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PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DA ESCOLA: A EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES E O MUNDO DO TRABALHO
Not to mention that I did not talk about school: the Education of Young and
Working Adults and the World of Work
SANTOS, Geraldo Márcio
1
OLIVEIRA, Heli Sabino
2
RESUMO
Este artigo proe analisar as posveis contribuições dos estudos sobre o mundo do trabalho para o
Campo da Educação de Jovens e Adultos, EJA, partindo da consideração de que os seus sujeitos
são mais trabalhadores estudantes do que estudantes trabalhadores. Assim, interrogar a EJA pela
perspectiva do mundo trabalho nos parece uma via fértil, e necessária, para recuperar as
abrangências do trabalho na formação humana, na qual a experiência de vida dos trabalhadores seja
contextualizada na práxis pedagógica. Portanto, há uma rica coneo entre o prinpio educativo do
trabalho e o prinpio pedagógico do trabalho. Para dar conta dessa proposta, buscaremos nos
apropriar das reflees do Campo Trabalho e Educação, especificadamente, as pesquisas empíricas
que discutem os saberes dos trabalhadores oriundos da experiência do/no trabalho.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Trabalho e Educação. Prinpio Educativo do
Trabalho e Experiência.
ABSTRACT
This article proposes to analyze the possible contributions of the studies on the world of work to the
Field of Education of Young and Adults, EJA, starting from the consideration that their subjects are
more student workers than student workers. Thus, interrogating the EJA from the perspective of the
world of work seems to us a fertile and necessary way to recover the scope of work in human
formation and of clues for the development of a pedagogical praxis that does not exclude the
experience of the subjects. Therefore, there is a rich connection between the educational principle of
work and the pedagogical principle of work. In order to account for this proposal, we will seek to
appropriate the reflections of the Labor and Education Field, more specifically, empirical research that
discusses the knowledge of workers from the work experience.
Keywords: Youth and Adult Education. Work and Education. Principle of Work Education and
Experience
1
Torneiro Mecânico Senai, Técnico Mecânico CEFET-MG, Licenciado em História (UniBh), Mestre em Educação (FaE/UFMG), Doutor
em Educação (UFF) e Professor Adjunto do Departamento de Administração Escolar, Faculdade de Educação da UFMG. E-mail:
<gemarcio2000@yahoo.com.br>.
2
Licenciado em Hisria- FAFI-BH, Mestre em Educação FaE/UFMG, Doutor em Educação FaE/UFMG e professor Adjunto do
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, FaE/UFMG. E-mail: <helisabino@yahoo.com.br>.
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INTRODUÇÃO
Este texto objetiva analisar as possíveis contribuições dos estudos sobre o mundo do
trabalho para o Campo da EJA,Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores, tendo
como referência alguns estudos do Campos da EJA, e Trabalho e Educação.
A modalidade de EJA, como destacam as “Jornadas Educação de Jovens e
Adultos Trabalhadores”
3
, tem, não raro, como foco o aluno-trabalhador, em vez
de trabalhador-estudante. Este deslocamento permite tanto se repensar a
relação pedagógica nessa modalidade educativa quanto se apropriar das
reflexões do campo Trabalho e Educação, mais especificadamente, daquelas
que discutem os saberes dos trabalhadores oriundos da experiência do/no
trabalho.
Supomos que ao interrogar a EJA pela perspectiva do mundo trabalho pode-se
suscitar uma via fértil de diálogo entre os Campos da EJA e Trabalho e
Educação. Isso porque na perspectiva de análise empreendida nos permite
recuperar as abrangências do trabalho na formação humana e de pistas para o
desenvolvimento de uma práxis pedagógica que não reduza a educação aos
interesses do mercado. Partimos da possibilidade de que o princípio educativo
do trabalho possa ter, em níveis mais profundos e desconhecidos, uma
correspondência com um princípio pedagógico
4
do trabalho.
Saviani (2006) nos lembra que o trabalho deve ser tomado pela via ontológica
e histórica, o que remete a sua condição central na formação humana e,
também, as formas históricas de se ajuste social. O modo de produção
capitalista, desde sempre, buscou subordinar a educação, escolar e não
escolar, aos seus interesses, com efeito, objetivou separar a educação da
produção da existência (FRIGOTTO, 2004; SAVIANI, 2006), favorecendo uma
centralidade da escola como espaço educativo. Esta primazia da escola nasce
para atender duas demandas básicas, a saber, a) produzir um determinado tipo
de força de trabalho, com saberes fragmentados e adequados à divisão técnica
do trabalho da grande indústria e, ainda, b) difundir uma ideologia para obter o
consentimento coletivo dos trabalhadores para com a ordem social capitalista
(ENGUITA, 1991; FRIGOTTO, 2004). Como lembra Rummert (2007), Gramsci
aponta que a instituição escola, apesar de não ser a única, tem notável
importância para a manutenção da hegemonia burguesa.
Todavia, dado o seu caráter excludente, o modo de produção capitalista não
implicou na universalização do acesso à escola para todos da classe
trabalhadora e, até mesmo, algumas vezes limitou as possibilidades de
frequência escolar dos trabalhadores estudantes. No caso da sociedade
brasileira, a situação educacional é ainda mais grave devido ao caráter
dependente e periférico do capitalismo que se estabeleceu, o que acabou
3
Estas Jornadas vêm sendo promovidas pelo Neddate-UFF, Núcleo de estudos da UFF, Universidade Federal Fluminense desde 2006
sob a coordenação da Professora Dra. Sonia Rummert.
