Trabalho & Educação | v.28 | n.2 | p.113-130 | maio-ago | 2019
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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.9572
O MÚSICO E SEU TRABALHO NA NOVA ORDEM MUSICAL DA CIDADE
DE BELO HORIZONTE
1
The musician and his work in the new musical order of Belo Horizonte city
ALVES, Valmir Alcantara
2
MARTINS, Maria de Fátima Almeida
3
RESUMO
O artigo é fruto da tese de doutorado “A relação do sico com o trabalho: quando o trabalho do sico
passa de trabalho improdutível para produtível em Belo Horizonte, defendida em 2018 na Faculdade
de Educação da UFMG, tem como objeto de análise o sico e seu trabalho na cidade Belo Horizonte.
O objetivo é apresentar discussões que foram tratadas na pesquisa sobre os atuais processos de
mercantilização do trabalho do sico na cidade, tendo como ponto de partida as alises sobre as
relações do sico e seu trabalho, compreendidas como uma atividade humana espefica em produzir
som, por exemplo, e, como esta é incorporada no circuito mercantil na cidade de Belo Horizonte. O que
se constatou foi que o cerio de exploração da foa de trabalho dosico no capitalismo
metamorfoseia-se, criando novas nomenclaturas como espécie de “maquiagemda exploração do
trabalhador da música. A reprodução capitalista nesse setor pode ser observada sob diversas faces,
como, por exemplo, as leis de incentivo à cultura, pensadas como forma de garantir a reprodução dos
capitais envolvidos nessa atividade, transformando-a em um modelo ecomico da produção artística
no Brasil. O texto tem o sentido de elucidar o que vem a ser o trabalho do músico, que é bastante
diverso e múltiplo na cidade de Belo Horizonte, uma vez ser esta uma cidade musical”, pois, antes
mesmo da sua fundação, existiam músicos que estabeleciam seus trabalhos na cidade MARTINS,
2006). Na história da música na cidade, na última cada do culo passado, os movimentos sociais e
artísticos estabeleceram uma nova ordem musical, e o melhor exemplo foi o renascimento do carnaval
de rua que revela a atuação desse músico na nova ordem musical da cidade e no circuito mercantil
enquanto trabalhador.
Palavras-chave: Trabalho. sico. Circuito Mercantil. Ordem Musical. Belo Horizonte.
ABSTRACT
This article, is a result of the doctoral thesis "The relation of the musician to the work: when the musician's
work changes from unproductive work to productive in Belo Horizonte", defended in 2018 at the Faculty
of Education of UFMG, has the object of analysis musician and his work in the city Belo Horizonte. The
objective is to present discussions that were dealt with in the research on the current processes of
commercialization of the work of the musician in the city, starting from the analyzes about the relations
of the musician and his work initially understood as a specific human activity in producing sound, for
example, and, secondly, how it is incorporated in the mercantile circuit in the city of Belo Horizonte. In
the thesis, what was verified was that the scenario of exploitation of the musician's workforce in capitalism
metamorphoses itself, creating new nomenclatures as kind of "makeup" of the exploitation of the music
worker. The capitalist reproduction in this sector can be observed under various facets, such as, for
example, laws to encourage culture, designed as a way of guaranteeing the reproduction of the capital
involved in this activity, transforming it into an economic model of artistic production in Brazil. The text
1
O artigo é resultado da pesquisa de doutoramento sobre: A relação do músico com o trabalho: quando o trabalho do músico passa de
trabalho improdutível para produvel em Belo Horizonte defendida em 2018 no Programa de Pós Graduação em Educação: Conhecimento
e Inclusão da Faculdade de Educação da UFMG. A mesma foi submetida ao comi de Ética, COEP, tendo sido contemplada com bolsa
de doutorado da Capes.
2
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Formado em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte. E-
mail: valmirarteeducacao@gmail.com
3
Professora Associada da Faculdade de Educação. Formada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Curso
de Licenciatura em Educação do Campo. E-mail: falmartins.ufmg@gmail.com
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also has the sense of elucidating what the work of the musician is, which is quite diverse and multiple in
the city of Belo Horizonte, once this is a "musical city", since even before its founding there were already
musicians (Martins, 2006). In the history of music in the city, in the last decade of the last century, social
and artistic movements established a new musical order, and the best example was the rebirth of the
street carnival that reveals the performance of this musician in the new musical order of the city and in
the commercial circuit as a worker.
Keywords: Work. Musician. Mercantile Circuit. Musical Order. Belo Horizonte.
INTRODUÇÃO
Como trabalhador da música, refletir na academia sobre o trabalho do músico foi a forma
encontrada para falar sobre a prática no diálogo com o outro, produzindo e refletindo
sobre o trabalho do músico. Assim, a tese
4
A relação do musico com o trabalho: a
produtividade do trabalho do musico em belo horizonte (ALVES, 2017) foi tomada como
um direito de falarde dentro para fora, de uma pesquisa que nasce da experiência do
músico e pesquisador; assim acreditamos na quebra de paradigmas sobre dar voz ao
trabalhador dasica. O olhar e a vivência do músico pesquisador trazem um extrato
de conhecimento que não é tradicional na academia.
Fazendo uma análise histórica do trabalho nas várias categorias de trabalhador, logo
verificamos que falta representatividade do músico, seja no âmbito do sindicato ou em
leis trabalhistas. Embora a ancestralidade dosico e seu trabalho remontem a antes
de Cristo, sua legalidade sempre foi constituída por percalços. Esses percalços
começam pela dupla imagem, que será explorada ao longo deste texto, na qual o
público, na sua maioria, encara o músico como uma pessoa que se diverte ao executar
seu labor ou, em outros momentos, o associa à boemia e à diversão regada a drogas
lícitas e ilícitas.
Os músicos e seu trabalho aqui pesquisados produzem a sica popular vinda dos
novos femenos sociais das últimas décadas na cidade de Belo Horizonte, ou seja, o
artista coletivo. Ao resgatar as imagens sobre o músico e seu trabalho, observamos que
alguns avanços ocorreram na representação da imagem construída sobre o profissional
que executa a música, porém esses avanços geralmente fazem referência aos músicos
de orquestras e os consagrados no mercado fonográfico. Seguindo o pensamento de
Elias:
Nas reflexões sociológicas sobre a vida do músico Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791),
Nobert Elias buscou compreender a experiência social do artista burguês na corte
aristocrática. Na verdade, Elias acabou por fazer uma sociologia da singularidade,
transpondo para a escala de uma biografia o problema maior das restrições às quais se
submetem os indivíduos no processo de civilização (LEÃO, 2007, p. 53).
A experiência social tratada pela autora acima abre um leque de hipóteses que,
acreditamos, está associada aos tempos de hoje, partindo da reflexão de que no Brasil
a educação escolar e musical tem a cultura europeia sua referência.
Sobre o que venha a ser o trabalho do músico na cidade de Belo Horizonte, percebemos
que a face encoberta ao longo de toda história nos possibilitou construir um estudo que
ainda podemos chamar de idito no campo cientifico no mundo do trabalho.O trabalho
4
Tese de doutorado A relação do sico com o trabalho: quando o trabalho do músico passa de trabalho improduvel para produvel em
Belo Horizonte, foi defendida em 2018 por Valmir Alntara Alves e orientada pela professora doutora Maria de Fátima Almeida Martins.
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do músico neste artigo transita no oposto dessa confluência cultural que,
emblematicamente chamaremos de artista não cortesão autônomo: aquele que,
conduzido por sua arte, busca romper com estratificões sociais. É este que enfrenta a
sua desvalorização, a precarização histórica do seu trabalho e tem que provar, a cada
momento em que executa sua obra, que é capaz de sustentar o que se dispôs a fazer
como parte principal da sua vida: a música.
