Trabalho & Educação | v.31 | n.3 | p.65-78 | set-dez | 2022 |65|
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2022.39804
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Education in primitive communities in Eleanor Leacock:
an approach from Myths of Male Dominance
MACENO, Talvanes Eugênio1
DA SILVA, Yuri Rangel Nunes2

As comunidades primitivas expressam o primeiro passo da humanidade para a constituição do que
hoje é o gênero humano. Num processo de transformação interrupto, mas que envolve elementos
essenciais de continuidade, a humanidade é uma totalidade em movimento, cujo início remete a suas
primeiras formas de organização social. O seu estudo é fundamental para entendermos como chegamos
até aqui e como podemos orientar a nossa história futura. Baseado nesses pressupostos, debruçamo-
nos neste artigo sobre a educação nas comunidades primitivas, entendendo que a compreensão de
como ela se organizava na primitividade é basilar para orientarmos nossas ações pedagógicas hoje
em dia. Entendemos que desde o livro de Aníbal Ponce, Educação e lutas de classes, de 1937, nada
mais de significativo sobre o nosso objeto foi produzido na perspectiva teórica que adotamos acerca
da educação nas comunidades primitivas, isto é, a perspectiva marxista. Este artigo busca atualizar,
no sentido de negar, confirmar e aprofundar, as teses sobre a educação nas comunidades primitivas
apontadas por Ponce em sua obra. Para tal, baseamo-nos na leitura imanente de Mitos da Dominação
Masculina, clássico da antropologia marxista, de Eleanor Burke Leacock. Nesse livro, a autora traça
um amplo painel acerca das relações e da forma de organização das comunidades primitivas, a partir
do qual podemos extrair as linhas gerais da dinâmica educativa nela subjacente.
Palavras-chave: Comunidades primitivas. Comunismo primitivo. Educação nas comunidades primitivas.

Primitive communities express humanity’s first step towards the constitution of what is now the
humankind. In an intermittent process of transformation, which also involves essential elements
of continuity, humanity is a totality in motion, whose beginnings refer to its first forms of social
organization. Its study is fundamental for us to understand how we got here and how we can
guide our future history. Based on these assumptions, we focus in this article on education
in primitive communities, understanding that the comprehension of how it was organized in
primitivity is fundamental to guide our pedagogical actions today. We understand that since
Aníbal Ponce’s book, Education and class struggle, from 1937, nothing more significant about
our object has been produced in the theoretical perspective that we adopted about education in
primitive communities, that is, the Marxist perspective. This article seeks to update, in the sense
of denying, confirming and deepening, the theses on education in primitive communities pointed
out by Ponce in his work. In order to do so, we base ourselves on the immanent reading of Myths
of Male Dominance, a classic of Marxist anthropology, by Eleanor Burke Leacock. In this book,
the author draws a broad panel about the relationships and the form of organization of primitive
communities, from which we can extract the general lines of the underlying educational dynamics.
Keywords: Primitive communities. Primitive communism. Education in primitive communities.
1 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Alagoas, Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Alagoas, Graduação em história pela mesma instituição. Professor adjunto da Universidade
Federal de Alagoas. E-mail: talvaneseugenio@gmail.com
2 Graduando em pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas. E-mail: yuri.nunes@arapiraca.ufal.br
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I
Vive-se uma época de negacionismo, especialmente o negacionismo histórico, cujas
consequências resultam na construção de narrativas falseadas sobre o passado e
no apagamento de experiências históricas vividas, em conveniência com as relações
de domínio contemporâneas. Uma das diversas memórias sociais negadas pelo
liberalismo imposto como forma de pensamento dominante é o caráter igualitário e
destituído de propriedade privada e de relações de subordinação que caracterizam
as comunidades primitivas. Para o pensamento liberal, é inadmissível a existência
de uma sociedade na qual não apenas homens e mulheres eram iguais, mas todos
os homens independentemente de gêneros. Não é possível, para a lógica capitalista,
que eterniza o homem individualista e mesquinho, admitir que nem sempre essa
foi a essência humana. Por isso, para a historiograa ocial, a forma pela qual os
homens se organizaram na primitividade corresponde a uma “pré-história”.
A humanidade, portanto, se constituiria numa oposição àquela experiência, que no
máximo pode ser revisitada com um olhar meramente memorialista e curiosamente
etnográco. Ao contrário dessa perspectiva, entendemos que uma linha de
continuidade no desenvolvimento da sociedade humana das primeiras formas de
organização social até os dias de hoje. As diferenças entre os diversos modos de
produção não eliminam o caráter social da vida humana, porém o rearma em níveis
cada vez mais ampliados. Todavia, sem a existência dos estágios anteriores não
seria possível chegarmos até o presente.
Em decorrência da atribuição desse distanciamento e estranhamento entre as
formações sociais primitivas e a sociedade contemporânea, o complexo social
educativo existente nas primeiras não recebe o devido interesse no campo da
pesquisa em educação.
Nos cursos de licenciatura no Brasil, pouca atenção é dada à problemática da
educação na chamada pré-história. Mesmo nas disciplinas relacionadas ao ensino
da história da educação, o estudo dessa importante fase de desenvolvimento
da humanidade é pouco problematizado. Entre os livros mais utilizados nessas
disciplinas estão História da educação: da antiguidade aos nossos dias, de Mario
Manacorda, História da pedagogia, de Franco Cambi e Educação e lutas de
classes, de Aníbal Ponce. Nas duas primeiras obras, a educação na “pré-história”
é ignorada. Entretanto, na contramão desses dois livros, o clássico de Ponce, de
1937, dedica o seu primeiro capítulo ao tratamento da educação nas comunidades
primitivas. Educação e lutas de classes é a mais antiga publicação entre as três por
nós mencionadas. As demais são, respectivamente, de 1983 e 1995. Assim como
o livro de Manacorda, o de Ponce é reconhecidamente marxista. No que se refere
a artigos e pesquisas cientícas sobre a educação nas comunidades primitivas, a
carência de ocorrências no campo da educação é gritante. Os parcos trabalhos que
encontramos assentam-se, sobretudo, no livro de Ponce.
