Trabalho & Educação | v.31 | n.3 | p.115-129 | set-dez | 2022 |115|
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2022.39299
A reconteXtualizaçao curricular na educação profissional1
The curricular recontextualization in professional education
SOARES JÚNIOR, Néri Emílio2
ResuMo
O texto analisa os fatores que influenciam no trabalho dos professores no processo de
recontextualização curricular. Foi realizado um estudo de caso de uma instituição de educação
profissional do estado de Goiás com a realização de análise documental e entrevista. Os interlocutores
da pesquisa foram sete professores, sendo dois professores da área técnica e cinco do núcleo
comum. O estudo foi realizado a partir da noção de recontextualização curricular e do trabalho
docente pela perspectiva da ergologia. Foram identificados os seguintes fatores que influenciam na
recontextualização curricular dos professores participantes da pesquisa: organização do trabalho
pedagógico, história de vida dos professores e o significado social da instituição, dimensão pessoal
e o caráter socioeconômico do trabalho, estudantes, campo disciplinar, área de atuação, experiência
profissional, políticas educacionais e curriculares e os valores dos professores.
Palavras-chave: Políticas curriculares. Educação Profissional. Trabalho docente.
ABstract
The paper analyzes the factors that influence the work of teachers in the curriculum
recontextualization process. A case study of a professional education institution in the state of
Goiás was carried out with documentary analysis and interview. The interlocutors of the research
were seven professors, being two professors of the technical área and five of the common nucleus.
The study was carried out from the notion of curricular recontextualization and teaching work from
the perspective of ergology. The following factors that influence the curricular recontextualization
of the teachers participating in the research were identified: organization of pedagogical
work, teachers’ life history and the social meaning of the institution, personal dimension and
socioeconomic character of the work, students, disciplinary field, area of expertise, professional
experience, educational and curricular policies and the values of teachers.
Keywords: Curriculum policies. Professional education. Teaching work.
1 (i) O artigo não foi apresentado ou publicado, anteriormente em congresso ou em periódicos cientí cos.
(ii) A pesquisa foi aprovada no Comitê de Conselho de Ética com o número do parecer: 2.162.655. (iii) A
pesquisa contou com apoio  nanceiro do Programa Institucional de Quali cação de Servidores (PIQS). (iv)
o artigo é resultante de pesquisa de doutorado.
2 Doutor e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília, Graduação em Educação Física pela
Universidade Estadual de Goiás. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás.
E-mail: neri.junior@ifg.edu.br
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Apresentação
Basil Bernstein (1924-2000) foi um importante pesquisador da sociologia do currículo.
Ocupou a cátedra Karl Mannheim do Instituto de Educação da Universidade de Londres,
onde também foi chefe do Departamento de Sociologia da Educação. Desenvolveu
estudos a partir da sociologia crítica da educação na Inglaterra e fez parte do movimento
na Nova Sociologia da Educação (MAINARDES; STREMEL, 2010).
Com uma produção rica, densa e de alto nível de abstração, Basil Bernstein tem
inuenciado pesquisadores no Brasil, que vem realizando diversos estudos a
partir de seu constructo teórico. Como exemplo desta inuência, o recente artigo
de Bezerra e Eugenio (2020), apresenta dados interessantes sobre como a teoria
bernsteiniana vem sendo utilizada em diversas pesquisas no Brasil.
Os autores realizaram um mapeamento da produção de artigos que empregam a
teoria de Basil Bernstein no campo educacional. A busca foi realizada no portal
Scielo, no qual foram encontrados um total de 45 artigos entre o período de 2000 a
2018. Os artigos abordavam várias temáticas tais como formação de professores,
políticas curriculares, o currículo da educação básica, prática pedagógica,
conhecimento escolar. Também foram encontrados estudos que relacionavam a
teoria de Basil Bernstein com outras áreas como a saúde, por exemplo, artigos
em línguas estrangeiras e relatos de pesquisa que foram desenvolvidas em outros
países como Portugal, Moçambique e Estados Unidos.
Na produção do conhecimento com a utilização da teoria desenvolvida por Bernstein,
a noção de recontextualização, talvez seja uma das categorias que mais vem sendo
utilizada em pesquisas na educação no Brasil.
Grosso modo, as pesquisas se utilizam deste constructo teórico procurando
analisar a forma como diferentes textos curriculares são recontextualizados quando
são retirados de determinados contextos institucionais ou sociais e apropriados
em outros. Mainardes e Stremel (2010) indicam que estudos sobre as políticas
educacionais e curriculares têm utilizado essa noção abordando, principalmente, a
forma como diversas políticas curriculares são apropriadas em instituições educativas
assim como acontece no estudo de Franco (2016). Outras pesquisas utilizam a
recontextualização como instrumento de análise de outros contextos como o estudo
de Lopes (2008) que analisou a recontextualização realizada no campo das políticas
curriculares do ensino médio no Brasil e a pesquisa de Rezende et al., (2014) que
analisaram a recontextualização que professores de física realizaram do discurso
acadêmico, ocial e do currículo nacional do referido componente curricular.
Compreendendo que os estudos aqui citados apresentam uma contribuição
importante sobre a produção do conhecimento em educação a partir da noção de
recontextualização, foi possível observar que os referidos estudos não analisaram os
fatores que inuenciam nos processos e recontextualização curricular dos sujeitos
envolvidos no processo, o que se leva inferir que esse tipo de análise parece não ser
explorado por pesquisadores brasileiros.
Com o propósito de contribuir com a produção sobre a referida noção, o presente
estudo tem por objetivo analisar os fatores que inuenciaram a recontextualização
curricular em uma instituição de educação prossional. Vale ressaltar que Bezerra e
Eugenio (2020) não identicaram artigos que abordassem a teoria de Bernstein com
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temas com a educação prossional, outra importante lacuna sobre as pesquisas que
utilizam a teoria desenvolvida pelo autor inglês. A pesquisa foi realizada com apoio
teórico de duas categorias: a noção de recontextualização curricular e o trabalho
docente e a denição metodológica foi orientada pela ideia de que os professores
são os principais agentes que colocam o currículo em movimento.