4
Como mostraremos adiante, o princípio educativo do trabalho, tema muito explorado no Campo Trabalho e Educação (CUNHA,
KUENZER, 1997; FRANCO, 2003; GRAMSCI, 1979, 1985; NOSELLA, 1992; SANTOS, 2004; 2010) dão conta de uma extraordinária
riqueza de formação humana no, e pelo, trabalho. Todavia, não necessariamente, essa riqueza se converte em uma práxis pedagógica
sistematizada. Nesse sentido, um princípio pedagógico do trabalho é a tentativa de, a partir da apropriação do princípio educativo do
trabalho, o que, além da literatura, deverá incluir a experiência e a memória dos trabalhadores, para constituir dispositivos diversos e
cultura que incidam na prática pedagógica.
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produzindo uma escolarização assimétrica e tardia. Cumpre sublinhar que não
se trata apenas de um aspecto histórico com data de validade. Rummert (2007)
indica uma contínua reiteração da destituição de direitos, dentre eles o do
acesso à educação, cujo marco mais atual se em torno das "(...)
repercussões internas da reestruturação produtiva, do aprofundamento do
processo de internacionalização do capital e da redefinição das condições de
inserção dependente e subordinada do país no capitalismo internacional, a
partir do final dos anos 80" (RUMMERT, 2007, p. 57).
Entretanto, é importante destacar que a aprendizagem dos trabalhadores
nunca ficou limitada ao espaço escolar. Os trabalhadores sempre aprenderam
e se educaram na produção da sua existência. Eis uma das contradições
que o trabalho, em seu sentido ontológico, impõe ao trabalho assalariado, ou
seja, ao mesmo tempo em que são explorados, os trabalhadores produzem e
mobilizam saberes de diversas ordens a favor, ou não, da multiplicação do
capital (SANTOS, 2004; 2010).
Se, de um lado, pode-se constatar que os saberes dos trabalhadores podem
favorecer a produção de mercadoria em detrimento do seu próprio bem físico,
espiritual e econômico, por outro lado, verificar-se que em qualquer processo
de trabalho o trabalhador nunca deixou de se afirmar frente os meios e os
objetos de trabalho, expressão da faculdade humana de observar, analisar e
interpretar a realidade. Nesse sentido, se é no, e pelo, trabalho que o
trabalhador encontra o seu principal lócus pedagógico, há de se defender que a
experiência do trabalho seja apropriada quando falarmos em educação dos
trabalhadores.
A validação da experiência dos trabalhadores não significa mitificá-la frente aos
saberes escolares que escapam aos seus domínios, um risco sempre presente
e que a EJA pode evitar. Tampouco, devem-se negar as possibilidades
políticas e culturais da escola blica, corroborando aquilo que Sonia Rummert
destaca em suas práticas educativas que “só o público pode universalizar
direitos”. Aliás, leitora de Gramsci, essa pesquisadora recorre ao pensador
italiano para defender o acesso à escola pública, deixando claro o sentido de
uma educação que se articule aos interesses da classe trabalhadora.
(...) Gramsci considera essencial que um processo de transformação estrutural
da realidade confira aos trabalhadores o direito de pleno acesso às bases do
patrimônio científico-tecnológico e artístico produzido pela humanidade, ou seja,
à formação integral. Parte, também, do pressuposto de que para empreender
sua luta de libertação, a classe trabalhadora não pode ficar à margem dos
processos de construção, apreensão e crítica de tais acontecimentos
(RUMMERT, 2007, p. 44).
Essa trilha de discussão nos permite ponderar a educação escolar como um
direito e uma necessidade da classe trabalhadora, mas, não como
“incompletude” de um percurso, até então não realizado, que a proposta de
educação referendada na divisão técnica do trabalho será sempre insuficiente
para os interesses dos trabalhadores. Para além da empobrecida ideia de
suplência, as carências dos sujeitos da EJA, que são mais trabalhadores
estudantes e do que estudantes trabalhadores, nos revelam que o se pode
divorciar escola e sociedade.
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Daí, uma educação que interesse aos trabalhadores deva considerar e explorar
os vínculos entre trabalho e educação. Temos, portanto, que a EJA é um
espaço privilegiado da necessária dialética entre educação e experiência.
Dessa forma, buscaremos neste texto, à luz da análise da produção e
mobilização de saberes no chão de fábrica, discutir a educação de jovens e
adultos trabalhadores.
INTELIGÊNCIA E EXPERIÊNCIA OPERÁRIA: O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO
TRABALHO
Os saberes dos trabalhadores, antes de ser um objeto de estudo, se
apresentavam em qualquer processo de trabalho. Para o trabalhador, o saber
sempre desempenhou um papel decisivo na produção das coisas, nas relações
sociais e na formação da experiência-consciência de classe. De certo modo, o
saber sempre se fez presente como um objeto de conversas dentro e fora do
trabalho, como um aspecto integrado ao movimento da vida, expressão de que
a realidade é síntese das múltiplas relações, econômica, política, social,
cultural e subjetiva. Portanto, os saberes dos trabalhadores são, antes de
qualquer sistematização, uma experiência do trabalhador, com as marcas
subjetivas e com as marcas de sua classe.