O estudo das comunidades primitivas em todos os seus âmbitos é fundamental para
o entendimento das possibilidades e limites da humanidade em nosso tempo. O
gênero humano, tal como o conhecemos hoje, origina-se nos tempos “pré-históricos” e
prossegue seu desenvolvimento numa linha de continuidades e rupturas, implicando
sempre processos de superação, até se constituir na sociabilidade complexa que
existe hoje.
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Ao contrário do que o termo pré-história possa sugerir (como uma oposição entre
o mundo selvagem, pretensamente a-histórico, e a civilização emergida a partir da
Antiguidade) o salto ontológico, efetivamente ocorrido, na passagem da sociedade
comunista primitiva (típica da pré-história) à sociedade de classes mantém, como
ocorre em qualquer salto ontológico, relações de dependência e independência entre
as formas de ser anteriores e aquelas surgidas com o salto. Isto quer dizer que, em que
pesem as diferenças essenciais e estruturais das sociedades de classes do mundo
antigo e as comunidades primitivas do período anterior, as primeiras não existiriam
se antes não tivesse havido estas últimas. Entre elas permanece uma linha de
continuidade. Essa linha de continuidade é facilmente vericável quando se observa
que os elementos essenciais que, em última instância, caracterizam o gênero humano
(portanto, existentes desde o surgimento do homem, e que continuarão a existir
enquanto houver humanidade), são originados na “pré-história”. Entre esses elementos
podemos citar: a linguagem, o conhecimento, a educação, a sociedade, o trabalho etc.
Nessa perspectiva, investigar as comunidades primitivas não é se debruçar sobre
grupos com os quais não temos relação de identidade, mas sim pesquisar o nosso
próprio gênero. Partindo de um referencial marxista, entendemos que a pré-
história não se desenvolve num período histórico uniforme (mesmo hoje, ainda que
residualmente, há povos vivendo em nível de desenvolvimento social pré-histórico)
e que as diversas comunidades primitivas não correspondem a um grupo social
homogêneo. Todavia, a humanidade enquanto gênero humano integrado (ainda
que essa integração ocorra sob a base da exploração realizada pelo capital, e por
isso mesmo essa integração não é verdadeiramente universal e autenticamente
genérica) superou a pré-história. Entendemos também que, apesar das diversidades
entre os povos primitivos, é possível apreender traços em comum entre eles sem
desconsiderar suas diferenças. Considerando esses pressupostos, as comunidades
primitivas caracterizam-se pelo trabalho comunitário e, em consequência disso, pela
não existência das classes sociais e da propriedade privada dos meios de produção.
Essas características das comunidades primitivas fazem com que elas se organizem
de forma totalmente diferente das sociedades que surgirão a partir da Antiguidade em
diante. Entre essas características podemos relacionar a não existência do Estado,
da exploração do trabalho, da subordinação da mulher em relação ao homem etc.,
mas, sobretudo, nesses tipos de comunidades, a essência humana não é egoísta e
individualista. A rearmação, ao nível cientíco e histórico, desse caráter não egoísta e
não individualista das primeiras formas de organização social humana é de fundamental
importância para desmisticar a versão ideologicamente construída pelo liberalismo de
uma essência humana a-histórica e inalteradamente egoísta. Ora, se a humanidade já se
organizou tendo por base um homem não egoísta, não é, portanto, uma impossibilidade
histórica in totum que algum dia possa se construir uma sociedade sem egoísmo.
No que se refere à educação, a investigação de como esse complexo social estava
organizado nessas comunidades destituídas de classes sociais, propriedade
privada, egoísmo etc. possibilita extrair elementos orientadores para a construção
de uma organização e de uma prática educacional que nos direcione a uma relação
mais humanamente rica.
Conforme apontamos, o estudo mais difundido sobre essa temática data de 1937. As
fontes sobre as quais Ponce trabalha são fundamentalmente Engels, em A origem
da família da propriedade privada e do Estado, de 1884, e Morgan, em A sociedade
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primitiva, de 1877 (base na qual também Engels se apoia). Ponce também se
fundamenta em estudos, todos eles de autores não marxistas do nal do século XIX e
início do século XX, a saber: John McLennan, Edvard Westermarck, Margaret Mead,
Lucien Lévy-Bruhl, J.J. Bachofen, Ernst Krieck, Gustav Wyneken, Fritz Graebner,
Saverio De Dominicis, Paul Descamps, e Émile Durkheim). Portanto, a exposição de
Ponce sobre a educação das comunidades primitivas se apoia numa atualização que
ele faz de Engels, com base nas pesquisas mais recentes em sua época. Contudo,
em que pese a inegável importância da presença e da contribuição teórica de
Ponce, não temos pesquisas expressivas que, à luz do que se produziu depois dele
no campo da antropologia e da história, tratem especicamente da educação nas
sociedades primitivas. Isso é mais evidente no tocante aos estudos marxistas. Este
artigo pretende contribuir para a difusão de uma atualização acerca dessa temática.
Os elementos fundamentais da educação primitiva apresentados por Ponce mantêm-
se substancialmente de pé em face das descobertas posteriores analisadas por
Leacock. Entretanto, algumas teses apontadas pelo autor não se sustentam à luz
da investigação da antropóloga estadunidense. Uma delas é a armação, presente
em Ponce, da inexistência de uma educação em sentido estrito nas comunidades
primitivas. A nosso ver, seria impossível a reprodução daquelas comunidades sem a
existência de uma educação relativamente consciente e com algum grau (ainda que
baixíssimo) de sistematicidade, como demonstraremos mais à frente.