A MÚSICA COMO TRABALHO NA CAPITAL BELO HORIZONTINA
Ao optarmos por destacar o trabalho do sico na cidade de Belo Horizonte, fomos ao
cerne de uma necessidade explícita na categoria dos sicos. Foram cerca de cinco
anos de laborario sobre a viabilidade da pesquisa, ou seja, antes mesmo de se iniciar,
efetivamente, o doutorado, já se realizavam diálogos com diversos profissionais da
música, os quais foram sistematizados na tese. Durante esses anos, foi possível concluir
que há uma inexistência de apontamentos concretos sobre o significado do que é o
trabalho do músico, ou o que venha a ser esse trabalho, suas necessidades, suas
conquistas.
A capital do estado de Minas Gerais sempre foi um celeiro de grandes músicos para o
Brasil. A cena musical belo-horizontina sempre foi efervescente, segundo um dos
músicos entrevistados para a pesquisa, o maestro Marilton Borges, integrante do
movimento musical do Clube da Esquina. Ele nos reporta à Belo Horizonte da década
de 1960 e cita os edicios Levy e Maleta, no centro da cidade, como ponto de encontro
de músicos como Milton Nascimento e Toninho Horta, além de seus irmãos Lô Borges
e Marcio Borges que recebiam convites para participarem de festivais no Rio de Janeiro
e São Paulo.
Toda essa música popular brasileira, juntamente com o Heavy Metal e a música
instrumental, destaca Belo Horizonte no cenário musical nacional. Havia também os
bailes Black, como o saudoso Máscaras Negras, no centro da cidade, onde a
comunidade negra sempre estava presente ao som do Soul de 1970.Em meados da
década de 1980 e início dos anos 90, o Pop Rock e a música eletrônica vão ditar moda
musical na cidade. Pato Fu, Skank, Jota Quest e o DJ Anderson Nois e são os
destaques, juntamente com o ícone do Heavy Metal Sepultura, considerado o grupo
musical brasileiro de maior repercussão no mundo.Também fazem parte desse cenário,
as famosas lojas de discos de vinis, como era o caso da Cogumelo, que até hoje
promove encontros da cena Rock n Roll na capital.
Também temos exemplos consistentes da luta cotidiana dos músicos em prol de
melhorias em suas condições de trabalho, como o surgimento da Sociedade
Independente da Música (SIM) em 2005, movimento formado por músicos de Belo
Horizonte e a fundação, em 2007 da primeira Cooperativa de Trabalho dos Profissionais
de Música do Estado de Minas Gerais (Comum) e do Fórum da Música de Minas Gerais.
Além da Comum, o Fórum reúne representantes da Sociedade Independente da Música
(SIM), da Associão Arstica dos Músicos de Minas Gerais (AMMIG), do Museu do
Clube da Esquina e do Fora do Eixo Minas (FJP, 2010).
Ainda em 2008, grupos da cultura Hip-Hop, que desde a década de 80 já se encontravam
para dançar e cantar, juntaram-se aos jovens da nova geração do Hip Hop e iniciaram
um encontro semanal na Praça Sete. Com o passar das semanas, resolveram se
deslocar para a Praça da Estão e, num desses encontros, caiu uma chuva de verão.
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A partir daí, buscaram abrigo embaixo do viaduto Santa Teresa, que, por ironia do
destino, já contava com palco e pista para skate, até então pouco utilizados. Foi que o
movimento do Duelo de MCs ganhou força e, nos anos seguintes, virou uma das
referências culturais da cidade.
A região da Praça da Estação sempre foi um lugar discriminado da cidade, assim como
a zona boêmia da rua Guaicurus, a região da Rodoviária e o bairro Lagoinha. Apesar da
crião do Museu de Artes e Ocios na antiga estação central, com o intuito de
revitalizão do entorno, o viaduto Santa Tereza continuou tendo como frequentadores
e moradores a população menos favorecida economicamente, junto à população em
situação de rua. O fato é que, com a evolução do Duelo de MCs, houve um início de
revalorização da região.
Lojas fechadas há anos abriram-se; abriu-se espaço para bares teticos, grupos de
teatro e, na sequência, após proibição, pela Prefeitura de Belo Horizonte, de realizão
de eventos na Praça da Estação, surgiu a chamada Praia da Estação, em tom de
protesto contra o decreto municipal que impedia manifestões culturais nesse espaço.
Os integrantes desses movimentos sociais, em sua maioria, artistas, sujeitos da nossa
pesquisa, estão inseridos na luta cotidiana pela melhoria das condições de trabalho do
músico e, ao mesmo tempo, vêm promovendo a sua música, que, para eles, não se trata
de uma música mineira, mas sim de umaWorld Music, como preferem adjetivar suas
produções.
Na referida tese, bem como reforçamos neste texto, optamos por uma metodologia na
qual a vivência do pesquisador pudesse contribuir diretamente com a investigação;
assim a pesquisa com base na História Oral se fez necessária por ser esta uma pesquisa
que busca dar voz ao músico de forma que ele fale de maneira espontânea sobre o que
pensa do seu trabalho. Assim, iniciamos a coleta de informações e, depois, fomos à
literatura para desafiar as descobertas. O percurso metodológico foi construído numa
dinâmica em que cada músico pudesse representar o seu estilo e pertencimento étnico
na cidade de Belo Horizonte, pois, diante da diversidade cultural da cidade, foi necessário
selecionar artistas que fizeram e fazem parte do nosso recorte temporal de 1998 a 2017,
independentemente de serem belo-horizontinos ou não.
A utilização da metodologia da História Oral possibilitou, ao mesmo tempo, criar e dar
sentido ao que buscamos no sujeito da pesquisa: analisar e interpretar o que Pierre Nora
cunhou como lugares de memória (1993, p. 21); um caminho percorrido na trajetória
do artista que diz muito quem ele é. O tempo todo teremos essavontade de memória
(NORA, 1993, p. 22). O percurso metodológico seguiu com pré-entrevistas, pesquisas
bibliográficas, análise de eventos e trabalhos para conhecimento prévio da memória
coletiva dos entrevistados. Na segunda etapa, foi feita uma análise interpretativa das
transcrições e da escrita videográfica.
A pesquisa prévia se deu pelas noites e dias na cidade de Belo Horizonte, além de bate-
papo de camarim, bastidores de saídas de blocos, encontros nas estações de metrôs e
ônibus, diálogos via redes sociais e até conversas informais, como em intervalo de jogo
no estádio Mineirão, ou seja, em lugares onde havia a disponibilidade do artista para
falarmos sobre o tema. Aqui destaco a importância das pesquisas prévias, que nos
levam à seguinte questão sobre a pré-entrevista, que a metodologia chama de
estudo exploratório é essencial não porque ela nos ensina a fazer e refazer o futuro
roteiro da entrevista. Desse encontro prévio é que se podem extrair questões na linguagem
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usual do depoente, detectando temas promissores. A pré-entrevista abre caminhos
insuspeitados para a investigação (BOSI, 2003, p. 60-61).
A escuta dos que trabalham e vivem da música em Belo Horizonte foi realizada em locais
onde o artista estava, seja no camarim ou nas rodas de conversa com os artistas. Esse
primeiro movimento foi importante para ouvi-los e, ao mesmo tempo, torná-los potenciais
pensadores responsáveis também pela pesquisa desejada. A partir desses encontros é
que foi trado não somente o roteiro para as entrevistas, mas, também, o início das
hipóteses sobre qual músico entrevistar e por que seria pontual para a nossa tese. É
importante frisar, também, que, durante os encontros prévios, houve um clima de
informalidade e algumas questões colocadas foram resgatadas durante as entrevistas
diante da câmera, por via do resgate das memórias.