Do ponto de vista acadêmico, esse debate vem envolvendo diversas áreas do
conhecimento, Educação, Engenharia, Psicologia, Medicina, dentre outras. É
um tema caro ao campo Trabalho e Educação
5
e seu marco principal se origina
a partir da perspectiva de que o trabalho possui um princípio educativo
(KUENZER, 1997; FRANCO, 2003; GRAMSCI, 1979, 1985; NOSELLA, 1992).
Grosso modo, podemos dizer que a ideia de um princípio educativo do trabalho
decorre do reconhecimento do trabalho como categoria fundante da
humanidade, protoforma da organização social (MARX, 1985; GRAMSCI, 1985;
ANTUNES, 2001). Frigotto, Ciavatta e Ramos, afirmam que em Savianni, o
trabalho pode ser considerado como princípio educativo em três sentidos
diversos, mas articulados entre si.
Num primeiro sentido, o trabalho o trabalho é princípio educativo na medida em
que determina pelo grau de desenvolvimento social atingido historicamente, o
modo de ser da educação em seu conjunto. Nesse sentido, aos modos de
produção correspondem modos distintos de educar com uma correspondente
forma dominante de educação. E um segundo sentido, o trabalho é princípio
educativo na medida em que coloca exigências específicas que o processo
educativo deve preencher, em vista da participação direta dos membros da
sociedade no trabalho socialmente produtivo. Finalmente, o trabalho é princípio
educativo num terceiro sentido, à medida que determina a educação como
modalidade específica e diferenciada de trabalho: o trabalho pedagógico.
(SAVIANNI apud FRIGOTTO, CIAVATTA E RAMOS, 2005, p. 31).
5
Os educadores deste campo reafirmaram os vínculos entre as relações sociais e o fenômeno educativo, abordando [...] a (des)
qualificação do trabalho/trabalhador, o trabalho como prinpio educativo, a politecnia e a escola uniria, as políticas públicas e privadas de
formação profissional, os processos educativos fora da escola, especialmente o trabalho, surgem como objetos”. (SANTOS, 2003, p. 32).
Para Franco e Trein (2003), “[...] entender o mundo do trabalho como processo educativo, vale dizer, compreender a pedagogia que se
desenvolve as relações sociais e produtivas no modo de produção capitalista e identificar os espaços de contradição que engendram a
construção de uma nova pedagogia comprometida com os interesses da classe trabalhadora (p. 23).
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Nesse sentido, a ideia de um princípio educativo do trabalho se encontra
imbricada com a faculdade humana de obter os meios para a sua
sobrevivência, independente de sua forma social. Interessante ressaltar que
essa dimensão ontológica do trabalho não desaparece nem mesmo em
processos de trabalho com forte presença científica. As pesquisas, como
veremos, dão conta de que a independência do capital ao trabalho não
corresponde ao que ocorre concretamente no chão de fábrica (ANTUNES,
2001; SALERNO, 1994; SANTOS, 2004; 2010).
As reflexões sobre o princípio educativo do trabalho vêm recebendo
contribuições da noção ergonômica de "trabalho prescrito” e “trabalho real"
(DANIELLOU; LAVILLE; TEIGER, 1989; SANTOS 1997; 2000; OLIVEIRA,
2002; WISNER, 1987). De acordo com Santos (2000), trabalho prescrito tem
um caráter indicativo, podendo ser a definição prévia da maneira como o
trabalhador deve executar o trabalho: o modo de usar os meios de produção,
isto é, os equipamentos, os instrumentos e/ou as ferramentas, bem como o
ordenamento das tarefas, ou como fazer e as regras que devem ser
respeitadas. Segundo Oliveira, "(...) O trabalho pode ser prescrito verbalmente
ou por escrito, por exemplo. Aliás, na maioria das organizações de pequeno e
médio porte a prescrição é essencialmente oral" (2002, p. 350).
Para oliveira (2002): o trabalho real pode ser definido como o que realmente
ocorre” (p. 350). O trabalho real se remete às condições necessárias em que
se realiza uma parte do trabalho e sempre escapa à prescrição
6
(OLIVEIRA,
2002; SANTOS, 2000). Para alguns pesquisadores, a realização do trabalho
real só se torna possível pela intervenção do saber tácito
7
do trabalhador
(ARANHA, 1997, SALERNO, 1994; SANTOS, 1997; SANTOS, 2004; 2010).
A dimensão ontológica do trabalho fica evidente nas várias situações em que
os trabalhadores mobilizam seus saberes. Podendo fazê-lo, inclusive, por
motivos variados e combinados como, por exemplo, para realizar um trabalho
mais seguro, mais bonito, para fugir da vigilância da chefia para superar o
imponderável como os desgastes da maquinaria, a variação da temperatura
ambiente durante o dia, a variabilidade das características físicas da matéria
prima, dentre outros fatores. É certo que, em boa medida, a mobilização de
saberes é sempre um ato de coragem e de afirmação de subjetividade, não
raro, se apoia nos saberes de um coletivo e, também, podem ter contribuições
de saberes escolares. Vejamos alguns casos de saberes produzidos,
mobilizados e formalizados por trabalhadores do ramo metalúrgico.