Leacock (1922-1987) ainda era adolescente quando Ponce morreu em 1938, mas
um autor marxista seminal para a compreensão das sociedades primitivas e o
desenvolvimento destas para a sociedade de classes já tinha uma produção bastante
considerável quando Educação e lutas de classes foi escrito. Trata-se de Vere Gordon
Childe. Não sabemos a razão pela qual Ponce, em sua obra, não se referencia em
Childe. É provável que o primeiro livro que o notabilizaria (A evolução cultural do
homem, de 1936) não tivesse chegado ao conhecimento de Ponce. O outro livro
de destaque de Childe, que não alcançou Ponce em vida, seria O que aconteceu
na história, de 1942. As próprias categorias fundamentais para o entendimento do
processo que leva das comunidades primitivas às primeiras civilizações, revolução
neolítica e revolução urbana, só serão difundidas e consolidadas por Childe depois
da morte de Ponce. Por expressarem de forma objetiva o processo histórico percorrido
pela humanidade em sua gênese, tais categorias marxistas serão referências para a
historiograa e para a antropologia de diversas correntes teóricas.
Leacock, em seu clássico Mitos da dominação masculina, de 1981, sintetiza anos
de pesquisa de campo com grupos primitivos remanescentes, realizada em ilhas do
Pacíco, na África, no norte do continente americano e em regiões da Europa. Além
disso, a antropóloga estudou teoricamente vários povos primitivos do mundo todo,
inclusive tribos brasileiras. Deteve-se especialmente sobre a educação dos povos
primitivos. Outro aspecto importante é que a maior parte dos autores que servem
de base para a construção da educação nas comunidades primitivas por Ponce são
examinados por Leacock, especialmente, mas não unicamente, Engels, Morgan,
McLennan, Westermarck e Mead.
A educação de uma determinada socialidade está intimamente integrada à forma
como esta sociedade se organiza para atender às suas necessidades de reprodução
social. Nesse sentido, a educação de uma época corresponde ao momento histórico
especíco no qual ela existe e atua. Isso ocorre porque o mundo material exerce o
momento predominante sobre os demais complexos da sociabilidade. Embora os
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complexos sociais não relacionados diretamente com a transformação do mundo
material em produtos de consumo e em meios de produção3 exerçam inuências,
por vezes decisivas, sobre a base econômica das sociedades, eles atuam, em sua
síntese geral, em conformidade com os campos de alternativas que essa estrutura
econômica possibilita, excetuando-se em períodos revolucionários, nos quais
determinados complexos assumem momentaneamente o momento predominante.
Esses complexos sociais de segunda ordem são fundados pelo trabalho, isto é,
pela forma concreta mediante a qual os homens transformam o mundo natural
para a sua reprodução social. Eles atuam como mediação para a realização da
reprodução social e, por isso, não se acham em desconformidade com a natureza
da sociedade da qual são parte integrante. Como armamos, em sua universalidade
esses complexos atuam na direção da reprodução da ordem social vigente, todavia
isso não signica que no nível da particularidade não seja possível orientá-los na
direção contrária da exigida pela reprodutividade social.
Nesse sentido, é o trabalho, a base econômica da sociedade, que determina, em
última instância, como os complexos secundários funcionarão para atender às
necessidades da totalidade social. A educação, um destes complexos sociais, tem
a função de contribuir para a reprodução da sociedade na qual ela está inserida,
procurando, assim, preparar os indivíduos para se tornarem parte daquela
sociedade, uma vez que “a reprodução da sociedade impõe de antemão os limites e
possibilidades de atuação da educação” (MACENO, 2019, p. 52).
Dessa maneira, em uma sociedade de classes, que pressupõe, portanto, uma divisão
social do trabalho fundada na relação entre explorados e exploradores econômicos,
os complexos sociais secundários assumem um caráter de desigualdade e atuam
como meios para a reprodução dessa ordem desigual, por isso, a educação nas
sociedades de classes assume uma forma desigual.
Essa natureza desigual da educação não se origina nela, mas da essência econômica
da sociedade. Uma sociedade economicamente igual exige para a sua reprodução uma
educação igualitária; do mesmo modo, uma formação social baseada na desigualdade
econômica precisa de um complexo educativo também desigual. Nas duas situações,
a função social exercida pela educação é a mesma: ela está mediando a reprodução
da sociedade, e isto constitui sua natureza. Como arma Maceno (2019, p. 53), a
educação sempre mediará a reprodução social, cumprindo um papel imprescindível
para a continuidade do ser social, não importando qual seja a forma de sociabilidade,
se de classes ou igualitária. Não há sociedade sem a esfera social da educação.
Nas comunidades primitivas, o caráter igualitário que as congurava também estava
presente em sua educação, assim como em todos os outros complexos e esferas sociais
daquelas sociedades. Este igualitarismo, e o tipo de educação adotado em decorrência
dele, era expressão das características econômicas dessas formações sociais. O ínmo
afastamento das barreiras naturais e o baixo desenvolvimento das forças produtivas,
entre outros aspectos, impunham determinadas condições nas quais cada vida individual
era indispensável para garantir a sobrevivência de todos os que pertenciam ao grupo.
3 Referimo-nos aqui ao que Lukács chama de posições teleológicas secundárias (LUKÁCS, 2013. p. 84),
àquele conjunto de complexos sociais que embora tenham papel decisivo para a transformação do mundo
natural, não executam esse intercâmbio sociedade x natureza nem se constituem no trabalho. Entre eles
podemos citar a linguagem, a ideologia, a arte, a educação, o direito e a política, entre outros.
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Essas determinações presentes na base econômica das comunidades primitivas
reetia-se em todos os aspectos da vida social dos povos que a integravam. Como
nos revela Ponce (2001, p. 20), nas comunidades primitivas o homem possuía uma
concepção de mundo própria mesmo que nunca a houvesse formulado expressamente.
Sua concepção de mundo reetia o seu pouco domínio sobre a natureza e a organização
econômica da tribo. Já que a organização primitiva não possuía graus ou hierarquias,
o homem primitivo entendeu que a natureza funcionava desse modo também.
A educação nessa forma de organização social também reetia essas determinações
econômicas. Como arma Ponce (2001, p. 21), destas comunidades, nas quais
todos ocupavam a mesma posição na produção dos meios de subsistência, emerge,
logicamente, o ideal pedagógico ao qual as crianças se ajustariam. Para o autor, o
dever ser, aspecto essencial do ato de educar, era incutido nas crianças através do meio
social desde que nasciam. A educação nas comunidades primitivas levava o indivíduo
a entender que sua consciência era um fragmento da consciência social e, portanto, as
necessidades da tribo deveriam ser priorizadas em relação às necessidades individuais.