A noção de recontextualização foi formulada por Basil Bernstein, no desenvolvimento
da teoria do dispositivo pedagógico (BERNSTEIN, 1996) e pode ser compreendida
como o processo de seleção e organização do conhecimento no currículo em
que se apropria, recoloca, refocaliza e conecta discursos, de forma seletiva, para
formar o seu próprio discurso pedagógico (BERNSTEIN, 1996; STRAVOU, 2008). A
recontextualização pode acontecer em diferentes contextos, por exemplo, na prática
pedagógica e nos sistemas educacionais.
Na prática pedagógica, a recontextualização ocorre quando o professor transforma
o conhecimento oriundo do contexto social em conhecimento escolar. Nos sistemas
educacionais, o processo de recontextualização está relacionado a três contextos,
o primário, o secundário e o recontextualizador. No contexto primário são criadas,
desenvolvidas ou alteradas, de forma seletiva, as novas ideias e os discursos
pedagógicos do sistema educacional. Esse processo é denominado como
contextualização primária (BERSNTEIN, 1996) e forma o campo intelectual do
sistema educativo. As pesquisas e a produção de conhecimento que são realizadas
nutrem esse contexto. Pode-se exemplicar esse contexto no Brasil com os grupos de
pesquisadores e especialistas que prestam assessorias a órgãos administradores da
educação, como o Ministério da Educação (MEC), na esfera federal, as secretarias de
educação estaduais e municipais nas esferas estaduais e municipais, respectivamente.
Esses sujeitos elaboram novas propostas ou alteram propostas já criadas no intuito
de estabelecer o discurso pedagógico que será circulado no contexto do sistema de
ensino. Esse discurso pedagógico apresenta, geralmente, um projeto de educação.
O contexto secundário refere-se à reprodução seletiva do discurso educacional,
formado por diferentes agências e diferentes níveis. Esse contexto é composto,
principalmente, pelas instituições educativas, como as escolas, mas em outros espaços
pode ocorrer a reprodução do discurso ocial. o contexto recontextualizador se
refere ao que realiza a regulação da circulação de textos entre os contextos primário
e secundário. É formado por campos denominados de recontextualizadores, que
são formados por instituições e agentes que podem realizar a regulação dos textos
que transitam entre o contexto da produção para a reprodução de discursos, por
exemplo: supervisores das redes de ensino, gestores etc. (BERNSTEIN, 1996).
De modo geral, a recontextualização no âmbito dos sistemas de ensino é iniciada
a partir da descontextualização, um processo de modicação do texto que
assegura que ele não será mais o mesmo no nal do processo (BERNSTEIN,
1996). A descontextualização se inicia com a seleção de texto, sendo realizado,
posteriormente, o processo de simplicação, de condensação e de reelaboração,
por meio de ações que não são desenvolvidas de forma consensual, e sim em meio
aos conitos entre os diferentes interesses do campo de recontextualização.
A partir dos processos de recontextualização que os campos recontextualizadores
pedagógicos produzirão, o discurso pedagógico é denido como discurso com
um princípio de apropriação de outros discursos, um princípio recontextualizador
(LOPES, 2008).
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O propósito no presente estudo foi de identicar os fatores que inuenciam no
processo de recontextualização curricular de professores de uma instituição de
educação prossional. Ou seja, analisar o processo que os professores realizam ao
transformar o conhecimento do contexto social tais como conhecimento cientíco,
habilidades, valores, atitudes, entre outros, em conhecimento escolar. A investigação
foi desenvolvida a partir da categoria trabalho docente, sob a perspectiva da
ergologia do trabalho. A escolha desta abordagem foi em considerar que a mesma
pode contribuir para que alguns aspectos possam ganhar maior visibilidade,
principalmente, sobre a complexa conduta dos professores em seu trabalho.
A ergologia do trabalho foi desenvolvida por Yves Schwartz e colaboradores no
nal dos anos 1970 na Universidade de Provence, na França, em um contexto de
transformações sociais, econômicas e políticas da Europa em que as universidades
francesas estiveram envolvidas no processo de reexão entre o processo de
formação e o mundo do trabalho (BRITO, 2006). Esta abordagem se congura em
um esforço de analisar e compreender a partir da contribui de diferentes campos
do saber que, como a Filosoa, Psicologia, Sociologia, Economia, Ergonomia, e de
saberes que extrapolam as portas da universidade (SCHWARTZ, 2000, 2006).
Pode-se considerar que a ergologia do trabalho possui, pelo menos três grandes
inuências de campos que estudam o trabalho, a ergonomia francesa, a produção
sobre análise do trabalho de Ivar Oddone e a losoa da vida de Georges Canguilhem.
A ergonomia de base francesa, foi desenvolvida nos anos de 1960 e procura
compreender o trabalho objetivando a sua transformação (GUÉRIN et al., 2001).
Sendo assim, propõe a análise da categoria trabalho a partir de três elementos:
trabalho prescrito, trabalho real e atividade.
O trabalho prescrito refere-se ao que é denido anteriormente ao trabalhador para
que se possa desenvolver seu ofício (CUNHA; ALVES, 2012). A prescrição é formada,
pelos menos, por três elementos, a) pelas condições determinadas de trabalho, b)
pelos resultados antecipados e, c) pelos objetivos do trabalho, que indica o que
deve ser realizado pelo trabalhador, ou seja, a tarefa a ser realizada (GUERÍN et
al., 2001). O trabalho real se refere à dimensão em que se realiza o trabalho na
realidade concreta, ou seja, é o trabalho como se realiza na realidade concreta.