6
É pela distinção entre trabalho prescrito e trabalho real que ergonomistas distinguem a atividade da tarefa, a tarefa é aquilo que é da
ordem da prescrição e a atividade corresponde ao que de fato é feito, da ordem do trabalho real, ou seja, não se prescreve a atividade,
essa é sempre uma ação do sujeito (DANIELLOU, F; LAVILLE, A; TEIGER, 1989; WISNER, 1987).
7
Ao fazermos uma opção pelo uso da expressãosaber cito e nãoconhecimento tácito, acatamos a distinção de alguns
pesquisadores, entendendo que conhecimento está próximo da ordem do formalizado, de acordo com Lima e Silva (1998). Já o termo
saber pode responder a saberes não-formalizados e, também, se articular com a ideia defazer, ou como entendemos, saberes não
formalizados pelos padrões da ciência. De acordo com o dicionário Ferreira (1986), o saber é: [Do latim sapere, ter gosto]. Ter
conhecimento, ciência, informação ou notícia (...) ter conhecimento técnicos e especiais relativos a, ou próprios para (...) Estar convencido
de, ter a certeza de (...) Ter capacidade (...) julgar, considerar (...) experiência, prática (p. 1530). Neste mesmo dicionário (...), a definição de
tácito é:[Do latim Tacitu] silencioso, calado (...) Em que não há rumor (...) que não se exprime por palavras; subentendido; implícito (...)
Oculto, secreto. No dicionário da educação profissional (Santos, 2000) o saber tácito é apresentado como sinônimo de conhecimento
tácito,(...) é o conhecimento que a pessoa tem, mas do qual não está ciente de modo consciente. É resultante da experiência, da história
individual ou coletiva dos indivíduos (...) (p. 67).
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PEDAGOGIA DA FERRAMENTA: SENHAS DA INTELIGÊNCIA DOS
FERRAMENTEIROS
8
O Ferramenteiro é um profissional do setor metal-mecânico que atua na
fabricação de peças específicas, dispositivos de precisão em diversas
atividades industriais, como, por exemplo, a indústria farmacêutica,
automobilística e eletros-eletrônicos. Uma boa parte das atividades do
ferramenteiro está voltada para a concepção, fabricação e manutenção de um
equipamento chamado de matriz, ou ferramenta, daí o nome ferramenteiro
9
,
que são na verdade um complexo de elementos mecânicos, um mecanismo
com várias partes móveis e fixas de alta precisão que, quando postas em
movimento produzem as peças (SANTOS, 2004). O trabalho de ferramentaria
é possível pela produção, mobilização e formalização de saberes feita pelos
ferramenteiros, as quais articulam saberes escolares e saberes oriundos da
experiência
Em um grande número de situações, os ferramenteiros mobilizam os seus
saberes tácitos afirmando o “esforço de abstração” dos movimentos da matriz
como um recurso essencial para compreender o trabalho prescrito, para
associar a fala de um colega a uma determinada situação de trabalho, ou
mesmo para compreender o funcionamento da matriz:
Se o cara não imaginar o que você está falando, ele não enxerga, ele não
aprende, aliás, ele tem que enxergar para entender o que está sendo falado. Na
ferramentaria você aprende todo dia, mas o ferramenteiro experiente aprende
mais. Aprende mais por quê? Porque ele enxerga mais coisas. A mente do
ferramenteiro tem que entrar dentro da ferramenta, pelo menos comigo foi assim
(FERRAMENTEIRO).
Para alguns ferramenteiros, na medida em que se visualiza a ferramenta pode-
se, também, entender melhor por que certas coisas são exigidas nela. Alguns
buscam simular um diálogo com quem concebeu o trabalho prescrito:
Quando você analisa bem o projeto, você já o tem em mente. Sem conhecer o
projetista, você sabe o que ele pensando, você sabe o que ele pensou
quando projetou aquela ferramenta. Por exemplo, um ferramenteiro me chamou
sábado, porque ele não estava conseguindo entender uma coisa. Ele via aquilo
no desenho, mas não conseguia imaginar aquilo funcionando, então foi a partir
desse ponto que eu peguei e nós sentamos juntos, eu peguei e simulei, eu fui
desenhando e imaginando. Neste ponto eu vi o que ele tinha projetado. Quando
você projeta, você projeta as linhas e elas são paradas, então eu vi juntamente
com ele, observamos aquela situação. Eu peguei e falei com ele: olha, o
projetista ele pensou da seguinte forma: “essa cunha vai encostar no lado de cá,
ela vai cortar do lado de cá”. Não necessariamente o desenho contou isso, mas
foi olhando o desenho e imaginando, que poderia considerar daquela forma,
8
No Brasil, o impulso da ferramentaria se deu a partir da política de nacionalização das peças em meados da década de 1950. O
processo de trabalho em uma ferramentaria apresenta características que pouco favorecem a divio do trabalho, a mesma
complexidade que dificulta a fragmentação requer que os ferramenteiros mobilizem saberes de diversas ordens.