II
Leacock, durante sua vida, estudou etnogracamente os montagnais-naskapi da
península do Labrador, mas também realizou em suas obras uma extensa pesquisa
documental. Entre outras fontes, a autora se debruçou sobre os relatos de viajantes
envolvidos no comércio colonial de peles, nos documentos da Companhia Baía de
Hudson4 (fundada em 1670 e, até hoje, ainda existente), que controlava o comércio
de peles no Canadá e, sobretudo, nos manuscritos produzidos pelos jesuítas durante
as missões jesuíticas na região, no século XVII, conhecidos como Jesuit Relations.5
Através dos relatos contidos em Jesuit Relations, analisados por Leacock, o leitor
tem a possibilidade de acessar algumas descrições feitas pelos jesuítas, em
especial as do padre Paul Le Jeune, acerca dos montagnais-naskapi e do processo
de catequização e “domesticação” que fora iniciado no Labrador.
Ao descrever os montagnais-naskapi, Le Jeune dá indícios de quais valores, atitudes e
comportamentos eram incutidos nos indivíduos daquele povo, permitindo, assim, que se
chegue a uma compreensão de que tipo de educação existia naquele ambiente social.
Vejamos um exemplo. O jesuíta reprovava expressamente a liberdade sexual das
mulheres montagnais e a falta de preocupação com a identicação de “herdeiros” entre
as crianças do grupo. A partir das informações deixadas por Le Jeune no que concerne
aos montagnais-naskapi e seus hábitos, Leacock (2019, p. 268) conta que ele:
Registrou seguidas vezes sua apreciação acerca do senso de cooperação e da irrestrita
generosidade desse povo. Por outro lado, concomitantemente, causava-lhe espanto e
4 A HBC, Hudson’s Bay Company.
5 The Jesuit Relations and Allied Documents constituem fontes etnográcas fundamentais acerca dos primeiros
povos do norte da América. Esse conjunto de documentos e relatórios feitos pelos jesuítas que atuavam
na chamada Nova França foram compilados anualmente de 1632 a 1673. Nele os jesuítas relacionavam
não apenas aspectos de suas missões, mas também relatos e descrições sobre as características naturais
e geográcas do território e sobre a organização e o comportamento social dos povos que primitivamente
habitavam a região. Esse material, somado a outros documentos jesuíticos de mesmo teor e também
referentes ao século XVII, foi traduzido, editado e lançado por Reuben Gold Thwaites em 71 volumes. É
esse material (Thwaites, Reuben Gold, ed. 1906. The Jesuit Relations and Allied Documents. Seventy-one
volumes. Cleveland: Burrows Brothers) que Leacock usa como uma de suas referências documentais.
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reprovação a atitude despreocupada e casual em relação aos deuses; o puro gosto de
viver, festejar, conversar, cantar; a liberdade sexual das mulheres (o bom jesuíta parecia
assumir como um dado natural a liberdade sexual dos homens) e a falta de preocupação
quanto à legitimidade dos “herdeiros”; as constantes brincadeiras e provocações, muitas
vezes intoleravelmente indecorosas aos ouvidos do missionário, nas quais ambos,
homens e mulheres, engajavam-se (uma prática que reconhecemos hoje como um meio
de denir e reforçar costumes sociais em sociedades completamente igualitárias).
As distinções entre os valores da sociedade europeia mercantil e as comunidades
primitivas da península do Labrador aparecem não apenas nessa descrição feita
a partir de Le Jeune, mas em diversas outras passagens de Mitos da dominação
masculina (tanto naquelas que se apoiam nos documentos legados pelo século XVIII,
quanto nas que se sustentam na permanência de elementos culturais originários nos
grupos remanescentes da década de 1950 pesquisados em campo por Leacock).
A propósito da citação acima, duas questões podem ser destacadas. A primeira
delas diz respeito às distinções “culturais” por nós já mencionadas. Ao individualismo
burguês que se torna a essência do homem a partir do período do mercantilismo,
as comunidades montagnais-naskapi armam um grande “senso de cooperação”
e uma “irrestrita generosidade”; ao dogmatismo e à intolerância religiosa (que,
inclusive, explode em conitos épicos no período em tela, o que em parte motiva
a migração dos ingleses e franceses para o “Novo Mundo”), os nativos do Canadá
apresentam uma “atitude despreocupada e casual em relação aos deuses”; à
subordinação da mulher em relação ao homem e à opressão de sua sexualidade
na civilização europeia, os povos originários opõem uma “liberdade sexual das
mulheres”; à necessidade de legitimação dos herdeiros por meio do controle
sexual sobre a mulher a m de assegurar a transmissão da propriedade privada
aos seus dessedentes praticada na Europa, os autóctones mantêm uma “falta de
preocupação quanto à legitimidade dos ‘herdeiros’”. Relativamente a essas ultimas
questões, isto é, o espanto dos jesuítas ao constatarem a autonomia, a importância e
a inuência das mulheres entre os montagnais-naskapi, os padres vão orientar suas
ações a instituir, no interior das tribos, a subordinação do feminino ao masculino,
aconselhando os homens a exercerem autoridade sobre elas, usando do argumento
de que na França as mulheres não mandavam nos maridos.
A segunda observação que consideramos pertinente refere-se ao fato de que não é
verdadeira a imagem enraizada no senso comum de que entre os povos primitivos
predominava a selvageria, a obscuridade e uma vida enfadonha e monótona. Pelo
registro aludido e por outras tantas comprovações, vemos que o riso, a brincadeira, o
lúdico, a liberdade, a afetividade e a generosidade eram elementos integrantes da forma
de viver desses povos. Por certo, o desenvolvimento da individualidade é muito limitado
nesta etapa do desenvolvimento humano, entretanto, o caráter comunitário e igualitário
dessas comunidades proporcionava um nível de relação entre os indivíduos sem a
marca do egoísmo e do estranhamento, o que possibilitava – apenas neste aspecto –
uma forma de vida social mais ”livre” que a vericada nas sociedades de classes.