A atividade, por sua vez, é considerada como o processo da realização da tarefa,
um fazer industrioso, é a própria ação do trabalhador no exercício de seu labor, o
que corresponde ao desenvolvimento da tarefa que é realizado em determinadas
condições e das quais se esperam determinados resultados (GUÉRIN et al., 2001).
O aspecto fundamental na ergonomia é que existe uma diferença entre o trabalho
prescrito e o trabalho real. Sendo assim, essas duas dimensões do trabalho não são
iguais, o que possibilita armar que a diferença entre o prescrito e o real é universal.
A partir da produção do médico italiano Ivar Oddone sobre a análise do trabalho e
o conceito de Comunidade Cientíca Ampliada, permitiu a Yves Schwartz e seus
colaboradores terem “[...] uma visão não mutilante do trabalho e começava a trazer
respostas ao profundo mal-estar que sentia em relação à diferença entre o patrimônio
estocado, ensinado e o patrimônio vivo das atividades de trabalho” (SCHWARTZ, 2000,
p.39). A questão que se colocava estava relacionada com problemática da epistemologia
da produção de saberes, intervenção e transformação do trabalho. Neste contexto foi
elaborado o conceito denominado “dispositivo dinâmico de três polos” (SCHWARTZ,
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2006) no qual procuraram articular diferentes saberes que são mobilizados na atividade
humana e a disposição de aprendizado nas situações de trabalho.
Em síntese, o dispositivo é forma pelos seguintes polos: a) conceitos sistematizados
ou saberes sistematizados, b) saberes da experiência e, c) exigências éticas
e epistemológicas. O primeiro é formado, inicialmente, pelo polo dos conceitos
sistematizados de origem das diferentes disciplinas acadêmicas. São saberes externos
e anteriores à situação de trabalho, oriundos de disciplinas cientícas, conhecimentos
acadêmicos, competências prossionais, e outros. No segundo polo, têm-se as forças de
convocação e reconvocação, que são os saberes gerados nas experiências de trabalho
nas mais variadas situações vividas pelos trabalhadores. Esses saberes são utilizados
para transformar as situações de trabalho. O terceiro polo é formado pelas exigências
éticas e epistemológicas, que se constitui como o local em que o trabalhador elabora
decisões nas quais são denidos os meios para enfrentar determinado problema, sendo
assim o espaço da negociação. Esse último polo possui uma importância singular, pois
é por meio dele que acontece a ligação entre os dois polos anteriores, uma vez que
as relações entre os indivíduos e a visão de humanidade estão relacionadas com a
perspectiva ética e epistemológica. Assim, os polos dialogam, complementam-se, o
que é fundamental para compreender o trabalho humano.
Outra inuência na ergologia do trabalho foi a losoa da vida do médico e lósofo
Georges Canguilhem. Ele elaborou suas concepções a partir da análise crítica
do processo de determinação positivista das relações entre saúde e doença. De
forma geral, essa concepção estabelece que a diferença entre o estado normal e o
patológico é, exclusivamente, quantitativo, assim o estado patológico nos organismos
vivos se refere a “[...] uma espécie de dogma, cienticamente garantido, segundo
a qual os estados patológicos, nos organismos vivos, seriam apenas uma variação
quantitativa dos fenômenos normais correspondentes” (FRANCO, 2009, p.88).
De diferente modo, Canguilhem encontra uma nova compreensão, totalmente
distinta, sobre a normalidade e a patologia. Para ele, o estado patológico é diferente,
de forma qualitativamente, do normal, assim, o homem doente é diferente do
homem normal. Para Canguilhem, a vida não é indiferente as condições impostas
pelo meio. Esse aspecto traduz-se por meio da atividade normativa da vida, ou
seja, ser a capacidade de ser normativo. A normatividade indica a possibilidade da
vida em criar normas, novos valores, permitindo ao organismo constitui um meio de
sobrevivência. Assim, o autor defende a capacidade normativa como critério para
distinguir saúde e a doença. O organismo considerado saudável é aquele capaz
de ser normativo, de ultrapassar a norma de dene o normal presente. Ele é capaz
de instituir novas normas de vida (CANGUILHEM, 2009). Já o organismo doente
é aquele limitado a uma única norma de vida, adaptado e restrito ao um meio de
existência, ele é incapaz de denir outras normas. Dessa perspectiva, a ergologia se
apropria da discussão da losoa das normas e o conceito de saúde. É incorporado,
dentre outros aspectos, o debate de normas, um dos seus elementos centrais.
A partir das inuências apresentadas, pode-se considerar que a ergologia propõe uma
abordagem de análise do trabalho com o objetivo de melhor conhecer e intervir sobre as
situações do trabalho para transformá-las (SCHWARTZ, 2007). O trabalho é considerado
como um “lugar” de acontecimentos complexos no qual se desenvolve o fazer industrioso
humano (SCHWARTZ, 2004). Na ação do trabalho o sujeito deve cumprir uma série de
tarefas estabelecidas por normas que lhe são prescritas. Porém, o sujeito em sua ação,
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não se limita em acatar as prescrições, ele pode, de forma constante, reinventar, essas
normas, ou seja, renormalizar. Nesse processo existe a combinação entre normas que
são antecedentes, que são mais ou menos visíveis, acumuladas, passíveis de ensino,
prescritíveis, codicáveis com as renormalizações, mais ou menos ressingularizantes
(SCHWARTZ, 2011). Um importante aspecto a se considerar é que as normas são
sempre inacabadas, visto que o meio sempre é imprevisível, ou inel: “[...] o meio é
sempre mais ou menos inel, ele jamais se repete exatamente de um dia para outro ou
de uma situação para outra” (SCHWARTZ, 2007, p.191).