A partir desse conhecimento prévio de cada um dos artistas
5
, foram escolhidos os
lugares das entrevistas e bate-papos: tivemos encontros em estabelecimentos culturais,
ocupações, estúdios, praças e residências. Alguns lugares, porém, tinham como
importância o imaginário do entrevistado; a encruzilhada, por exemplo, sempre foi o lugar
da cultura negra, e partimos dela como operadora de linguagens e de discursos, como
um lugar terceiro. Afirma Leda Martins, em sua obraA Oralitura da Memória, que isso
é geratriz de produção de significado diversificados e, portanto, de sentidos plurais que:
nessa via de elaboração, as noções de sujeito híbrido, mestiço e liminar, articuladas pela
crítica contemporânea, podem ser pensadas como indicativas de alguns dos efeitos de
processos e cruzamentos discursivos, intertextuais e interculturais. Nessa concepção de
encruzilhada discursiva destaca-se, ainda, a natureza citica e deslizante dessa instância
enunciativa e dos saberes ali instituídos (MARTINS,1997, p. 25-26, Apud, MARTINS, 2006).
Trazer esses significados das linguagens é importante para nos certificar de que estamos
falando de dentro para fora”, e que, primeiramente, estamos em um campo
metodológico de estudos no qual os conceitos teóricos ainda são recentes: são estudos
construídos há décadas e, hoje, encontramos diálogos possíveis na academia para,
enquanto músico e pesquisador negro, tornar esses conhecimentos públicos.
A metodologia a partir da História Oral foi necessária para fugir da obviedade e não cair
no erro da emoção, com vistas à objetividade da pesquisa ou, como destacou Nobert
Elias emA sociologia de Mozart, ao trabalhar a biografia do compositor, não ceder às
facilidades e às seduções daquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de ilusão
biográfica”, ou seja, a ilusão que organiza a trajetória dos indivíduos em posições
sucessivamente ocupadas na história de vida (BOURDIEU,1994, p. 81-89, Apud,
BORGES, 2007). A pesquisa, não teve como objetivo construir uma metodologia
inovadora, mas todos que consideramos mais adequados para uma pesquisa muito
complexa.
5
Entrevistados:
Marilton Fragoso Borges entrevista 14.05.2016.
Makely Oliveira Soares Gomes entrevista dia 07.05.2016
Rodrigo Márcio Cardoso Borges entrevista dia 14.05.2016.
Tadeu Martins Soares entrevista dia 20.10.2017.
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Acredita-se que são exatamente esses fatores que protegem esse patrimônio imaterial
da nossa ancestralidade africana e ingena brasileira: só a decifra quem a vive
cotidianamente. Assim, para podermos atingir o conhecimento do que venha ser o
trabalho do músico na cidade de Belo Horizonte, foi necessário saber também os códigos
dos músicos entrevistados, em sua maioria Negros e Negras e Ingenas. Por isso, a
noção territorial se fez necessária, até mesmo o poder de improvisão, o que é comum
para o sico.
Assim o jazzista retece os ritmos seculares, transcriando-os dialeticamente numa relação
dinâmica, retrospectiva e prospectiva. As culturas negras, em seus variados modos de
asserção, fundam-se dialogicamente em relação aos arquivos e repertórios das tradições
africanas, europeias e indígenas, nos jogos de linguagem, intertextuais e interculturais, que
performam (MARTINS, 2006, p. 65).
A memória viva dos entrevistados foi o que conduziu o diálogo e sempre desconfiados,
ao perceberem que estávamos querendo deles a sua contribuição para o estudo, aos
poucos foram se soltando e, já no fim da entrevista, tivemos o início de uma sintonia nas
mensagens, o que proporcionou a fluidez dos encontros. Isso fez com que as últimas
palavras viessem com o peso dos seus saberes no intuito mesmo de serem divulgadas.
O conceito de escrita videográfica (MAUAD, 2010) nos ajudou a encaminhar
metodologicamente a forma das entrevistas, de forma que os entrevistados se sentissem
mais à vontade para estabelecer o diálogo.
O formato do mercado musical em Belo Horizonte se difere do restante do ps. Existe
uma qualidade na sua produção musical que já vem de longa data e sobre a qual,
segundo os mais variados críticos desica do ps, não se consegue chegar a uma
conceão. Do circuito musical da cidade, podemos destacar os principais: Conexão BH
de música, Festival de Arte Negra-FAN, I Love Jazz, Tudo é Jazz, Festa da Música,
Natura Musical, Festival S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L, Aqui Jazz, Cantautores, BH Indie Rock
e o Duelo Nacional de MCs, Festival de Hip-Hop, e a retomada do carnaval de Belo
Horizonte, desde 2009, onde e quando ocorre o encontro praticamente da maioria dos
artistas envolvidos nos festivais citados, transvestidos em seus respectivos blocos e
bailes carnavalescos. Esses são os circuitos mercantis da música em Belo Horizonte.
Nosso entendimento e ponto de partida foi o recorte local com um teor universal sobre o
tema, mediando, na análise, o debate posto pelos estudos marxistas, quando se trata da
arte e da indústria cultural. Nessa perspectiva, produzimos um conhecimento que vem
contribuir para desvelar esse ambiente antagônico em que se encontra o músico,
articulando as características do atual mercado de trabalho musical, cientes de que este
ainda se encontre numa encruzilhada dialógica diante da indústria mercadológica da
cultura.
O sociólogo francês Pierre Michel Menger, em sua obra “O retrato do artista enquanto
trabalhador - metamorfoses do capitalismo, nos revela o confronto do artista versus o
capitalismo. Sobre esse enfrentamento, temos diversas análises que nos conduzem ao
pensamento de que o mercado econômico, nos seus variados setores, absorveu a
filosofia da arte e o comportamento dos artistas no que tange à criatividade e à
flexibilidade para atingir seu apogeu. Embora pareça implícito, o trabalho artístico é
gerado no modelo como trabalho não alienado, no qual o sujeito se completa com o
poder de liberdade em volta da sua criação artística.
Na tradição de análise sobre o trabalho do artista, especula-se sobre o modelo de
trabalho ideal e desejável, o que nos leva a uma dicotomia segundo a qual o homem
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realiza a sua humanidade pela ação e pelo trabalho. Para nos aproximar do que venha
a ser o trabalho do músico ou quando essa atividade criativa ganha o conceito de
trabalho, Menger discorre que:
a criação artística ocupa com efeito uma posição excepcional nos primeiros escritos de Marx,
em particular nos seus Manuscritos de 1844 onde é elaborada não uma estética específica,
mas uma estética geral da prática que faz da atividade artística o instrumento de medida de
toda a crítica do trabalho assalariado. O agir humano, numa tal concepção, não se pode
exprimir plenamente a não ser com a condição de não se transformar em meio para obter
outra coisa em particular um ganho (MENGER, 2005, p. 49).
Partindo dessas colocações, é necessário entendermos que, uma vez inserida nas
relações sociais em que está posto o modelo econômico capitalista, sua arte como
produto, no caso o músico e sua música, passa a ser o seu trabalho. O músico, ao
executar a sonoridade, expõe uma maneira, uma extensão do seu corpo aliado ao
instrumento musical, que pode ser, inclusive, somente seu corpo, o seu poder criativo. É
exatamente com essa perspectiva que temos avaado no campo de estudos sobre o
trabalho do sico, sabendo que, quando falamos de trabalho produtível, falamos de
trabalho socialmente determinado, força de trabalho, o trabalho no processo de produção
capitalista (MARX; ENGELS, 1986).