Nesse sentido, a despeito da organização social dos montagnais-naskapi ser marcada
por um caráter cooperativo e igualitário, isso não resultava em anulação do sujeito
individual; ao contrário, entre os nativos era comum o imenso respeito pela autonomia
dos indivíduos que pertenciam ao grupo, de tal modo que a autora arma que “a
forte valorização da autonomia pessoal tem sido reconhecida como característica
dos povos nativos canadenses em geral” (LEACOCK, 2019, p. 270). Havia uma
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relativa harmonia entre os interesses individuais e as necessidades comunitárias.
Essas últimas precisavam que os sujeitos individuais se desenvolvessem.
Nesse momento da socialidade humana, a realização do indivíduo e seu
desenvolvimento em individualidade estavam conectados à realização do gênero
humano, como arma nossa autora:
As relações igualitárias entre os sexos dentre os montagnais da Península do Labrador
baseavam-se na compatibilidade entre o bem-estar do grupo e a satisfação de cada
indivíduo no interior desse grupo [...]. Em contraste com as sociedades competitivamente
organizadas, nas sociedades de bando, como os montagnais, quanto mais capaz
fosse um indivíduo qualquer, melhor seria para os outros indivíduos. Desde que as
necessidades fossem apropriadamente compartilhadas, uma pessoa mais capaz não
deixava desempregada uma menos capaz, mas aumentava a quantidade de alimentos
disponíveis no acampamento. (LEACOCK, 2019, p. 336).
Transformar as caraterísticas comunitárias dessas comunidades e substituí-las
pelos valores da sociedade burguesa em armação no século XVIII é a missão
central dos jesuítas. Esse processo vai se dar por diversas formas de doutrinação
e violência. No entanto, Leacock explica que esta missão jesuítica não ocorreu
sem alguma resistência por parte dos montagnais. Leacock (2019, p. 323), citando
Thwaites, aponta que os montagnais ridicularizavam as tentativas dos jesuítas de
exercer autoridade sobre eles, o que frustrava os missionários.
O próprio Le Jeune não pode deixar de admirar a naturalidade e a bondade dos
bandos de caçadores montagnais. De acordo com Leacock (2019, p. 267-268), o
padre jesuíta destacou a relação afável que existia entre homens e mulheres que,
para ele, decorria da autonomia existente na tomada de decisões sobre a divisão
sexual do trabalho. Ele é inequívoco em armar que a autonomia pessoal é um traço
característico da vida comunitária dos montagnais.
É importante levar em consideração, no entanto, que as mudanças econômicas,
provocadas pelo comércio de peles, controlado pela Europa, norteavam mudanças
nos paradigmas que fundavam aquela sociabilidade das comunidades primitivas, de
maneira que, quanto mais avançava o comércio de peles, mais essas comunidades
tornavam-se subordinadas à economia mercadorizada. Um exemplo desse grau
de modicação provocado pelo contato com o capitalismo em sua fase mercantil
pode ser dado pelo surgimento e ampliação da prática da armadilhagem.6 A
comercialização das peles de animais produzida pelos nativos conferia-lhes acesso
a muitos produtos que lhes proporcionavam “benefícios”, mas não sem um elevado
prejuízo à sua organização interna originária, como ilustra Leacock:
O comércio com os europeus trouxe facas, machados de ferro e panelas de cobre que
maravilhosamente economizavam mão de obra em comparação às ferramentas de pedra
e ao cozimento da carne em valas ou pratos feitos de casca de árvores sobre pedras
aquecidas. Todavia, juntamente com as novas ferramentas e utensílios, novos alimentos
básicos e cobertores de lã, o comércio trouxe doenças devastadoras que dizimaram bandos
inteiros e provocou uma guerra prolongada com os iroqueses sobre as terras propícias
à caça de animais peleiros. Por m, trouxe um desao inescapável a um modo de vida
que, dentro dos limites de sua tecnologia, proporcionava sentido e satisfação. E anunciava,
inevitavelmente, a perda da autonomia econômica e cultural. (LEACOCK, 2019, p. 268-269).
6 Ao contrário da caça de subsistência empreendida pelo montagnais-naskapi coletivamente e em um
território cuja posse era coletiva, a caça de armadilhagem era inteiramente voltada para a produção de
mercadoria destinada ao comércio europeu, tinha um caráter individualista e realizava-se em território que
se armava como privativo e hereditário.
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Vários elementos característicos da organização dos montagnais-naskapi se
modicaram, levando a um rebaixamento do papel econômico desempenhado pelas
mulheres. Sobre isso, Leacock (2019, p. 269) observa:
A estrutura da vida dos montagnais foi inexoravelmente transformada, à medida
que as pessoas passaram da caça em grupo para a caça individualizada de peles e
tornaram-se cada vez mais dependentes dos caprichos de um mercado mundial. As
pessoas continuaram a adquirir diretamente da terra grande parte de sua comida, e a
cooperação, o compartilhamento e a ajuda mútua em tempos de aição permaneciam
importantes. No entanto, os direitos de usufruto das linhas de armadilha que dois
homens teriam instalado juntos substituíram o antigo movimento de livre circulação
pelas terras tradicionais em busca da caça e da partilha diária de trabalho e alimento
que isso acarretava. Os itens comercializados substituíram roupas fabricadas em casa,
mocassins e cobertas de tendas, e a habilidade das mulheres no trabalho com o couro
perdeu seu importante papel na economia do grupo. Os grandes grupos multifamiliares
se fragmentaram em unidades unifamiliares, cada uma vivendo em sua própria tenda.
Em suma, o que antes existia como coletivos econômicos tornou-se, em essência,
bandos frouxamente conectados, constituídos por famílias independentes.