Para possibilitar a análise nos atos de trabalho no que se refere a sua imprevisibilidade,
Schwartz (2006) cunha o termo uso de si. O autor entende que na realização do
trabalho sempre envolve o uso de si. O uso de si se situa entre normas antecedentes
e a necessidade de dar-se a si mesmo normas. O uso de si pode ser o uso de si por
si e o uso de si por outros. O uso de si por outros, aspecto mais visível, refere-se às
normas, prescrições e valores constituídos historicamente. Mas essa expressão do
trabalho é sempre uma parte inacabada que abre espaço para as renormalizações.
No processo de renormatização, os trabalhadores realizam as prescrições e acabam
desenvolvendo estratégias que são singulares para responder aos desaos que o
meio coloca para eles, congura-se no uso de si por si (SCHWARTZ 2003).
Sobre as características, a ergologia possui quatro proposições fundamentais. A
primeira proposição, indica a existência da distância entre o trabalho prescrito e o
trabalho real. Essa distância é universal, presente em toda situação de atividade
humana. A segunda proposição indica que a distância entre o trabalho prescrito e o
trabalho real não pode ser prevista. No entanto, Schwartz (2007) considera que não se
pode armar que essa distância seja totalmente singular, porque, a partir do trabalho,
existem regularidades, tendências, o que possibilita levantar hipóteses, tornando
parcialmente singular. A terceira proposição refere-se à gestão da distância entre
o trabalho prescrito e o trabalho real. O autor considera que essa ação é realizada
pelo que denomina de corpo si, ou si-corpo. Essa expressão refere-se a uma ideia de
uma “entidade” para tentar abarcar a totalidade do sujeito que racionaliza e atravessa
o intelectual, o cultural, o físico e também procura abarcar o irracional do sujeito.
Refere-se ao consciente e o inconsciente. Por m, a quarta proposição refere-se ao
debate de valores. Em uma perspectiva ergológica “[...] há sempre valores em jogo
na atividade” (SCHWARTZ, 2007, p.45), ou seja, as pessoas fazem escolhas no
desenvolvimento da atividade, sejam conscientes ou inconscientes, e essas escolhas
são realizadas em função de critérios e em função de valores. Então, a distância
entre o trabalho prescrito e o trabalho real remete a um debate de normas.
O presente texto está organizado em dois momentos, o primeiro que consta os
procedimentos de pesquisa e o percurso investigativo e o segundo, no qual são
apresentados os resultados da pesquisa.
A realização da investigação
A investigação foi realizada em uma escola de Educação Prossional, denominada
neste texto como “Escola Prossional”. A Escola Prossional é uma Instituição
Federal (IF) de educação prossional que possui uma estrutura multicampi, com 13
polos, em 12 cidades do estado de Goiás. Oferece cursos de formação prossional
na educação básica e no ensino superior e está localizada em uma cidade da
região metropolitana de Goiânia. Oferta cursos técnicos de nível médio, cursos de
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graduação e um curso de pós-graduação lato sensu. Os cursos técnicos ofertados
são: Automação Industrial, Edicações e Eletrotécnica.
No desenvolvimento da investigação foi realizado uma pesquisa do tipo estudo de
caso (YIN, 2005) com realização de análise documental e entrevista semiestruturada.
Os documentos analisados foram o Projeto de Desenvolvimento Institucional
(PDI), os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC) técnicos, os planos de curso
de professores e documentos referentes ao regulamento das atividades docentes
da Instituição em que foi realizada a investigação. A entrevista semiestruturada
foi realizada com sete docentes dos cursos técnicos de nível médio, sendo dois
da área prossional (Edicações e Informática) e os demais da área de formação
geral (Biologia, Educação Física, Matemática, Química e Sociologia) com duração,
aproximada, de 40 minutos em que os professores foram questionados sobre dos
fatores que inuenciam o seu trabalho, desde o planejamento, desenvolvimento e
avaliação do trabalho no processo de recontextualização curricular.
A análise das evidências foi realizada a partir da organização dos dados, com
transcrição e categorização das diferentes fontes de evidência e o confronto das
diferentes fontes de evidência com a literatura.
Os resultados da pesquisa
O professor, em seu trabalho, recontextualiza parte da cultura produzida pela
humanidade (em grande medida o conhecimento cientíco) para ser assimilado
pelos estudantes, e desta forma produz conhecimento escolar.
Nesse complexo processo, a seleção, a organização e a sistematização dos
conhecimentos escolares são ações centrais desenvolvidas (SOUZA JR; SANTIAGO;
TAVARES, 2011). A seleção do conhecimento refere-se à escolha do conhecimento
que será ensinado. Como a escola não consegue ensinar toda a cultura produzida
pela humanidade ou o conhecimento cientíco, ela precisa selecionar o que será
ensinado. Vale lembrar que essa escolha nunca é neutra, visto que pressupõe um tipo
de sujeito que se pretende formar. Diferentes instrumentos auxiliam os professores
nesse trabalho, tais como livros, materiais didáticos, orientações legais, entre outros. A
organização refere-se como os conhecimentos serão dispostos para o aprendizado, ou
seja, a sequência dos conteúdos. E, por m, a sistematização do conhecimento refere-
se à estruturação do componente curricular, segundo determinadas características
como, por exemplo, o estágio de desenvolvimento dos estudantes. Em outras palavras,
refere-se aos princípios, métodos e procedimentos dos aspectos metodológicos e, ao
mesmo tempo, à aprendizagem dos estudantes, ou seja, a dosagem do conteúdo
(SOUZA JR; SANTIAGO; TAVARES, 2011; SAVIANI, 2010).
A investigação realizada teve como foco em analisar como diferentes aspectos
inuenciam o processo de recontextualização dos professores a partir das ações de
selecionar, sistematizar e organizar os conhecimentos escolares. Neste aspecto, foram
identicados diferentes aspectos que atravessam, e dessa forma, inuenciam o trabalho
docente dos professores participantes da pesquisa da Escola Prossional, tais como:
a organização do trabalho docente, a história de vida e prossional dos professores
e o signicação social da escola, a dimensão pessoal e o caráter socioeconômico
do trabalho, os estudantes, o campo disciplinar e a área de atuação, a experiência
prossional, as políticas educacionais e curriculares e os valores dos professores.