9
Na literatura escrita em espanhol é mais comum o termo matriz do que ferramenta, embora, se fala hierramenta, e o profissional que a
confecciona a matriz é um matrizeiro e não o ferramenteiro. Como muitos desses primeiros trabalhadores no Brasil eram espanhóis,
talvez, isso explique a dubiedade do termo. Soubemos disso pela história oral que compartilhamos enquanto operário metalúrgico e nos
certificamos dessas questões, já como pesquisador, ao constatar em São Paulo a grande presença de ferramentarias de origem
espanholas.
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ou então não ia funcionar. O projetista tinha pensado de alguma forma, a gente
ficou ali sentado uma meia hora, mas eu consegui entender o que ele
realmente pensava. Ele pensava o funcionamento dessa forma e consultando
outras pessoas, depois, para tirar as dúvidas, o pessoal da engenharia, a coisa é
do jeito que a gente tinha imaginado (FERRAMENTEIRO).
O “esforço de abstração”, ao mesmo tempo em que lhes facilita compreender
um determinado raciocínio de um colega, acaba por lhes permitir também uma
reapropriação dos saberes do seu coletivo de trabalho para o seu próprio
saber.
Ao tentar identificar as estratégias utilizadas pelos ferramenteiros para
mobilizar os seus saberes, verificamos uma frequente referência a certo “saber
usar o corpo” no trabalho, inclusive, conferindo uma vantagem sobre o
projetista:
O projetista tem um grande problema hoje em dia. Antes ele trabalhava com a
prancheta, agora ele trabalha no computador em uma tela de no máximo 20
polegadas. As nossas ferramentas, além de ter vários componentes, às vezes
700 ou 800, mede quase 3, ou 4 metros. E tem mais, no computador você não
pega com a mão, não ouve e não direto as peças. Nós olhamos, escutamos,
até para usar a visão tem macete que no computador deve ser mais difícil
(FERRAMENTEIRO).
Um depoimento de outro ferramenteiro, além de corroborar a possibilidade de
certo “saber usar o corpo” ser tomado como um saber cito - no caso, a visão
e o tato -, aponta, também, a contribuição de outros saberes formais como as
noções de desenho mecânico e de geometria:
Geralmente você olha a peça num plano horizontal, você consegue ver que a
superfície está um pouco ondulada, quando a superfície escom o acabamento
constante. O outro ponto é o horizontal, quando você enxerga a peça entre a
curvatura e o plano, você não consegue ver isso na terra. Quando você não
consegue ver, você tem que sentir a peça, você vai passando a mão na
superfície da peça, você sabe se ela está ondulada, se precisa de mais
acabamento, e um raio, por exemplo, a gente chama de raio quebrado, é quando
o raio tem quina, essa quina na verdade, nada mais é do que o encontro, aonde
termina e onde começa o desenho do raio. Esse ponto tem que ter concordância
exata no plano, se ele não tem concordância no plano ele vai ter quina, e essa
quina você observa no tato, você passa a mão e sente, opa, esse raio aqui
está precisando ter um acabamento melhor (FERRAMENTEIRO).
Na ferramentaria existe um trabalho conhecido como try-out, o qual consiste
em submeter uma matriz a prensagens e verificar se o produto prensado se
aproxima daquele que foi projetado. Nesta fase, fenômenos que a
engenharia não consegue sistematizar, principalmente os casos ligados ao
comportamento físico das chapas de aço, que é chamado de “retorno de
chapa”, ou “spring-back. Trata-se de uma reação física da chapa, onde ela
deveria ter, por exemplo, de acordo com a matriz, com um ângulo de 90º e, ao
ser prensada, ocorre um efeito mola, e ela pode ficar com 89º, 88 º, ou 91º.
Segundo um ferramenteiro:
O retorno de chapa, eu acho que é o pior, com certeza é um dos piores inimigos
do ferramenteiro. Não tem cálculo, um cálculo especificadamente para isso, por
quê? A chapa, a estrutura de uma chapa hoje, qualquer outro material, ela tem
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porcentagem de carbono, cromo ou níquel, ela varia. Nesta variação nenhuma
chapa vai ser exatamente igual a outra, tanto é que nós temos uma ferramenta
que está em produção dois anos, um fardo de chapa, hoje exatamente
especificado como se pede o cliente, ela vai bater daqui a uma semana, vem
outro fardo e ela uma reação diferente, o porque disso, porque a composição
que a chapa tem variações, o que é essa variação ? É a porcentagem de níquel,
cromo, de ferro que a chapa tem e isso ocasiona muito o retorno de chapa. O
que é esse retorno de chapa, é o que s chamamos de sprig-back, é
exatamente a resistência que a chapa tem em conformar a figura, a figura que foi
matematizada, então ela resiste mais a esta situação, ela o retorno, ela volta
e realmente na prática a gente consegue tirar isso, fazendo exatamente o try-
out (FERRAMENTEIRO)
Esse fenômeno exige diversos saberes dos ferramenteiros, muitas vezes, é
acompanhado do uso dos sentidos corporais, tais como a visão, o tato e a
audição” em articulação com saberes escolares e muita observação. Vejamos
um depoimento de um ferramenteiro:
O ajuste da linha de corte é o seguinte: no projeto as medidas estão todas
maiores, e aí é a gente que define. Só que o seguinte, de acordo com o projeto a
peça macho deve descer 10 milímetros, eu desço 1 mm, por que no início o
ajuste entre a peça macho e a peça fêmea está muito justo, pode até estragar a
ferramenta. Antes de descer a peça, a gente passa uma pasta vermelha em uma
das partes, então depois que você separa as partes uma delas fica marcada de
vermelho no lugar mostrando a parte que deve ser ajustada. Ai é que tem outro
pulo do gato, você não ir só pela marca vermelha, porque tem diferença, tem um
vermelho que é mais fraco, outro mais escuro ou mais forte. E daí? Acontece
que se o cara não for maldoso, não for experiente, ele não repara direito que tem
mais de um vermelho e tira como base o vermelho fraco, ele só vai ver esse erro
na hora que a peça sair com rebarba. Ele vai dizer que fez tudo certo, e fez
mesmo, que ele não viu, ou não sabe que de acordo com a pressão do ajuste
a cor da pasta muda (FERRAMENTEIRO).
PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TRABALHO UMA EXPERIÊNCIA METALÚRGICA NA
PRODUÇÃO ASSOCIADA
Para a tradição marxista são caras as possibilidades de os trabalhadores, em
qualquer ajuste social, se fazerem humanos pelo trabalho. Nesse sentido, as
experiências dos trabalhadores em se organizar para produzir associadamente
não podem ser tomadas apenas pela perspectiva econômica. Inseridas no
contexto capitalista, essas experiências se inscrevem, também, pela
contradição e apontam que mesmo no trabalho assalariado os trabalhadores
podem dar vazão a sua criatividade, produzir as relações sociais menos
coercitivas, bem como exercer no espaço de trabalho a sua capacidade de
organização política.
Diversos motivos nos permitem dizer que na Metalcoop
10
um
aprofundamento daquilo que já ocorre na produção capitalista, a distância entre
o “trabalho prescrito” e o “trabalho real”, a saber, a) os limites de uma
maquinaria condenada pelos antigos patrões; b) a falta de um aporte científico
e c) as peculiaridades de uma produção associada, proponente de relações
10
A Metalcoop é uma cooperativa fundada em 25 de agosto de 2002, por ex-funcionários da Picchi S/A Indústria Metalúrgica na Cidade
de Salto em São Paulo. Possui aproximadamente 110 trabalhadores, dos 65 são cooperados e os demais contratados. Ver Tese de
Santos (2010).
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menos coercitivas, de sorte que se promoveu no trabalhador uma certa
unidade entre o técnico e o político. Se não totalmente novas, ao menos
guardam algumas distâncias de práticas nas empresas privadas como, por
exemplo, a autonomia para criar e o tratamento dado ao erro que são tidas
pelos próprios cooperados como outra gestão diretamente responsável pelo
crescimento da empresa.
Nós temos aqui uma prática que não é não acusar quem erra, o cara pode ter
errado hoje, mas ontem na hora que ele tomou a decisão, ela era a mais
acertada (...) a experiência vem mostrando pra gente que errar pode ser o
caminho pra descobrir novas formas de acertar (COOPERADO, PRESIDENTE
DA METALCOOP).
Para outro cooperado, as chances de se aprender no trabalho são maiores na
Metalcoop porque é possível errar, contrariar a visão da engenharia, e colher
resultados que o possíveis com tentativas reais, portanto, com algum
custo:
Nem sempre a gente vai acertar na primeira vez. Pela experiência dá pra ter uma
base, mas a gente erra também, isso faz parte do processo. O curioso é que
quando tem erro, aí o cara vem e fala que sabia, que eu era teimoso e tudo mais.
teve situação que eu pensei em desistir, mas cada erro é um aprendizado.
Como a firma é nossa, a gente tem mais liberdade de errar, é que mora o
segredo, porque se você acerta, beleza, você vai pra casa contente. Se você
erra, você conversa mais, pensa mais e devagarzinho vai montando o seu banco
de dados, sua própria ciência, isso é porque você errou (COOPERADO,
GESTOR DO PROCESSO DE TRABALHO).
Dessa forma, a questão do erro na Metalcoop interroga o estatuto
epistemológico e político da ciência, coloca o saber na teia das relações de
poder, em que o erro e o acerto têm uma perspectiva mais coletiva e não
absolutamente individualizada como nas empresas privadas:
Como a empresa é nossa, nós pudemos ter mais ousadia. A literatura diz que
você tem que fazer uma peça em tantas operações, os cálculos mandam serem
feitos dessa forma. (...) Então, corre o risco de rebentar o ferramental, de colocar
em risco até a vida da máquina. Teve um dia, o pessoal tava com medo e eu
falei deixa pra sexta-feira, né? Sexta-feira, no final da tarde, a gente monta essa
ferramenta e vamos experimentar, né? Se de fato aquilo que a gente acha que
vai dar certo, que essa peça além de produzir, sem levar em conta a literatura
pra (...). Bate, a peça acaba dando certo, acaba mostrando que nem sempre
a literatura diz tudo, que precisa o homem ir um pouco mais além daquilo que
são os limites. É aquilo que a gente sempre diz: O céu o pode ser o limite. Se
a gente for um pouquinho mais acima do céu a gente vai descobrir que depois
dele tem coisas bem interessantes a serem exploradas (COOPERADO, EX-
PRESIDENTE DA METALCOOP).