Tais mudanças ocorreram gradativamente e levaram a prática da caça coletiva e
outras caraterísticas dos montagnais a perderem espaço, tornando-as cada vez mais
marginais, em favor da incorporação de elementos do estilo de vida europeu. Além
disso, caçadores brancos começaram a se apropriar dos territórios de armadilhagem
dos nativos. Os montagnais, por outro lado, passaram a procurar empregos em
assentamentos brancos e nas indústrias madeireiras e de mineração. Apesar disso, é
importante ressaltar que, em algum nível, ainda se faziam presentes valores como a
cooperação e a autonomia, que haviam atravessado gerações entre os montagnais,
como demonstrado por Leacock (2019, p. 269-270) quando ela conta que:
Os montagnais haviam sido empurrados para um status econômico marginal em relação
à sociedade euro-canadense. Suas melhores terras para a utilização de armadilhas
vinham sendo apropriadas por caçadores brancos; animais de caça tornavam-se
severamente escassos; e esses índios eram marginalmente empregados como
trabalhadores não qualicados em torno dos assentamentos brancos e nas crescentes
indústrias madeireiras e de mineração. Do mesmo modo, no entanto, as pessoas
permaneciam unidas em torno de seus interesses, não se dividindo pelas diferenças
entre uma elite empreendedora e uma maioria economicamente marginal. Ainda havia
a necessidade de alguma medida de compartilhamento e cooperação na vida do
acampamento, e práticas confortáveis e amistosas de respeito interpessoal e autonomia
haviam atravessado as gerações. De fato, a forte valorização da autonomia pessoal tem
sido reconhecida como característica dos povos nativos canadenses em geral.
Já tratamos acima da igualdade substancial que havia entre os montagnais-naskapi.
Veremos, agora, como se constituíam os papéis de gênero entre os montagnais-
naskapi e como se processava a educação entre eles. Essas três questões estão
inteiramente relacionadas. Não é possível entender a educação nas comunidades
primitivas, particularmente nesta que Leacock toma como objeto, sem compreender
a natureza igualitária da sociedade e da horizontalidade das relações entre os
gêneros. Noções modernas, como família, cuidado, afeto, maternidade, paternidade,
divisão de tarefas na criação etc. tinham outro conteúdo entre esses povos primitivos.
Com respeito a estas últimas duas noções, referimo-nos a como o cuidado que
direcionavam às crianças era dividido e à maneira como entendiam a paternidade.
Leacock (2019, p. 271) explica que: “Entre os montagnais com quem trabalhei,
observei que o pai participava do cuidado e da socialização de crianças com uma
naturalidade e uma espontaneidade consideradas ‘femininas’ em nossa cultura”.
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Ainda segundo a antropóloga:
Em um acampamento montagnais, crianças pequenas vagueiam por todos os lados,
casualmente assistidas por crianças mais velhas, pais ou outros adultos que por acaso
se encontrem por perto, e gradualmente alargam seu raio de alcance para cada vez
mais distante de suas próprias tendas. (LEACOCK, 2019, p. 271).
A autora narra momentos em que presenciou como a paternidade não era levada
em conta em seu sentido biológico, mas sim em seu sentido social, entendida como
responsabilidade de todos os homens. Em suas palavras:
Certa tarde, um homem com quem eu trabalhava pegou seu lenço para limpar o nariz
de um garotinho que por ali passava. Depois da sessão, apressei-me a examinar meus
mapas genealógicos, lembrando-me de que, àquela época, o homem não tinha lho, neto
ou sobrinho pequeno. E, com efeito, meu reexame comprovou que eu estava correta:
aquele menino era simplesmente uma criança que precisava de alguém que lhe assoasse
o nariz. Nessa mesma linha, veriquei a relação de parentesco de uma criança com um
homem que a colocara no centro de uma fotograa da família que eu estava tirando,
apenas para descobrir que não havia relação alguma (ou uma relação sucientemente
próxima que pudesse ser rastreada ou lembrada) (LEACOCK, 2019, p. 272).
Outro registro exemplar do teor paternal de todos os homens por todas as crianças
indistintamente e de como isso congura uma educação muito distinta da nossa
nos é trazido por Thwaites. De acordo com a antropóloga, “quando o missionário
Le Jeune censurou um índio por ‘permitir à sua esposa uma tal liberdade sexual
que lhe impedia de assegurar-se de que o lho era, de fato, dele, os montagnais
replicaram” [nas palavras de Thwaites] (LEACOCK, 2019, p. 272): “[...] Vocês não
têm juízo. Vocês franceses amam apenas seus próprios lhos, mas nós amamos
todos as crianças de nossa tribo” (1906, p. 255 apud LEACOCK, 2019, p. 272).
Este caráter social (e não biológico) da paternidade ca ainda mais claro
quando Leacock (2019, p. 271) relata que, em sociedades como a dos zuni7 e a
dos montagnais-naskapi, as crianças que perdiam seus pais não cavam em
circunstâncias economicamente precárias, pois a família estava contida numa rede
de parentesco que se responsabilizava pela geração em crescimento.
Diferentemente da sociedade de classes, na qual, majoritariamente, a mulher ca
com a responsabilidade de estabelecer um vínculo afetivo e de cuidados com a
criança, na sociedade montagnais estes papéis eram desempenhados por ambos
os sexos com espontaneidade. Leacock (2019, p. 267) menciona uma crônica
de Le Jeune na qual ele conta sobre o acolhimento emocional oferecido por um
homem montagnais a uma criança que sofria convulsões. Diante do ocorrido, Le
Jeune descreve que o homem acalmou o lho com um amor similar ao de uma
mãe, mas ainda assim com a rmeza de um pai. Esse relato nos mostra como a
responsabilização social sobre a criança difere de nossas práticas atuais.
Em nossa época, mesmo entre os pais que dividem as tarefas domésticas e de cuidados
com os lhos, sempre há um limite para as responsabilidades dos pais. Por exemplo,
7 Os zuni são povos nativos da América do Norte, mais propriamente da região que hoje constitui o Estado
americano do Novo México. De acordo com Leacock, esse povo “travou uma dura batalha, embora perdida,
pela independência política e econômica, mas que continua [anos 80 do século XX] insistindo no direito de
determinar a direção que seu próprio estilo de vida deve tomar. Os zuni mantêm muitas características de
uma sociedade totalmente comunal, com relações entre os sexos caracterizadas por reciprocidade, não
superordenação-subordinação”. (LEACOCK, 2019, p. 270).