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Como já foi dito anteriormente, o trabalho prescrito está relacionado ao quadro de
estrutura organizacional em que o trabalhador se depara para desenvolver seu
trabalho (GUÉRIN et al., 2001). A escola é uma instituição que apresenta determinada
organização administrativa na qual os professores desenvolvem seu trabalho. Essa
organização e as condições de trabalho inuenciam no desenvolvimento do trabalho
dos professores no processo de recontextualização curricular.
A Escola Prossional, assim como outras IFs no Brasil, apresenta uma identidade
institucional singular, fundamentada em três características principais, a saber: a sua função
social, a sua organização didático-curricular e o exercício prossional dos professores.
Assim, os IFs foram formados, apresentando um desenho didático-curricular a partir da
transversalidade e da verticalização (PACHECO; PEREIRA; DOMINGOS SOBRINHO,
2010) e os docentes, em seu exercício prossional possuem atribuições de atividades de
ensino, pesquisa, extensão, bem como atividades de gestão e representação.
A partir dessa institucionalidade, foi assegurado aos docentes que trabalham na
instituição o plano de carreiras e cargos de magistério federal. Quanto ao regime
de trabalho, há dois tipos: dedicação exclusiva, com 40 horas semanais, em tempo
integral; ou tempo parcial, de 20 horas semanais de trabalho. Todos os professores que
participaram da pesquisa exercem o seu trabalho sob o regime de dedicação exclusiva.
O ano letivo na Escola Prossional é organizado por trimestres. O período de férias
escolares acontece em dois momentos: no início do ano, normalmente no mês de
janeiro e nos meses de junho e julho. As férias escolares que acontecem no período do
inverno são antecipadas, em uma semana, iniciando, dessa forma, na última semana
do mês de junho, devido a uma tradicional festa de cunho religioso que acontece
na cidade em que se localiza a Escola Prossional. O motivo de tal mudança é que
a festa mobiliza grande parte da comunidade escolar e, durante os dias da festa,
ca dicultada a mobilidade urbana, o que pode comprometer o deslocamento de
professores, estudantes e servidores para o Campus e, assim, prejudicar o andamento
das atividades escolares. É possível perceber aqui a inuência cultural e econômica
da cidade na organização escolar e, consequentemente, no trabalho dos professores.
Também foi possível perceber a inuência dessa organização de diferentes formas,
como, por exemplo, a organização do ano letivo; a estrutura física da escola; a
gestão e a organização do trabalho pedagógico; bem como outros aspectos. Por
exemplo, alguns professores informaram, nas entrevistas, que procuram organizar
os conteúdos a serem ministrados a partir da organização do ano letivo, que é por
trimestre. Assim, os professores organizam os conteúdos, realizam as avaliações
em função dessa organização da escola. Ao nal de cada trimestre, é realizada uma
reunião coletiva de conselho de classe, que, normalmente, exige que os professores
já tenham emitido as notas que os estudantes obtiveram naquele período. Todo o
procedimento realizado pela Escola Prossional acaba inuenciando a organização
e desenvolvimento do trabalho dos professores.
Na ergologia, as situações de trabalho são experiências que são “atravessadas” pela
história, seja das instituições, de regiões geográcas, dos sujeitos etc. (SCHWARTZ,
2002). Neste contexto, a atividade de trabalho comporta como o ponto de encontro
de histórias da instituição, do ofício, do indivíduo etc.
A Escola Prossional, como outras instituições educacionais, possui sua história, sua
trajetória e o seu signicado social, assim como os professores que levam consigo sua
história de vida, suas experiências prossionais e pessoais. O fato é que em situações de
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trabalho essas histórias atravessam a atividade de trabalho. Nesse sentido, o depoimento,
a professora de matemática, narra como a história inuencia o trabalho de professor.
Eu sou de Nova Glória (...). Então, eu venho de uma escola pública, de uma realidade de
uma matemática muito (pensando...) eu não diria fraca, diria: falta de um envolvimento
maior do professor com essa área do conhecimento, aquela falta do professor mostrar
que realmente faz sentido; aquela falta de você perceber que faz sentido e além disso, do
próprio conteúdo. Eu falo porque eu z todo o ensino médio e eu não tive trigonometria,
por exemplo (...). Perceba, a gente que se forma em uma universidade pública e tem
a formação preocupada com a parte prática onde nós fazemos a diferença é em uma
instituição pública. Porque é que você vai ter os alunos que não tem, nanceiramente,
condições de estar em uma escola particular, então, é lá que você faz a diferença enquanto
professor porque você dá possibilidade para os alunos ter um professor que tem domínio
de conteúdo. Para mim é essa a parte mais importante de estar em uma instituição pública,
porque, eu co pensando, que quando eu chego em uma turma, de eletrotécnica, os
meninos são, a grande maioria, de escolas públicas muito carentes da cidade, aí penso:
é aqui que a instituição pública faz a diferença, sabe. (PROFESSORA DE MATEMÁTICA)
Pode-se perceber na narrativa o reconhecimento do signicado social da escola
pública e a inuência da história de vida da professora que a impulsiona a querer
realizar um trabalho com o ensino de matemática, no mínimo diferente do que ela
vivenciou em sua formação na educação básica.
Relacionados com a história do professor, estão a dimensão pessoal e o caráter
socioeconômico do trabalho. A dimensão pessoal se refere a marca pessoal do
professor, o seu investimento pessoal. Tem relação com fatores como idade, gênero,
história e experiência de vida pessoal e prossional, entre outros (GUÉRIN, et al., 2001).