O processo de criatividade não condiz com a cronologia cotidiana e está para além do
valor mercadológico, mesmo quando recorremos aos estudos da indústria cultural, pois
é possível entender que o conceito de indústria cultural construído por Horkheimer e
Adorno em 1947 veio para substituir a expressão cultura de massa. Esse conceito nos
leva a entender como o comportamento que vem das próprias massas foi constante
objeto de crítica feita por Adorno. Trata-se do fato de padronizar as manifestações
culturais em prol da massificação da cultura e, por consequência, gerar apenas um
produto econômico a serviço do chamado fetichismo da arte. Fato que não poderia
contribuir para o significado da Arte enquanto elemento crítico de uma sociedade
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 114).
A conexão que fazemos aqui sobre o trabalho do músico na cidade de Belo Horizonte e
em relão com o mundo, dialoga com a antologia da chamada Escola de Frankfurt,
nascida em 1924, que se tornou referência de estudo quando se trata da arte e sua
indústria. Um exemplo a ser observado é a crítica que Adorno dirige ao que aqui aparece
sob o nome desica popular. Ele afirma que a música popular
não diz respeito a uma possível incompetência de seus compositores e arranjadores, mas,
pelo contrário, ao fato de sua grande perícia ser totalmente neutralizada e reorientada em
função das exigências dos monopólios culturais no sentido da padronização com o objetivo
de garantir o retorno financeiro e a aprovação tácita ao status quo. O conceito depseudo-
individualização aponta exatamente para esse reforço ideológico que asica de massa
proporciona para a manutenção do existente (ADORNO, 1986, p.35).
A partir do advento capitalista s-segunda guerra mundial, a cultura passou a ser
regida pelas leis da mercadoria. Assim, o termoindústria cultural conceitua um
fenômeno em que ocorre a total mercantilizão da produção simbólica dos indivíduos
e, com isso, a anulação da sua humanidade. Importante salientarmos que a indústria
cultural não se resume à produção de necessidades iguais, de comportamentos
padronizados, de obstrução à consciência e veto à crítica. Ela parte da ão de entreter
fabricando diversão, exercendo domínio e mediando quem consome seu produto,
tornando um império do capitalismo o que é basicamente uma extensão do trabalho.
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Uma vez que, ao findar o dia, o retorno do trabalhador para sua residência não pode se
tornar algo desprezível e ruim, entra em cena o fantástico mundo da alienação com os
produtos que irão renovar este trabalhador a fim de que esteja pronto novamente para o
dia seguinte de trabalho. A televisão, com suas novelas, missas, cultos, filmes (que às
vezes também são simultâneos no rádio e redes sociais), juntamente com a música, são
alguns dos itens que não podem faltar no pacote que fará o indivíduo maisfeliz para a
nova jornada.
Diante deste cenário concreto, o trabalhador músico se encontra como algoz do próprio
destino, qual seja, o de viver da arte que o aliena, produzir sua alegria e dor, melancolia
em certos momentos, o que pode render uma poesia profunda e, mais à frente,
consagrá-lo como um artista além do seu tempo. O exercício da criatividade que é
estimulado nos indivíduos, pela poesia, pela imaginão, baseado na coletividade
artística, pode trazer consigo uma compreensão da subjetividade dos versos à
objetividade concreta da vida do próprio músico, pois
[a] vida é por essência um processo ptico-sensível. Ele entra obrigatoriamente em contatos
pticos com objetos que resistem ao homem, que o criam, modificam-no e enriquecem-no.
No curso da atividade exterior, o círculo dos processos psíquicos se abre de algum modo ao
mundo material objetivo, que aí promove imperiosa erupção. Tem a função particular de
situar o sujeito na realidade objetiva e de subjetivá-la. (CUNHA apud ARANHA; CUNHA;
LAUDARES, 2005 p. 122).
Nessa perspectiva, a dubiedade da vida do sujeito enquanto artista e produtor de uma
força de trabalho pode se estabelecer a partir da compreensão deste sobre o contexto
social em que es inserido. O trabalho do artista, ao produzir sonoridades, o leva a um
lugar de protagonismo e, em certo momento de autonomia do sujeito, de poder alcançar,
com sua subjetividade, uma ideologia e, de certo modo, uma filosofia de vida que pode
ser referência naquilo a que o músico se propõe. O que ele está fazendo é o seu trabalho,
que, embora pareça ou se confunda com o seu próprio lazer, é seu trabalho e é também,
por que não, seu mundo, o universo criativo que o leva a motivos das vantagens não
monetárias e tão poderoso que tem fornecido a base do encantamento ideológico do
trabalho artístico (MENGER, 2005, p. 92).
Importantes essas colocações para que saibamos que estamos lidando com o mundo
do trabalho em que, independente da época de florescimento do capital, existe uma
busca incansável do artista em confrontar sua obra de arte com as demais necessidades
sociais, ao ponto de uma ser tão importante quanto a outra, e que o sentido pode não
acompanhar as circunstâncias baseadas somente no capital. As posturas dos artistas
podem ser de rompimento dos padrões exigidos, sejam eles estéticos ou financeiros.
Essas situações funcionam mais como uma brecha para o artista se manifestar do que
um encaixe na situação colocada dentro da sociedade em que o consumo é exacerbado.
A atividade criativa a priori anuncia um rompimento com o que está posto, é um
instrumento de crítica social que nos leva a remontar o que pode ser mais dinâmico para
o meio em que vivemos, dialogando com a nossa essência, com o nosso poder de criar,
seja individualmente, seja coletivamente. É importante que tomemos para nós mesmos
a responsabilidade de sermos coletivos e, portanto, reconheçamos a potencialidade do
homem coletivo, o qual é colocado por Paulo Freire:
O homem enche de cultura os espaços geográficos e históricos. Cultura é tudo o que é
criado pelo homem. Tanto uma poesia como uma frase de saudação. A cultura consiste em
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recriar e não repetir. O homem pode fazê-lo porque tem uma consciência capaz de captar o
mundo e transfor-lo (FREIRE, 2007, p. 30).
Através dessa afirmação de Freire, acreditamos que estamos construindo um
conhecimento que venha a contemplar uma nova realidade para a compreensão de
quem produz arte, em especial o músico, evidenciando a coletividade como um forte
aliado para a inserção nas diversas modalidades mercadológicas no advento do
capitalismo do século XXI. Dessa maneira, associações e cooperativas constituem
novas formas de procura de trabalho vividas tanto por músicos como por empregados
formais protegidos socialmente que procuram complementar renda (orquestras,
sobretudo). Afinal, a maioria dos músicos autônomos vive de editais em editais, de
cachês em cachês, sem proteção social em um mercado cada vez mais concorrido e
financiado por leis de incentivo à cultura.
O MÚSICO NO CIRCUITO MERCANTIL DA MÚSICA EM BELO HORIZONTE
A virada da década de 1990 para os anos 2000, com relação às políticas públicas no
setor da música em Minas Gerais, trouxe muita esperança para o músico. Este, que
sempre dependia de convites esporádicos. A partir das leis de incentivo, precisamente
nos anos 2000, eclodiram os festivais de música. Um dos maiores deles era o Conexão
Telemig Celular de Música, o qual inicialmente, contou com artistas que já vinham de um
crescimento de mercado com trabalhos realizados no campo fonográfico e com
ampliação de blico, como foram os casos de Mauricio Tizumba, Vander Lee, Titane,
da banda Berimbrow, Marina Machado, Marku Ribas e outros.