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ele cuida, mas quando um bebê faz cocô, quando ele “tem crise de birra” ou quando
está extremamente irritado por conta de alguma enfermidade, a responsabilidade deixa
de ser do pai e passa a ser da mãe. Isso não existia nas comunidades primitivas. “Um
homem poderia segurar no colo uma criança agitada, enquanto a mãe tranquilamente
ocupava-se de alguma outra coisa sem ser tomada pela compulsão de assumir o
encargo de acalmar aquela criança” (LEACOCK, 2019, p. 74).
Esse outro relato presenciado pela própria Leacock ilustra bem a questão:
Observei que o pai participava do cuidado e da socialização de crianças com uma
naturalidade e uma espontaneidade consideradas “femininas” em nossa cultura. Ele
sentia-se seguro até mesmo no trato com bebês. Um dia, um pai embalou uma criança
agitada e doente em seus braços e cantarolou para ela durante horas enquanto sua
esposa defumava uma pele de cervo. (LEACOCK, 2019, p. 271).
A própria Leacock nos traz registros etnográcos que vivenciou em campo no início
dos anos 50 (como este acima), ou seja, de um período em que essas comunidades
tinham sofrido toda sorte de transformações. A autora verica que ainda a
conservação, no que tange à questão de que estamos tratando, de elementos próprios
de uma época em que, aos montagnais-naskapi, ainda não tinham sido impostas as
transformações de suas bases econômicas. Ela nos mostra, a partir de sua própria
constatação in loco, como esta atitude tolerante por parte dos homens montagnais
para com as crianças do grupo se fazia presente em diversos momentos, até mesmo
quando as crianças os interrompiam. Certa vez esta conduta paciente e afetuosa
foi por ela observada quando um homem montagnais estava aplainando tábuas e
resolveu mostrar a uma criança como fazer aquilo: “Ele mostrou ao menino como
manejar a plaina e permitiu que a criança brincasse com ela até que se entediasse
e decidisse seguir adiante. Tal paciência adveio prontamente, pois se baseava na
realidade da estrutura socioeconômica” (Leacock, 2019, p. 272).
Também o aprendizado não era pautado por questões de gêneros. Como arma
Leacock (2019, p. 187), no tocante à educação dos nativos do Labrador, as meninas
acompanhavam seus pais em caçadas e aprendiam sobre coisas atribuídas a ambos
os sexos. Estas mulheres eram consideradas habilidosas e independentes, capazes
de sustentar a si mesmas através da caça que realizavam com suas mães, irmãs e
avós. Da mesma forma, podiam sustentar seus maridos por algum tempo quando
estes estivessem incapacitados. Elas eram capazes de fabricar suas próprias
canoas, entre outras tantas atividades que conseguiam desempenhar.
Mais uma vez é extremamente importante ressaltar, como demonstrou a autora, que
as bases para tal comportamento eram resultantes da estrutura socioeconômica
daquela comunidade. Tendo isso em mente, não é desnecessário insistir em dizer
que, uma vez que passa a existir o contato com o comércio de peles, as mudanças
socioeconômicas resultantes deste contato implicaram, também, mudanças nesta
maneira de se relacionar e educar as crianças montagnais. O exemplo pode ser
dado pela inexistência da admoestação e do castigo físico no processo educativo
dos bandos nativos. A esse respeito, Paul Le Jeune mostrava-se incomodado com
a resistência dos montagnais em castigar as crianças e entendia o ato como uma
medida educativa essencial para a formação dos cidadãos da Nova França. Os
montagnais eram tão contrários a este tipo de medida que tiravam suas crianças do
convívio com os jesuítas antes mesmo que estas fossem catequizadas (THWAITES,
1906, p. 153-221 apud LEACOCK, 2019, p. 267).
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Como vemos, os montagnais-naskapi eram extremamente tolerantes e igualitários,
não possuíam rígidos papéis de gênero nem qualquer tipo de autoridade formal
desempenhada por um dos sexos. Sua educação, de forma similar àquela descrita
por Ponce (2001), não tolerava a punição corporal ou outros tipos de violência, nem
possuía qualquer restrição social ao acesso ao saber.
III
Segundo Ponce (2001, p. 19): “A educação na comunidade primitiva era uma função
espontânea da sociedade em conjunto, da mesma forma que a linguagem e a moral”.
Não existiam instituições formais com o objetivo de educar, nem cabia a uma pessoa
especíca promover a educação. O aprendizado se dava de forma espontânea,
através da observação e da participação da criança na vida e em atividades do
bando. A igualdade e a tolerância que existiam na comunidade tribal não permitiam
que esta educação fosse violenta ou punitiva; nem por isso as crianças deixavam de
tornar-se adultos ajustados aos padrões daquela sociedade. Esperava-se que todos
homens, mulheres e crianças participassem das ações da tribo, sem deixar de
respeitar suas aptidões e limitações.
As sociedades primitivas e o complexo social educativo nelas presente, conforme
apresentados por Leacock, conrmam a tese de Ponce sobre a educação primitiva,
exceto no que se refere ao exclusivismo que este atribui a um processo educacional
processado espontaneamente,8 como veremos abaixo.
Em absoluta concordância com a investigação que zemos de Mitos da Dominação
Masculina, para Ponce a “educação não estava conada a ninguém em especial, e
sim a vigilância difusa do ambiente” (p. 18); e o “ensino era para a vida e por meio
da vida [...]. As crianças se educavam tomando parte nas funções da coletividade.
E, porque tomavam parte nas funções sociais, elas se mantinham, não obstante as
diferenças naturais, no mesmo nível que os adultos” (p. 19).
Assim como está demonstrado em Leacock, o autor arma que o ideal pedagógico
das comunidades primitivas era “o sentimento profundo de que não havia nada, mas
absolutamente nada, superior aos interesses e às necessidades da tribo” (p. 21).
Entretanto, em contraste com a marxista estadunidense, o autor argentino arma
que, “para aprender a manejar o arco, a criança caçava; para aprender a guiar um
barco, navegava” (p. 19).