O tratamento que os cooperados conferem aos erros no processo de trabalho e
a presença daquilo que eles chamam de ousadia exemplifica que os avanços
técnicos são atravessados por aspectos políticos. Portanto, podemos apontar
que o sujeito epistemológico não se separa do sujeito axiológico, a experiência
é sempre coletiva e potencializa a subjetividade do trabalhador.
Na Metalcoop, a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real não
apenas confrontou a validade dos saberes teóricos com os saberes tácitos,
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mas também restabeleceu uma tensão entre os próprios sujeitos, portadores e
“defensores” destas epistemologias, uma disputa velada pelo monopólio do
trabalho prescrito:
pra você ter uma ideia, no início, o engenheiro nosso, ele era engenheiro
da Picchi e não começou com a gente na cooperativa, mas quando o serviço
apertou e nós fomos e chamamos ele. No início, ele não aceitou de forma
alguma as minhas sugestões, eu fui fazendo uns testes escondidos, a peça ia
dando certo e ele achando que era o projeto dele. No dia que ele descobriu, ele
ficou uma fera comigo, mesmo assim, mesmo dando certo e o pessoal falando
pra ele, ele não aceitava. Pelo resultado das peças, ele teve que aceitar, mas
punha muita barreira, sabendo que eu num sou bom no desenho, ele pedia pra
eu desenhar e eu faço croqui, sou fraco no desenho. Ficou uma relação ruim,
e eu fui mostrando o resultado na prática e ele no cálculo, falando que num dava
pra fazer. Ficou difícil, a verdade dele era de papel e a minha verdade era de
aço, a gente não vende papel, a gente vende peça de verdade e acho que ele se
sentiu menor, eu num tenho nada contra a pessoa, mas, também, se eu
acreditava no que tava fazendo, eu tinha que defender meu conhecimento, e a
prova pra quem quiser ver (COOPERADO, GESTOR DO PROCESSO DE
TRABALHO).
Ainda que consideremos as contribuições analíticas das categorias
ergonômicas “trabalho prescrito” e “trabalho real”, ousamos dizer que é
importante e até necessário fazer uma apropriação mais aprofundada dos
saberes tácitos dos trabalhadores. Em nosso ponto de vista, até o momento a
literatura coloca o “trabalho real”, exageradamente a reboque do “trabalho
prescrito”, provocando o risco de conferir aos saberes dos trabalhadores um
tratamento residual. nos deparamos ilustrações de que os trabalhadores
produzem saberes antes de se deparar com a insuficiência da prescrição, é
que veremos a seguir.
PARA ALÉM DO TRABALHO PRESCRITO: OS TRABALHADORES PENSAM TODO O
TEMPO
Em nosso ponto de vista, qualquer perspectiva de abordagem dos saberes dos
trabalhadores deve evitar tratá-los como resíduo do trabalho prescrito. Se é
verdade que, muitas vezes, os trabalhadores mobilizam seus saberes para
superar a prescrição, uma análise mais cuidadosa pode indicar que estes
saberes possuem uma história, se inscrevem em uma rica trama de relações
sociais, de apropriação de saberes escolares, de observações de longa data e
de uma não passividade diante da maquinaria. Não temos dúvida, os
trabalhadores pensam todo o tempo. Vejamos um exemplo:
Olha só, está vendo essa retífica aqui? Ela é até muito boa se a gente olhar a
idade dela. que a retifica é uma máquina final, ela é a última máquina antes
de montagem, se eu matar uma peça na retífica, eu perdendo todo o serviço
do torno da fresa e o resto do processo. Essa retífica tem muito recurso, que
aqui tá cheio de folga. Se chegar um outro cara, ele vai apanhar um pouco, é por
isso que o macete é necessário, senão num dava pra fazer quase nada. Tá
vendo aqui, nesse caso aqui é uma pressão, ou então tirar um pouquinho
menos, porque ela vai cortar mais mesmo. Tem hora que você que dar mais um
passe, é só repetir, sem tirar nada, ela tira sozinha, a própria folga, tira mais
material. Então, nesse caso eu uso o defeito da máquina a meu favor
(COOPERADO, RETIFICADOR FERRAMENTEIRO).
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Assim, uma das vias do princípio pedagógico do trabalho é dada pela própria
interface do trabalhador com a maquinaria, portanto, elucida que o trabalhador
mobiliza saberes todo o tempo e não de forma residual, respondendo as
lacunas do trabalho prescrito.
E, ainda, percebe-se com clareza que a maquinaria, como trabalho morto, logo,
é inanimada sem o trabalho vivo, cuja ciência nela inscrita é falível frente ao
desgaste, as variações do objeto de trabalho e todo tipo de imponderável. o
trabalhador, mesmo com toda sorte de limitações, reage frente ao inesperado,
subjuga e renormatiza as propriedades físicas da maquinaria.