A estragia desse festival era conciliar o músico em crescimento com outro artista já
conhecido no cenário nacional. Assim, um músico em ascensão de Belo Horizonte
convidava um mais famoso, como espécie de apadrinhamento. Vander Lee, por
exemplo, nas versões iniciais do Conexão Telemig Celular de Música, convidou Luís
Melodia, Zeca Baleiro e Elza Soares; a cantora Marina Machado convidou Seu Jorge; a
banda Berimbrow convidou Sandra de Sá; Mauricio Tizumba convidou Vagner Tiso. E
assim o festival, que durou mais de uma década, seguia em sucesso pleno,tendo sido
ampliado para as cidades polo de Minas Gerais, como: Montes Claros, São João Del
Rei, Uberlândia, dentre outras.
Mudanças na forma foram acontecendo a cada ano, dentro do próprio festival. O que
antes era um festival que apresentava novos talentos aliados a músicos reconhecidos
nacionalmente passou a ter etapas eliminatórias, nas quais os vencedores de cada etapa
no interior do estado se habilitavam a realizar um show durante o Conexão Telemig
Celular em Belo Horizonte. Ocorreram também oficinas de arte-educação em alguns
circuitos, como Betim e Uberlândia, e palestras de formação com empreendedores
voltados para a música. O Conexão Telemig Celular de Música, em meados dos anos
2000, devido à compra da companhia pela Vivo Celular, mudou seu nome para Conexão
Vivo de Música.
Vale lembrar que esse festival trabalhava com artistas via lei de incentivo; aquele artista
que havia sido selecionado na lei estadual de incentivo para música agregava seu projeto
ao festival. Eram os chamados patrocinados pela Empresa Vivo de Telecomunicação.
Havia também aqueles que eram contratados, estes, geralmente, mais reconhecidos no
mercado da música e em Belo Horizonte. O festival era considerado pelos artistas como
uma das maiores vitrines musicais de Minas Gerais e, passada quase uma década de
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sua criação, o festival se ampliou para cidades como Campinas, em São Paulo; Belém,
no Pará; e Salvador, na Bahia.
Nessa etapa de ampliação, a meta era tornar o músico mineiro conhecido no circuito
nacional. Foi assim com vários artistas, como o rapper Flavio Renegado e Rodrigo
Borges. Ambos convidaram Lenine, respectivamente em Salvador e Belo Horizonte.
Celso Moretti, cantor pioneiro do Reggae em Minas Gerais, teve como convidado o
baiano Edson Gomes em Belém do Pará e Salvador. Foi uma década de muita evolão
no campo do trabalho do músico em Belo Horizonte, na qual o Conexão Vivo teve seu
apogeu. Porém, no ano de 2012, a empresa anunciou o fim do Festival.
O músico, compositor e ativista cultural Makely Ka, um dos artistas que esteve presente
no festival desde seu início, tanto como artista quanto como curador, reportou-nos, em
uma entrevista, uma análise sobre o que foi o Conexão Vivo para o trabalhador da
música e o legado para a cidade de Belo Horizonte:
eu pude estar presente em quase todos os festivais e, sim, posso confirmar que foi
importante para nosso cenário musical; e também de poder levar a nossa música para
outros lugares. Pom, ao passar dos anos, pude perceber que a marca do festival era o
que sobressaía. Embora fosse um festival mesclado de novos talentos com os mais
consagrados, percebia que era a empresa VIVO quem ganhava mais com o evento. O
nome da VIVO meio que cobria a essência do nosso produto; por mais que gravamos CDs
e até DVDs, era notável que o festival não conseguia alavancar a carreira dos sicos. De
qualquer forma foi interessante todo fomento, mas não consegui ver o Conexão Vivo de
música propagar carreiras musicais (MAKELY KA, 2016).
O festival como condição de divulgação da música mineira, se constituiu em um espaço
importante de socialização dos novos talentos, assim como as formas de como poderia
e deveria ser o trabalho neste importante espaço de trabalho música em Belo Horizonte.
Neste festival, tamm se debatia como seria o próximo ano do festival, se seria
aprovado na lei de incentivo ou o. O processo de todo o festival se dava externamente,
sob dependência política: só ocorreria o festival via lei, e os músicos se tornaram reféns
das leis de incentivo à cultura, assim como o próprio Festival Conexão Vivo.
Para além desse contexto musical na cidade, havia ainda aqueles artistas que
despontavam com maior visibilidade, artistas mais jovens, como Pedro Moraes, Rodrigo
Borges e Aline Calixto, dentre outros, mas que, ainda hoje, não atingiram seu trabalho
em nível nacional como desejado. Um desses artistas, o cantor, compositor e jornalista
Rodrigo Borges, que há mais de duas décadas es profissionalmente na música, revela-
nos a complexidade sobre o trabalho do músico em se colocar no mercado. Ele aponta
para a versatilidade profissional que o artista tem que ter, mesmo quando vindo de uma
falia de músicos. O primeiro fato, no seu caso, é que
Mesmo com o privilégio de ter um maestro em casa, meu pai Marilton Borges [e] meu pprio
tio Lô Borges, eu não fui criado para ser sico. A sica foi uma opção natural consciente
das dificuldades; consciente que é uma missão, porque dentro de casa eu tive basicamente
os dois exemplos: os dois de sacrifício, os dois de entrega e luta. Meu pai sempre foi o que
a gente chama de operário da música, um cara extremamente criativo, extremamente
competente no que ele faz, genial, e que encarou a sica como oficio, no sentido de tocar
todo dia, de encarar aquilo como profissão, de se preparar, de cumprir horário. Jornadas de
trabalho diário no que tange [a] estudos da preparação durante o dia e o labor, né, o trabalho
à noite, né. Então eu tive esse exemplo da ralação, , então a gente não tem amplos
direitos: você toca anos numa casa, mas você toca três vezes por semana, isso não
caracteriza vinculo. Então, é... a remuneração é mais baixa, [a] maior parte dos músicos
agora tem trabalhado para mudar isso, mas não somos tão politizados como o pessoal do
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teatro, por exemplo, nem tão organizados. Então nós temos que nos sujeitar, muitas vezes,
a cachê de fome, estruturas prerias de trabalho (RODRIGO BORGES, 2016).
Adotamos aqui o conceito de meio de trabalho, abordado por Ricardo Antunes em A
dialética do trabalho”, fazendo um contraponto com a narrativa de Rodrigo Borges, e
verificamos uma unidade de pensamento nas descrições deste com o posto pelo autor -
um complexo de coisas que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho
e que lhe serve como condutor de sua atividade (ANTUNES, 2004, p. 38). É preciso
entender a profundidade com que cada músico desnuda o significado de trabalho na sua
vida, como percebemos nessa primeira parte da entrevista com Rodrigo Borges,
aproximar-se do que Ricardo Antunes alude sobre o trabalhador e seu trabalho. Ou seja,
a música, para ele, é oobjeto do qual o trabalhador se apodera diretamente abstraindo
a coleta de meios prontos de subsistência (ANTUNES, 2004, p. 38).Essa submissão à
precariedade do referido trabalho é um dos poucos meios de sobrevivência que o músico
encontra diante do cenário cada vez mais predatório no mundo do trabalho.
