponha uma integração
entre trabalho qualificado e desqualificado, bem como entre tarefas intelectuais e
manuais, o autor revela contradições fundamentais dentro do organismo social que
constitui o trabalhador coletivo. O trabalhador coletivo incorpora em si uma distribuição
assitrica de conhecimentos e habilidades, que é imanente à classe trabalhadora
subsumida ao capital. Nela estão incluídos desde os numerosos operários de baixa
qualificação e baixos salários até o reduzido estrato que Marx chama deparcela mais
bem remunerada da classe trabalhadora, sua aristocracia (2013, p. 741). Nesse sentido,
alguns exemplos extraídos da obra do velho Marx merecem ser citados. Quando o autor
aborda a divisão do trabalho nas fábricas, ele apresenta os engenheiros, mecânicos e
carpinteiros como uma classe privilegiada em comparação com a classe operária: uma
classe superior de trabalhadores, com formação científica ou artesanal, situada à
margem do círculo dos operários fabris, somente agregada a eles (2013, p. 493). Em
outra passagem, Marx afirma que, com a emergência do trabalhador coletivo, quando o
trabalho assume uma escala social, o trabalho intelectual e o trabalho manual se
separam até formar um antagonismo hostil (2013, p. 577). Em Crítica ao programa de
Gotha, Marx (2012) retoma essa contradição ao defender a necessidade de abolir a
oposição entre trabalhos mentais e físicos como condição para superão do modo de
produção capitalista. Ele afirma que abolir a subordinação escravizadora dos indivíduos
à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual (2012,
p. 31), é condição para construir a sociedade comunista e superar plenamente o estreito
horizonte jurídico burguês (2012, p. 32).
Portanto, quando Pasquinelli (2019) toma como referência os Grundrisse para afirmar
que o trabalhador coletivo é uma reencarnão do intelecto geral (p. 47) ou uma
transmutação do intelecto geral (p. 53), ele distorce o só as ideias que Marx registrou
em seus textos, mas também a própria realidade em que vivemos. Afinal, para o
trabalhador coletivo, que efetivamente existe em sua materialidade social, a distribuição
desigual de conhecimento é aspecto central da contradição entre capital e trabalho, além
de ser também aspecto central das contradições internas dentro da própria classe
trabalhadora (MARQUES, 2017; MARQUES, KERR PINHEIRO, 2014, 2019).
Por fim, outra discutível hipótese de Pasquinelli (2019) merece alguns comentários.
Segundo o filósofo italiano, o uso da expressão trabalhador coletivo por Marx decorreria
de uma escolha política do autor alemão. Pasquinelli defende que, quando Marx adota
a não de trabalhador coletivo, ele provavelmente desejava evitar que uma aristocracia
trabalhista de artífices qualificados se constituísse como um sujeito político apartado do
restante da classe trabalhadora. Além disso, prossegue Pasquinelli, Marx percebia
dificuldades para a mobilização do conhecimento coletivo em ações a favor dos
trabalhadores. Conhecimento e Educação poderiam ser convocados apenas para
batalhas universalistas como em favor do intelecto geral do país, mas não para causas
partirias em favor dos proletários.
Essa conjectura de Pasquinelli é instigante, mas questionável. O autor parece sugerir
que a exposição de Marx não representa de maneira sincera a anatomia da sociedade
civil que ele prometeu revelar a seus leitores (MARX, 2003, p. 4). O argumento de
Pasquinelli parece indicar que, quando Marx empregou a noção de trabalhador coletivo,
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ele teria descaracterizado a realidade para que sua exposição se adequasse melhor ao
seu projeto político. É como se Marx tivesse abandonado sua conhecida primazia da
ontologia sobre a epistemologia e construído uma narrativa distorcida para corroborar
sua luta política.
Porém, é o próprio filósofo italiano que sugere outra explicão mais consistente para
justificar porque Marx teria abandonado a perspectiva emancipatória do intelecto geral.
Desde sua juventude, Marx já opunha sua compreensão materialista da história ao
espírito (Geist) hegeliano. Nesse sentido, Marx sintetiza, no prefácio da sua Contribuição
à crítica da Economia Política de 1859, que não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; é o ser social que, inversamente, determina sua consciência
(MARX, 2003, p. 5).
Assim, crer que o intelecto geral possa ser o catalisador da emancipação humana
representa a adesão a uma perspectiva idealista, portanto, distante da realidade. Os
limites da razão iluminista são bem conhecidos pelo menos desde o século XIX.
Conhecimento e Educação, nos limites históricos do capitalismo, adquirem uma forma
social particular, uma existência social (MARX, 2013, p. 142) subordinada à força
coercitiva das relões sociais impostas pelo capital. Revolucionar a sociabilidade
vigente e superar o modo de produção capitalista é tarefa a ser conduzida
fundamentalmente na esfera do trabalho humano, eterno locus da prodão e da
reprodução da vida, com suas contraditórias relações sociais.
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Data da submissão: 12/04/2022.
Data da aprovação: 11/05/2022.