Sobre as armações de que a educação nas comunidades primitivas se processava de
maneira frequentemente espontânea, que ela estivesse disseminada no tecido social, de
tal maneira que estava a cargo de todos, parece não restar dúvidas nas fundamentações
trazidas por Leacock. Todavia, um nível mínimo de sistematicidade e intencionalidade
no processo educativo se fazia necessário nesse nível de desenvolvimento social, sem
o qual seria impossível a reprodução social. Não estamos falando aqui da educação
formal, institucionalizada, mas do que Lukács chamou de educação em sentido estrito.
De acordo com Lukács (2013, p. 176-178), a educação possui duas esferas que
são igualmente importantes para mediar a reprodução do ser social: a educação
8 Outras inconsistências não diretamente relacionadas à educação também podem ser vericadas em Ponce,
especialmente no que se refere à divisão de trabalho nas comunidades primitivas. Entendemos que aqui não é
o momento para abordá-las, considerando o nosso objeto em tratamento e o espaço do qual dispomos.
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em sentido estrito e em sentido lato. Conforme aponta Maceno (2019), a primeira é
caracterizada por um alto grau de sistematicidade, já a segunda possui um baixo grau
de sistematicidade. A educação em sentido lato acontece de forma relativamente
espontânea, incutindo nos indivíduos conhecimentos, valores, comportamentos
e outros aspectos importantes de uma determinada sociedade que se fazem
essenciais para a sua reprodução. Esta modalidade da educação, vale salientar, é
mais predominante nas comunidades primitivas (MACENO, 2019, p. 44), porém a
educação em sentido mais estrito também está presente.
Seria impossível, por exemplo, aprender a manejar o arco tão somente colocando a
criança para caçar, ou aprender a guiar um barco pondo exclusivamente a criança
para navegar. Antes de quaisquer dessas atividades, algumas aquisições nos parecem
necessárias, sob pena de colocar em risco a sobrevivência das gerações futuras
e, como consequência, a existência social do bando. A caça e a navegação eram
atividades perigosas, com elevada probabilidade de mutilações e morte. De modo que,
anteriormente à participação das crianças nessas tarefas, deveria haver um momento
de instruções relacionadas a aspectos tais como os hábitos dos animais; a geograa
do lugar; a fabricação e o manuseio dos instrumentos e ferramentas; a convecção das
embarcações (o que envolve noções de “carpintaria” etc.); sobre nadar e outros tantos
conteúdos extremamente necessários. Em vista disso, o momento de educação cujo
m imediato não se destina à transformação do mundo natural, mas a inuir sobre as
consciências das crianças, a m de que adotem determinadas posturas futuras ante
as realidades que terão de enfrentar, já estava presente nessas comunidades.
No caso dos primitivos montagnais-naskapi trazido por nossa autora, a complexidade
das atividades que realizavam não poderia ser posta em prática sem um complexo
educativo que fosse além da mera observação ou do aprender fazendo, ou trabalhando,
como quer Ponce. Essas tarefas envolviam habilidades, tais como a fabricação de
mocassins, cobertas de tendas, tangas, calças de couro, canoas feitas de cascas de
bétula, raquetes de neve, lanças de pesca, trenós, tobogãs, redes de pesca etc.
Entendemos que no substancial, as indicações realizadas por Ponce acerca
da educação primitiva são validadas nas pesquisas de Leacock, excluindo-se
a problemática anteriormente apontada por nós. Consideramos também que
os exemplos, relatos, análises e argumentos trazidos por Leacock rearmam
inequivocamente as linhas gerais do complexo educativo primitivo conforme descrito
por Ponce. Por m, não obstante a sua validade geral, compreendemos que nossa
autora, pela própria natureza da obra investigada, traça um painel mais realista,
detalhado e fundamentado sobre as comunidades primitivas e sua educação.
Podemos concluir que a educação das comunidades primitivas, conforme Leacock,
é um reexo do modo de vida igualitário desses povos. O igualitarismo primitivo,
no entanto, é pautado por um genuíno respeito pela autonomia daqueles que dele
participam. A exibilidade dos papéis de gênero, a afetividade, o cuidado de ambos os
sexos para com as crianças de todo o bando, o respeito à sexualidade das mulheres
e a valorização do papel da mulher na economia e decisões do grupo são vistos
com abundância ao longo da obra de Leacock, de modo que ca perceptível que a
educação destes povos é profundamente diferente da educação contemporânea,
na qual a opressão de gênero, raça, sexualidade e de classe é difundida, impedindo
que os indivíduos tenham acesso aos espaços que possibilitam o desenvolvimento
de suas potencialidades e individualidades.
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Em última análise, ca claro que uma educação de qualidade que seja igualmente
e efetivamente acessível para todos os membros da sociedade capitalista não
é possível, visto que, para garantir que todos se tornem autênticos membros do
gênero humano, faz-se necessário garantir, primeiramente, que os indivíduos
estejam inseridos numa sociedade que seja fundada por valores que preconizam
sua emancipação, o que não acontece dentro do capitalismo.
A sociedade capitalista e sua educação compartilham mais valores com a proposta
implementada pela missão jesuítica de dominação e repressão aos povos nativos
do que com a educação repleta de afetividade, tolerância, respeito, igualdade e
autonomia praticada pelos montagnais. Leacock nos faz reetir que a educação
contemporânea e, principalmente, a sociedade que a organiza precisam ser
superadas antes mesmo de pensarmos em oferecer uma educação de acesso
universal e que abranja todas as individualidades e potencialidades humanas.

LEACOCK, Eleanor Burke. Mitos da dominação masculina: uma coletânea de artigos sobre as
mulheres numa perspectiva transcultural. São Paulo: Instituto Lukács, 2019. 416 p. Tradução de:
Susana Vasconcelos Jimenez.
LUKÁCS, Georg. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo, Boitempo, 2013.
MACENO, Talvanes Eugênio. A impossibilidade da universalização da educação. São Paulo:
Instituto Lukács, 2019. 128 p.
PONCE, Aníbal. . 18. ed. São Paulo: Cortez, 2001. Tradução de: José
Severo de Camargo Pereira.
Data da submissão: 19/05/2022
Data da aprovação: 28/11/2022