A partir desta perspectiva, compreende-se que o professor em seu trabalho tem um
engajamento e o investimento de si próprio (GUÉRIN, et al., 2001,). Por exemplo, foi
observado que a professora de Biologia se relacionava de forma afetuosa com os
estudantes, devido a sua característica pessoal. A professora também abordou em
seu depoimento a experiência da maternidade como um importante acontecimento
que inuenciou sua relação com o trabalho.
Primeiro, vou deixar uma questão pessoal. Durante 19 anos da minha vida eu tive um
costume, um jeito de trabalhar. Só que nesses últimos 2 anos tive questões pessoais, eu
me tornei mãe. Tenho duas crianças pequenas, moro a 40 quilômetros daqui (escola).
Então, isso modicou bastante a minha rotina, então, hoje eu sou uma pessoa que a
minha rotina é bem diferente do que era há dois anos atrás. (PROFESSORA BIOLOGIA)
Ao se tornar mãe, a professora realiza uma arbitragem do corpo-si, ou seja, o uso
de si mediante a situação da indelidade do meio (SCHWARTZ, 2003, 2006) e
estabelece uma relação com o tempo de trabalho diferente do que era feito. Se antes
a professora permanecia na escola para realizar seu trabalho, depois do nascimento
dos lhos ela começou a passar menos tempo na escola devido às demandas que
a maternidade requer. Mas ela não deixa de trabalhar em casa, e os horários não
muito comuns: “Chegando em casa eu tento preparar aula, corrigir projeto, fazer
o material que eu conseguir. Então, muitas vezes eu acabo entrando a noite e a
madrugada porque eu tenho crianças pequenas em casa e é impossível conciliar, e,
quando eles dormem, eu trabalho”. (PROFESSORA BIOLOGIA)
Observa-se aqui um processo de intensicação do trabalho relacionado à questão
de gênero no trabalho, pois a professora acumula as tarefas que são especícas
da prossão docente com os afazeres domésticos, no caso, o cuidado com os
lhos. Essa evidência encontra relação com os estudos de Bruschini (2007) e
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Yannoulas (2013), que apontam o acúmulo do trabalho remunerado e o trabalho
doméstico, que é realizado em grande medida pelas mulheres, como uma das
causas da intensicação do trabalho feminino. Bruschini (2007) ainda identicou que
a sobrecarga de trabalho recai principalmente em mulheres que são mães de lhos
pequenos, que dedicam boa parte do tempo semanal ao cuidado deles.
O aspecto econômico também se congura como uma importante dimensão do
trabalho. Essa inuência acontece como resultado da inserção da escola uma
organização social e econômica. Sendo assim, as relações do trabalho, como o
estatuto, salário, assim como a organização do trabalho são aspectos que demonstra
a inuência do aspecto econômico no trabalho.
Um dos principais elementos que foram apresentados nas entrevistas sobre a inuenciam
o trabalho docente dos interlocutores da pesquisa foram os estudantes. Essa evidência
encontra ressonância na ideia apresentada por Paro (2016), de que os estudantes
são ativos no processo pedagógico, sendo produtores e coprodutores do processo de
ensino aprendizagem, o que inuencia a atuação do professor em sala de aula.
Um dos aspectos enfatizados pelos interlocutores foi que os conteúdos que são
ensinados precisam ser ajustados aos estudantes. Esse ajuste refere-se às capacidades
dos estudantes de realizar as atividades propostas e de compreender o ensino.
O professor de Análise de Sistemas informou que “caminha” com o conteúdo de
acordo com o ritmo da turma, o que possibilita que, em certos momentos, ele
caminhe mais rápido com o conteúdo, quando os estudantes compreendem mais
rapidamente. Mas em outros momentos, em que a turma está mais lenta, ele tem
que diminuir o “passo”, podendo car sem concluir o conteúdo do ano:
Às vezes, dependendo da turma que é um pouco mais lenta, eu não consigo fechar e aí,
por exemplo, eu estou com três disciplinas que são meio que continuidade, por exemplo,
desenvolvimento móvel e desenvolvimento móvel avançado, aí se eu não consigo fechar
desenvolvimento móvel no desenvolvimento móvel avançado eu continuo o que faltou
do ano anterior (PROFESSOR INFORMÁTICA).
Outro aspecto refere-se ao comportamento e a participação dos estudantes em sala,
que são bastante valorizados por vários professores interlocutores. Se os estudantes
participam das exposições e diálogos em sala, eles contribuem com a dinâmica da aula e
na circulação de saberes (SCHWARTZ, 2000) entre professores-estudantes e estudantes-
estudantes. Mas se eles não participam das aulas, cam dispersos, conversam sobre
assuntos que não estão relacionados ao tema da aula, podem atrapalhar o andamento
da aula, o que caracteriza como uma situação de indelidade do meio.
Os estudantes também procuram fazer valer suas preferências nas aulas. As professoras
de Biologia e Química informaram que os estudantes do ano tendem a tensionar
para que conteúdos e exercícios que são exigidos no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) sejam ministrados nas aulas. A seguir, o depoimento da professora de Química:
A gente tem uma cobrança, por uma turma em especial do terceiro ano, que queria que
a gente desse horário extra de aulas do ENEM para eles. Eles cobram, eles querem.
Além da demanda de aula, que temos, eles querem que a gente vá fazer aula extra para
o ENEM, mas como não é o nosso foco, se o aluno vier no horário de atendimento com
uma questão do ENEM, eu vou sanar a dúvida (PROFESSORA QUÍMICA).
As professoras informaram que algumas disciplinas técnicas são desprezadas pelas
turmas do ano por não apresentarem conhecimentos que são exigidos no ENEM.
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A inuência da área de atuação é outro elemento que as evidências da pesquisa
revelaram sobre a recontextualização curricular, principalmente quando se compara
professores que ministram componentes curriculares relacionados à formação
técnica e à formação geral.