Aqui, sobre o trabalho do músico, é importante revelarmos a quebra do paradigma
segundo o qual a maioria do público pensa que o músico mais se diverte com o que faz
do que propriamente exerce um trabalho, um sacrifício em meio às condições colocadas
para executar o seu ocio. Rodrigo Borges discorre sobre as esticas de mercado que
a grande mídia e as gravadoras impõem, como o sertanejo e o funk, culminando na
massificão por um produto basicamente estético cuja intenção principal é a venda.
Sobre sua situação nesse cenário com um trabalho musical autoral, ele afirma que
Vo hoje tem todo tipo de produção na rede, então fica mais difícil, fica mais difícil vo tirar
a cabeçapra fora da água na rede, né? E fica mais dicil destacar na rede e colocar seu
trabalho em evidência. Você tem novas formas de exigência, inclusive de mercado, para
vo conseguir gerar show. Antigamente era o Ibope, que tá perdendo força a cada dia, e
isso é ótimo, hoje são as visualizações, e se você não tem um milhão de cliques de acesso
vo também muitas vezes não existe. E aí a gente volta com as formas mais antigas de
disseminação do trabalho que é levar teu trabalho para rua que é o show. Eu acho que,
embora eu não esteja na grande dia, o que mais me deixa feliz, o que mais foi gratificante
pra mim nessa última década, é ter consciência que eu tenho trabalhado com a formação
de público e uma formação de púbico sólida (RODRIGO BORGES, 2016).
Perguntado sobre as políticas culturais voltadas para a música e a própria lei de incentivo,
ele diz que
As leis de incentivo foram criadas como reserva de mercado e eu acho que hoje nós temos
um desvio de finalidade grande, muitas vezes sobre tudo na Rouanet. As leis de incentivo
também viraram critério de negociação e moeda de troca para favores políticos, então na
Rouanet é muito dicil artistas de menor expressão conseguirem - não falo nem [de]
aprovação, mas acesso ao cofre. Até as grandes empresas já têm politicamente esses
instrumentos linkados com a proposta de marketing de influência política que elas
necessitam para sobreviverem né. E enquanto reserva de mercado eu acho que o
instrumentos importantes, mas nós não podemos ficar dependendo só disso. Eu acho que
temos que pensar a cadeia como um todo, tem que pensar no aprimoramento dessas leis
de incentivo, tem que pensar numa forma de educação não do pprio musico, que eu
vejo que não tem conhecimento [de] como funciona a lei, de como a empresa vai lidar com
isso, conscientizar também as empresas [de] que patrocinar o Rodrigo é legal também. Eu
acredito que, no frigir dos ovos, e no fundo disso, tá a educação sempre, né. Pra gente
instrumentalizar e operar melhor essas leis de incentivo, a gente precisa de um trabalho de
educação forte com a classe artística (RODRIGO BORGES 2016).
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Percebemos que a fala de Rodrigo Borges pontua de forma crítica as relões políticas
estabelecidas pelo mercado frente ao trabalho do músico. Importante notarmos que ele
exe a situão atual, porém aponta possíveis caminhos de melhoras para o exercício
do seu trabalho e, ao mesmo tempo, é muito convicto sobre sua carreira. Isso nos mostra
o quanto é também importante o trabalhador saber sobre sua produção, quais os
caminhos possíveis e porque aquele determinado trabalho não conseguiu evoluir dentro
deste ou aquele mercado, sobre a política cultural exercida pelo Estado e como os
monopólios são construídos. Mesmo que tenhamos, nos últimos tempos, conquistado
alguns direitos civis, é preciso que saibamos sobre
Os meios de comunicação, assim como os partidos em seu trabalho de direção política. É
importante acentuar, pom, que a atuação da sociedade política é restrita em função da
relativa autonomia das instituições da sociedade civil; a estrutura social é dinâmica, as
relações sociais são contraditórias e as instituições sociais são permeadas pelo conflito;
deste modo, é possível a uma classe inovadora contrapor-se ao formidável complexo de
trincheiras e fortificações das classes dominantes, há na sociedade civil espaço para
emergência da ctica, a elaboração de novas concepções de mundo e a luta por novas
relações hegenicas (GRAMSCI, 2007, p. 31).
Estamos tratando aqui da hegemonia cultural que o Estado e os mecanismos de
monopólio impõem sobre os vários setores da sociedade em comuns acordos políticos.
Através de uma determinada manipulação da arte, a indústria cultural passa a ser o meio
para se conduzir e induzir um determinado público a consumir somente aquele nicho
cultural de mercado. Assim, as forças de trabalho perdem sua autonomia; no caso do
artista, este sempre carregou certa fama de postura contra a alienação comercial, o que
o faz ser um trabalhador não alienado. Porém, com os aportes acima, é verificada uma
tendência nessas formas de monopólio sobre o produto, o produtor e consumidor,
promovendo uma engrenagem dinâmica ao capital. As conseqncias desses rumos
sobre o trabalho do sico não são animadoras, como percebemos na própria situação
de desigualdades econômicas para com o trabalhador não sico assalariado e o
músico não assalariado. Entre ambas as precarizações, há ainda a mais precária se
comparada em relação à outra, que neste caso, é a do trabalhador músico.
O músico, sendo crítico da situão, encontra-se acuado pela imposição do mercado;
porém ele também tem em os o poder da criatividade e prodão intelectual, o que o
torna um crítico capaz de elaborar novas formas de sociabilidade com poder de formação
de opinião e público. Outro caminho é desenhado pelo artista quando o mundo
econômico o oprime, quando lhe impõe condições de trabalho. Todas essas habilidades
do artista versus capital são conhecidas comoos argumentos não monetários da vida
de artista” (MENGER, 2005, p. 91).
Entretanto, existe uma fronteira entre a realidade desses argumentos e sua praticidade:
ao mesmo tempo que contribui para o prestígio social das profissões artísticas e para a
magia de um tipo de atividade tornado em paradigma do trabalho livre, a incerteza do
sucesso gera disparidades... da pirâmide da notoriedade (MENGER, 2005, p. 91). São
os conflitos vividos pelos músicos há séculos, entre o sistema econômico em que ele
vive e seu poder de crião. Eis aqui uma grande questão sobre o trabalho do sico:
Como dar conta do projeto de fazer carreira em atividades atraentes mas arriscadas? Logo
nas origens da ciência económica, com Adam Smith, uma explicação doravante clássica
combinou dois argumentos: por um lado a tomada de risco é incentivada pela esperança de
ganhos elevados (enquanto que um cálculo somente baseado na remuneração dia
obtida no exercício de uma atividade artística seria dissuasivo); por outro lado, um conjunto
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de gratificações não monetárias gratificações psicológicas e sociais, condições de trabalho
atrativas, fraca rotinização das tarefas, etc. (MENGER, 2005, p. 91).
Nessa trilha de pensamento, que mais parece uma eterna condição de quem produz
arte, se encontra o mercado de trabalho e suas possibilidades, onde as ofertas estão
relativamente determinadas pela procura e os mais beneficiados com o modelo
econômico colocado são, consequentemente, favorecidos financeiramente, enquanto
alguns dos menos remunerados, que vivem esse dilema há muito tempo, mudam de
atividade prioritária para aumento de renda e, mesmo assim, não abandonam totalmente
a atividade artística. Esta fica como complemento também de renda e como alimento
mental. Mas, geralmente, são poucos os que mudam de atividade laboral, pois entendem
a arte como uma missão que deve ser cumprida. Além disso, discursam sobre a
racionalizão da sua escolha por se manterem fiéis à sua produção artística, fato que,
de certa forma, imputa sua condição de marginalizados economicamente, justificada
pela disfunção da sociedade moldada pelo domínio de mercado industrial da arte.