Foi identicado que os professores que ministram as disciplinas de conteúdo técnico
possuem o mundo do trabalho como um importante valor no processo de ensino-
aprendizagem. Já os professores das disciplinas do núcleo comum lançam o olhar
mais para o cotidiano da vida dos estudantes e, em alguns casos, para as políticas
de avaliação (Exemplo: ENEM). Outro aspecto refere-se aos materiais didáticos, os
professores de disciplinas do núcleo comum utilizam livros textos, livros didáticos e
textos, já os professores das disciplinas técnicas, como não possuem livros didáticos
relacionados às suas disciplinas, utilizam livros técnicos da área prossional e, em
muitos casos, de nível superior e apostilas, que são uma espécie de adaptação do
conteúdo para o ensino médio.
Também foi observado que a constituição histórica do campo disciplinar também
inuencia no trabalho do professor. Decisões e escolhas que os professores tomam
no processo de ensino e aprendizagem acabam sendo realizadas a partir da inuência
dos processos históricos do campo disciplinar. Por exemplo, o professor de Educação
Física informou que em suas aulas procura utilizar a pedagogia do esporte para o ensino
de técnicas ou gestos esportivos. A pedagogia do esporte tem como base a valorização
da utilização de jogos como estratégias de ensino de aspectos técnicos e táticos de
diferentes modalidades esportivas, com objetivo de se aproximar das situações reais
da modalidade esportiva (SADI, 2010). Essa perspectiva é bem diferente do método
parcial, que prioriza o ensino por partes e já foi bastante criticado no contexto da
educação física escolar. Como bem pontuou Borges (2003), as matérias ensinadas
conguram uma espécie de paradigma disciplinar, com registros discursivos e/ou
práticos de uma área. Assim, a disciplina orienta o ramo de conhecimento produzido
e difundido nos currículos de ensino, no qual uma comunidade de pesquisadores e
professores gravita, interage e estabelece uma espécie de regras de condutas comuns
aos membros da uma coletividade. O campo disciplinar inuencia na ação do trabalho
realizado pelos professores e a situação torna-se mais complexa em um contexto que
possui disciplinas relacionadas às áreas da educação básica e disciplinas relacionadas
às áreas denominadas técnicas, voltadas para o campo prossional.
A partir do olhar da ergologia a experiência prossional possui saberes singulares
que são denominados saberes em patrimônio. Esses saberes são absorvidos em
situações laborais, dotados de historicidade e são formados no desenvolvimento
da atividade de trabalho (SCHWARTZ, 2003, 2010). Alguns professores apontaram
o desenvolvimento de conhecimento na experiência de trabalho. Como exemplo o
professor de informática enfatizou que “aprendeu na experiência”. Para ele, a relação
entre a pesquisa e o ensino contribui para que ele mudasse sua forma de ensino:
(...) principalmente na extensão, na pesquisa teve uma certa inuência, mas na extensão
possibilitou ainda mais ter uma mudança na forma de ensino. Pois na extensão a gente
trabalha muito com projetos, por exemplo, “Mulheres Mil”, no qual a gente dava aulas para
mulheres da sociedade, qualquer faixa etária, e a forma com a gente envolvia com esse
público, pelo menos para minha pessoa, abriu a mente para que eu pudesse ser um pouco
mais tolerante no dia a dia, entendeu, pudesse mudar um pouco a metodologia, entender
um pouco mais a diculdade do aluno nessa forma de transmissão, de comunicação,
então realmente é uma experiência que valeu. (PROFESSOR INFORMÁTICA)
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Quando o professor foi questionado sobre em que medida essa experiência alterou
sua forma de ensinar, ele respondeu:
Quando eu entrei para esta instituição e comecei a ministrar aulas para o ensino médio
eu percebi que o público era totalmente diferenciado, eu não poderia tratar da mesma
forma que eu tratava o ensino superior o ensino médio, então eu tive muita diculdade no
começo, tanto é que tinha um alto índice de reprovação. (PROFESSOR INFORMÁTICA)
E continuou enfatizando como a experiência inuenciou em seu trabalho:
Estar mais próximo, mudar um pouco a minha comunicação, por que as vezes você
faz referência de um termo que as vezes um aluno do ensino médio não faz a mínima
ideia do que você está falando. Então, eu tive que melhorar a minha comunicação, tive
que melhorar essa questão de ter paciência mesmo, de ver que o aluno tem até certa
autonomia. Depois de um ponto quem passa a nossa responsabilidade como docente de
estar auxiliando. Essa sensação de proximidade ela é mais abrangente no ensino médio,
entendeu? E estando na extensão, trabalhando com mulheres na comunidade, eu tinha
casos, por exemplo, eu ministrava informática básica, onde, por exemplo eu tinha que
pegar na mão da pessoa, sabe. A pessoa não conseguia nem pegar no mouse, nem clicar.
Então, assim exigiu ainda mais da minha paciência e essa paciência eu consegui adquirir
graças a esses projetos de extensão que ministrávamos. (PROFESSOR INFORMÁTICA)
Aqui pode-se observar como as experiências na extensão contribuíram para a
mudança da forma como o professor lecionava, ajudou em sua aproximação com
estudantes, a ter mais paciência. É importante ressaltar que, nesse processo, a
identidade institucional da Escola Prossional, que determina aos professores
a realização de extensão e pesquisa, contribuiu no processo de aprendizado no
contexto da experiência prossional.
As políticas educacionais, de um modo geral, estabelecem diferentes diretrizes e
parâmetros que acabam conformando o trabalho prescrito dos professores. A identidade
institucional, estrutura administrativa, regime de trabalho, currículo prescrito, tais como
as áreas do conhecimento, as disciplinas e suas carga horárias, são exemplos desta
inuência. Esses são elementos que, se não podem ser considerados como o trabalho
real ou o currículo real, mas devem ser considerados como importantes elementos na
constituição do trabalho e do currículo realizado na Escola Prossional.
Foram encontradas algumas evidências interessantes sobre avaliações de larga
escala, as prescrições curriculares, como as Orientações Curriculares Nacionais
(OCNs) e os livros didáticos. Os professores da Escola Prossional são inuenciados
pelas avaliações de larga escala e por currículos prescritos tais como Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) as OCNs (matemática, sociologia, biologia, entre
outros), bem como pelo currículo apresentado aos professores (livros didáticos
– matemática, biologia, química, sociologia e ementas de disciplinas). No entanto,
a relação que existe entre os professores e esses currículos não se aproxima de
uma simples reprodução. Os professores parecem realizar um tipo de mediação de
elementos que inuenciam em seu trabalho, tais como os estudantes, os seus saberes,
os seus valores etc. Os professores utilizam-nos como instrumento e procuram dar
sentido de acordo com o objetivo do ensino, procuram manuseá-los para ganhar
eciência. Ainda foi informado que avaliações de larga escala, como o ENEM, acabam
inuenciando os professores, mesmo em uma escola de formação prossional.
Os professores, ao desenvolverem seu trabalho, sempre enfrentam as indelidades
do meio, pois essa é uma característica do trabalho real, assim como arma
Schwartz (2007, p. 191): “[...] o meio é sempre mais ou menos inel, ele jamais se
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repete exatamente de um dia para outro ou de uma situação para outra”. Essas
indelidades, que podem ser atitudes de indisciplina dos estudantes e desatenção à
aula, recursos tecnológicos que não funcionam como o esperado, questionamentos
dos estudantes, entre outros. E, devido as normas antecedentes que não recobrem
a complexidade do trabalho, os professores realizam renormalizações, nas quais
processos de debate de normas antecedentes e as dimensões locais do impossível
só podem ser resolvidos com a referência do mundo dos valores.
Na investigação, foram identicados valores envolvidos no trabalho realizado pelos
interlocutores, tais como a valorização do trabalho pedagógico em conjunto com os
estudantes; a participação e a compreensão dos estudantes em relação ao conteúdo
transmitido; contextualização dos conteúdos, com aproximação da realidade dos
estudantes; valorização da área de atuação prossional; a boa relação com os
estudantes, pautado no respeito e permeada pelo afeto, uma utilização de uma
linguagem próxima desses sujeitos; a atenção, a participação e a compreensão dos
estudantes durante o processo de ensino. No fragmento de entrevista, o professor
da área de edicações narra como lida com as indelidades do meio, no caso, a não
participação e a dispersão dos estudantes:
Se eu vejo que aula não funcionou, como que eu vejo isso? Eu vejo no rosto deles, na
participação, nas perguntas. Se eu vejo que não houve retorno, que a aula as vezes, eu
tinha planejado a aula para uma hora e eu terminei a aula em quarenta e cinco minutos,
se eu começo a enxergar que há dispersão dos alunos, eu vejo que alguma coisa deu
errado. E baseado nisso eu busco algumas metodologias diferentes (...) Então, eu estou
me moldando baseado no retorno que tenho. É uma coisa assim, não tem nenhum
parâmetro cientíco nisso, é uma coisa totalmente empírica minha de tentativa e erro.
(PROFESSOR EDIFICAÇÕES)
Nota-se que para o professor a participação dos estudantes é um valor importante,
que é observado até no aspecto físico dos estudantes (“eu vejo no rosto deles”).
Então, mediante a indelidade do meio, a não participação dos estudantes na aula,
o professor realiza renormalizações, no caso na tentativa de ministrar uma aula
mais atrativa para os estudantes, o professor busca “metodologias diferentes”. As
renormalizações mobilizam os sujeitos a colocar em jogo os seus saberes, pois
esses atos não se processam sem utilizar o inventário de saberes dos quais se
dispõe no momento (SCHWARTZ, 1996). A partir das tentativas do professor em
utilizar metodologias diferentes o professor o faz utilizando inventário de saberes.
Também se pode inferir que todo esse complexo e rico processo que ocorre na
atividade de trabalho, ou seja, no trabalho real, potencializa a produção de saberes
investidos, que são adquiridos no processo de experiência do trabalho.
Esses aspectos relacionados com a atividade de trabalho, os valores e os saberes
também podem ser considerados fatores que inuenciam no trabalho, seja pelas
indelidades do meio, que obrigam os professores a renormalizar para suas ações,
seja pela produção de saberes, que contribui para que os professores alterem sua
forma de trabalhar. É importante pontuar que Bernstein (1996) considera que o valor
é um importante elemento do processo de recontextualização curricular, no entanto,
não é indicado em que medida e a forma como esses valores inuenciam nesse
processo. Recomenda-se desta forma, mais estudos sobre esse aspecto.
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Considerações finais
O objetivo do presente trabalho foi identicar e analisar os fatores que inuenciam
no trabalho dos professores no processo de recontextualização curricular em uma
instituição de educação prossional no estado de Goiás.
Fatores como o encontro de histórias, a dimensão pessoal e o caráter socioeconômico
do trabalho, a organização do trabalho pedagógico, os estudantes, o campo
disciplinar e a área de atuação, a experiência prossional, as políticas educacionais
e curriculares e os valores dos professores inuenciam o trabalho docente dos
professores participantes da pesquisa da Escola Prossional.
Chama a atenção a inuência realizada pelos estudantes, que foi considerada como
a mais signicativa, pois os professores procuram adequar os conteúdos em seus
níveis de aprendizagem, a participação dos estudantes nas aulas inuencia o ritmo
de trabalho dos professores e as preferências dos estudantes também acabam por
inuenciar o trabalho de recontextualização dos professores. Também se ressalta o
caráter pessoal na dimensão do trabalho docente e os valores dos docentes como
elementos que inuenciam no processo de recontextualização.
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Data da submissão: 19/04/2022
Data da aprovação: 20/12/2022