Com esse diagnóstico entre a colocação do artista frente à hegemonia do capital sobre
sua força de trabalho, temos virtudes de uma autodefesa do músico contra a
uniformizão da arte e, por conseguinte, seu livramento de uma condenação ao
fracasso, através da postura em valorizar sua criação, mas principalmente uma luta que
Bourdieu (1994, Apud, MENGER, 2005), em Le marche des biens symboliques, chama
de defesa contra o desencanto. É importante sabermos que toda a história das artes traz
consigo o drama, o lamento, a dor, a alegria dessa conquista, as genialidades, e que
todo esse conjunto se torna consolador diante das metamorfoses econômicas do capital.
Analisando os caminhos que as obras de arte tomam na história da humanidade,
verificamos que, embora dificilmente seja determinante para mudar o curso da história
daquela ou desta sociedade, é perceptível que a arte contribui para o legado de um povo.
Estamos debatendo aqui as rupturas econômicas entre mercado de trabalho do artista,
monopólio político nas formas de divulgação das obras desses artistas e resistência do
artista frente ao capital. É preciso, contudo, buscar um aprofundamento nos modelos de
produção, na reprodução dessas obras de arte, em nosso caso, a música, para que
possamos dar uma ordem cronológica e absorver as mudanças em que a obra de arte
está submetida, porque
Em sua esncia, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre
podia ser imitado por outros homens, essa imitação era praticada por discípulos, em seus
exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, interessados
no lucro. Em contraste, a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo,
que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos superados por
longos intervalos, mas com intensidade crescente (BENJAMIN, 2012, p. 180).
Essa cronologia sobre a obra de arte e sua reprodutibilidade se assemelha às transições
de modelos econômicos que a história nos permite visitar. Ainda que a arte não floresça
de comum acordo com os processos econômicos das sociedades em determinadas
épocas, ela está sempre presente como protagonista das provocações sociais. Isso é
importante destacar aqui, porque quando analisamos o discurso dos músicos, é notório
que muitos atribuem a precarização do seu trabalho ao tempo atual, à reprodutibilidade
tecnológica, naquele velho exemplo da substituição do músico de bar por um sistema de
som mecânico ou jukebox. Entretanto, no fundo desse debate, estão as formas como a
própria sociedade enxerga aquela determinada obra de arte.
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Reconhecemos que os processos mercantis da indústria cultural, desde a segunda
guerra mundial, se reformulam e se adaptam a todo momento; sim, isto é fato, mas cabe
ao trabalhador sico, além de promover inquietações, junto com sua obra de arte,
também conseguir transpô-las para o plano político prático. Podemos afirmar aqui,
embora estejamos vivendo todos os processos de exclusão pelo mundo, que o artista é
aquele com mais condição de propor inovações e provocações com suas ideias criativas.
É nesse cenário que se conforta o lugar do músico: ainda que esteja diante de toda uma
precarização nas condições de trabalho, é ele como trabalhador que pode promover
novidades sociais e sonoras.
A NOVA ORDEM MUSICAL NA CIDADE DE BELO HORIZONTE
As questões da nova ordem musical de Belo Horizonte, com dados de seu processo
histórico, foram articuladas com as referências da prática atual do órgão que se ocupa
do ordenamento da cultura na cidade a Belotur. A entrevista com o poeta e folclorista
Tadeu Martins foi importante para realizarmos essa análise.
Assim ao reportarmos à historiografia, vimos que a cidade de Belo Horizonte, antes
mesmo de ser construída para ser a capital de Minas Gerais, já fazia sua música.
Construída onde era o povoado chamado de Arraial do Curral Del Rei, com a chegada
dos operários para sua constrão, a cidade abrigou entre os trabalhadores muitos
músicos, que, nas horas vagas, sempre faziam seus festejos regados a muita música,
cachaça e torresmo.
Na pesquisa, conseguimos verificar inúmeras fontes dos conflitos políticos da época em
Ouro Preto, dos prós e contras da transferência da capital de Ouro Preto para o Arraial
do Curral Del Rei. O momento dessa transferência coincide com o período da
proclamação da reblica, e os ideais da elite burguesa e política da época estavam em
jogo. Segundo Julião,A nova Capital parecia se erguer sobre os escombros da antiga
ordem; abandonava-se à própria sorte Ouro Preto e arrasava-se o Curral Del Rei,
deixando poucos vestígios para a posteridade” (JULIÃO, 2011, p. 126). O que imperava
no momento dessa construção era que nascia ali um novo mbolo de modernidade no
Brasil e o progresso enfim chegava a Minas Gerais.No ano de 1891, a Constituição
Mineira assegurou a transferência da capital e, em 1893, foi decidido o local.
E a sica caminhava junto com a cidade. Ela foi muito importante para sua construção
porque, antes mesmo da efervescência da construção da cidade, já havia uma orquestra
formada por operários, que chegavam dos vários lugares de Minas, Brasil e Europa. Era
a orquestra Carlos Gomes, mais velha do que a própria cidade. Além da orquestra, havia
vários outros músicos que já faziam suas apresentões pelas praças em construção e
cabarés que se inauguravam com a chegada de tantos trabalhadores e novos
moradores. Assim, toda essa musicalidade e as referências dos arredores, como
Sabará, Ouro Preto e Mariana, contribuem para o nascimento do carnaval antes mesmo
da cidade, como conta Tadeu Martins.
A capital é oficializada e inaugurada dia 12 de dezembro de 1897, no carnaval deste ano, ou
seja, dez meses antes da inauguração da cidade os construtores fizeram o primeiro
carnaval. O que é que tinha? Carroças enfeitadas, assim os músicos da época iam em cima
das carroças, muito sopro, muita percussão, e começou da Praça Sete, passando pela
Avenida João Pinheiro. Depois desciam para o Parque Municipal. Ali, as o cortejo,
acontecia o baile. Então, primeiro começou com as carroças fantasiadas, [a] isso deu-se o
nome depois de corso; segundo, muita gente fantasiada em cima das carroças com as caras
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pintadas, se tornou os blocos caricatos; terceiro o povo pulando atrás da música que vinha
dessas carroças, bandas ou blocos; e, quarto, a parada no Parque Municipal que se tornou
o baile. Assim foram os quatros pilares do carnaval de Belo Horizonte e as escolas de samba
só vieram após a primeira guerra mundial, e a cidade não tem tradição de escolas de samba
(TADEU MARTINS, 2017).
Nesse contexto, automaticamente durante o burburinho da inauguração da cidade, o
povo tomou a Praça da Liberdade, fazendo o que os mais velhos chamaram de segundo
carnaval no mesmo ano. A diversidade étnica, com predominância negra, já provocava
a cidade antes mesmo de ela nascer e a sica era o instrumento de apresentão. Os
festejos sagrados e profanos migravam das cidades coloniais juntamente com os
operários para a capital; por isso, temos tantos Reis e Rainhas Negras Congas pelas
periferias de Belo Horizonte e alguns terreiros de candomblé com mais idade que a
cidade.
Assim sempre houve carnaval agora tudo é carnaval é uma provocão, devido à
necessidade de apresentar uma cidade cuja história parece estar no subterrâneo, o que
gera a impressão de que por aqui tudo começou agora, porque a cidade é uma das
capitais mais novas do Brasil. A provocação é justamente para fazermos um contraponto
com o renascimento do carnaval de Belo Horizonte no ano de 2008, em que vários
coletivos de artistas, indignados com os rumos políticos que a cidade vinha tomando, os
retrocessos por via do poder municipal, como já discorremos neste artigo, levaram uma
juventude indignada a romper padrões conservadores que muitos chamam,
ironicamente, de a falia tradicional mineira”.
Ao mesmo tempo, nas periferias de Belo Horizonte, o carnaval nunca deixou de existir,
e a prefeitura municipal também patrocinava os bailes regionais. Em alguns anos, a
prefeitura ousava, colocando os desfiles dos blocos caricatos na avenida principal da
cidade, a Afonso Pena; em outros anos, transferia para outros locais, como a Via 240,
no bairro Tupi, na região nordeste da cidade. Entretanto, sempre havia críticas da
população, que reclamava que a cidade não tinha carnaval e que só ficava em Belo
Horizonte o povão que não tinha condições de viajar para outros lugares. Assim, faziam
do carnaval um verdadeiro atestado de pobreza, o que, na verdade, o era.
O que se via era o povo negro mesmo, que ali festejavam de maneira ancestral sua
cultura, e a cidade de Belo Horizonte, dividida pela cor, nunca deu conta de aceitar que
mais de sua metade é totalmente negra. Então, o carnaval da cidade, por muito tempo,
ficou representado pelo povo que a construiu. Desde de seu nascimento, esse povo
negro sempre foi um incômodo para a elite política e econômica da cidade, cujo projeto
incluía a vinda de imigrantes europeus para o embranquecimento do Brasil. Belo
Horizonte seria a cidade modelo, inclusive nisso, tanto que a arquitetura também partiu
das referências modernistas europeias da época.
O carnaval, que, nos últimos anos, vem atraindo milhares de pessoas para a capital,
iniciou-se com os blocos Tico Tico Serra Copo, Chama o Síndico, Então Brilha!, Baianas
Ozadas, Pavão de Pena Krishna e Alcova Libertina, dentre outros, cujos repertórios são
os mais diversos possíveis, de Tim Maia a Jorge Ben Jor, do Axé music ao Rock dos
Stones; tem para todos os gostos. Isso faz do carnaval de Belo Horizonte um diferencial
das demais cidades grandes que sediam a folia: por aqui os blocos, em sua maioria,
saem durante o dia. Essa foi uma característica inovadora dos coletivos de artistas
envolvidos nesse novo momento carnavalesco, que já caminha para uma década de
retomada na cidade.
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Dados da pesquisa realizada pela Secretaria de Estado de Turismo e Esportes em Minas
Gerais e a Belotur apresentam números interessantes sobre o fenômeno da retomada
do carnaval em Belo Horizonte. Ela aponta que
O carnaval de Belo Horizonte de 2016 gerou uma renda de R$ 54,7 milhões para o
município, 233,5% a mais do que a folia de 2015, que gerou R$ 16,4 milhões. O número de
visitantes no evento também aumentou 124,1%, de 42.905, em 2015, para 96.144, em
2016. Os dados são de uma pesquisa feita pela Secretaria de Estado de Turismo e Esportes
de Minas Gerais em parceria com a Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte
(Belotur), divulgada nesta tea-feira. O gasto médio diário dos visitantes também aumentou.
Passou de R$ 99,42, em 2015, para R$ 157,61, em 2016, ou seja, 58,5% a mais. O fluxo
estimado de pessoas, segundo dados da Polícia Militar, passou de 1,458 milhão para 2
milhões (FERREIRA, 2016).
Contudo, referida pesquisa não aborda o trabalho dos músicos e demais artistas
envolvidos para colocarem o bloco na rua. O que se sabe é esses fazem vaquinhas
eletrônicas quando não atingem as metas e, em alguns blocos, os integrantes tiram
dinheiro do próprio bolso para realizar o desfile. A prefeitura, até aqui, não foi eficiente
para com os blocos; somente a partir de 2018 é que lançou um edital financeiro para o
carnaval, o que tamm não resolve totalmente o volume de custo para fazer os blocos
colocarem centenas de milhares de pessoas pelas ruas de Belo Horizonte, como fazem
os blocos citados acima. Ainda que a nova gestão municipal traga alguns benefícios para
os coletivos responsáveis por fazerem acontecer o carnaval de Belo Horizonte, não é
este o desejo dos ativistas culturais, visto que contraditoriamente são retirados boa parte
dos nossos direitos. O processo desejado pelas bases desse levante cultural é o diálogo
considerado horizontal em que todos têm voz e no qual todos colhem, juntos, os frutos.
Foi assim desde o início desse novo momento social vivido na cidade: as reuniões nas
ocupações por moradia popular, por toda a região metropolitana; os espetáculos e os
shows de artistas que, além de doarem o cachê em prol das várias causas sociais, doam
também um bom tempo das suas vidas promovendo ações políticas de conscientizão
coletiva nas universidades públicas de Belo Horizonte e demais espaços blicos da
cidade. O poder coletivo, considerado poder para o povo, foi aos poucos tomando forma,
e o Carnaval da cidade de Belo Horizonte é hoje uma realidade de que o poder público
desdenhou abrindo mão do diálogo com o povo. Isso significa que
Nas sociedades contemporâneas, permeadas por uma mudança acelerada e expostas ao
risco da catástrofe, torna-se mais evidente que os processos sociais são produtos de ações,
de escolhas, de decisões. O agir coletivo não é o resultado de forças naturais ou de leis
necessárias da história, nem, de outro lado, simplesmente o produto de crenças e de
representações dos atores. De uma parte, a tradição tem radicado os conflitos na estrutura
social, em particular, na estrutura econômica, e os tem explicado como uma espécie de
necessidade histórica (MELUCCI, 2001, p. 31).
Dentro dessa necessidade hisrica, é preciso dá voz aos sujeitos protagonistas, os que
se levantam, que ocupam lugares que, até uma cada atrás, estavam totalmente
fechados para o diálogo com o saber social vindo de quem faz a arte na cidade. Ouviam-
se gritos que ecoavam e passavam despercebidos juntos ao vento leste, vozes que
buscavam simplesmente um lugar, um direito à cidade, um direito de festejar, celebrar,
cantar a vida. Como diria o revoluciorio músico brasileiro Francisco de Assis França
Caldas Brandão, mais conhecido pela alcunha de Chico Science: o homem coletivo
sente a necessidade de lutar. O movimento denominado mangue, ocorrido na cidade
de Recife no início dos anos 1990, teve seus ecos pelo Brasil todo em prol da valorização
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da cultura local, mais precisamente a música autoral, que sempre sofreu a imposição da
grande indústria cultural em uniformizar e determinar o que o povo deve consumir como
arte, mais precisamente a música.
Em Belo Horizonte, os ecos do movimento mangue foram ouvidos e representados
paralelamente pelos principais ativistas da música mineira. Ao seu modo, a juventude de
Belo Horizonte assimilou tudo isso e criou suas novas formas de sociabilidade através
da música. Tomou para si o poder da liberdade coletiva para criar seus próprios festivais
de música, com uma estética que representa uma diversidade cultural da cidade. Era
como dizer todo mundo é artista, eu tamm sou, frase da vinheta do programa de
sábado à tarde na Rádio Inconfidência denominado Favela é isso , realizado pela
ONG de mesmo nome.Seguimos lutando e acreditando na Arte. A Ciência tem a
oportunidade de poder usar Arte como instrumento e a Arte, em algumas situações, usa
também a Ciência. Assim como a própria vida imita a Arte, é chegado o momento de
vermos a Arte nos seus variados ângulos, não só sob viés do entretenimento ou do
lúdico.
REFERÊNCIAS
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Data da submissão: 08/03/2019
Data da aprovação: 03/08/2019