Gostaríamos de salientar um aspecto interessante no processo de trabalho da
Metalcop, que é uma inversão de itinerário da prescrição, em que parte do
processo de trabalho se inicia pelos pontos de vistas dos trabalhadores da
produção, detentores dos saberes necessários para superar a maquinaria
“defasada”, os cooperados, majoritariamente do chão de fábrica, elaboram uma
espécie de pré-projeto que será traduzido na linguagem do desenho mecânico
pela engenharia. Assim, temos uma inversão de rota, na qual o pessoal da
oficina faz uma “pré-prescrição” para os seus colegas do escritório, ou seja, o
trabalho real é quem prescreve. Mais uma vez temos que os trabalhadores
pensam todo o tempo e não somente na lacuna da prescrição.
Outra pista que indica que os saberes dos trabalhadores não são residuais ao
trabalho prescrito é dada pela experiência de cada trabalhador, uma vez que
muitos saberes para serem desenvolvidos demoraram anos de trabalho, e
demandaram muitas observações. Santos (2004, p. 114) Traz a fala de um
ferramenteiro, na qual se percebe que o saber do trabalhador pode se
inscrever ao longo de uma trajetória profissional: “Tem um tempão que eu
vinha observando esse negócio do retorno de chapa, então eu fui pegando a
manha de como a chapa se comporta”. Em outro depoimento:
Tem coisas que a gente desconfia, você observa um dia ali, depois fala com
colega aqui e fica com aquilo na cabeça. Às vezes é lá no final que você
compreende tudo, é lá no final que você que uma coisa que você
desconfiava tinha um certo sentido, uma certa lógica (SANTOS, 2004, p. 114).
Dessa forma, fica constatado não que os saberes se inscrevem ao longo da
vida dos ferramenteiros, bem como se verifica um princípio racional que
alimenta estes saberes, ainda que não formalizados numa linguagem científica,
ou precariamente formalizados, não são, na maioria dos casos, não são um
lance de última hora.
INTERROGANDO A ESCOLA: UM PONTO DE VISTA DOS TRABALHADORES
A afirmação dos saberes dos trabalhadores, reconhecido, mas não valorizado
pelo próprio capital é, ainda, algo a ser melhor apropriado pela escola e pela
EJA. É a via mais fértil, que seus sujeitos são trabalhadores estudantes,
portanto, a EJA, se assume a perspectiva de uma educação contextualizada,
deve conhecer os motivos dos trabalhadores que, mesmo portadores de ricos
saberes, quando na escola, possam ter dificuldades de se apropriar daquilo lhe
é oferecido. Reconhecer a capacidade dos trabalhadores e seus recursos de
formalização é um importante passo para superar as barreiras psicossociais
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que possam ter, a qual, muita das vezes, lhe afasta da escola. Por diversas
vezes, como trabalhador estudante, ou como professor, vimos homens que são
“gigantes” em seus locais de trabalho sentirem vergonha na hora de falar, ou
escrever, por entenderem que não dispõem de “falas e escritas aceitas na sala
de aula.
A distância entre escola e o mundo do trabalho provoca um duplo prejuízo
social, de um lado empobrece a produção do conhecimento dos alunos
frequentes, portanto, da própria escola e, por outro lado, provoca a saída de
trabalhadores estudantes que o se sentem acolhidos na pela escola. Neste
caso, evasão e baixa produção do conhecimento são faces da mesma
realidade. Por isso, talvez, caiba aos educadores de um modo geral e,
especialmente aqueles da EJA, se apropriarem das experiências do mundo do
trabalho e, também, da escola, ela própria, como um processo de trabalho,
abrindo senhas para o princípio pedagógico do trabalho.
Vejamos as pistas deixadas pelos cooperados da Metalcoop, ao ressaltarem
que a desobediência à teoria e a confiança em seus saberes tácitos é
favorecida pela liberdade de agir, pensar e criar.
O sucesso que a Metalcoop é melhoria de processo, e porque que nós temos
conseguido melhoria de processo? Porque nós temos ido um pouco além da
literatura, então a nossa ousadia nos permite desafiar um pouco a literatura.
Todas as especificações de qualidade, todas as análises na literatura o
parâmetro de 100% daquilo que você tem que fazer e não pode mexer nem
uma vírgula, porque se mexer, você tem problema. Então aqui tem essa
liberdade de ousar. (...) por exemplo, os produtos que na época da Picchi,
pelos cálculos da engenharia deles, eles iam fazer pelo menos cinco operações
(...) A Metalcoop desafia a fazer em três ou duas etapas (COOPERADO,
PRESIDENTE DA METALCOOP).
Fica para a escola a dica de que ela tem mais a aprender com a liberdade e
cooperação na experiência da produção associada de trabalhadores do que
com a perspectiva organizacional das empresas privadas, que se
estabelece, com maior ou menor grau, na hierarquia de saberes e, por isso,
nem sempre é fácil fazer um enfrentamento com a “teoria”, pois ela vem como
uma ordem e não como um problema a ser discutido com os trabalhadores.
Muitos trabalhadores, mesmo reconhecendo a necessidade de articulação dos
seus saberes com elementos científicos apontam os limites da escola, muito
dos quais, por serem similares a organização do processo de trabalho nas
empresas de capital:
Por isso eu já falei, falei até na faculdade em que eu cursando, a escola devia
conhecer as cooperativas, as escolas preparam para o mercado privado, se as
escolas viessem até as cooperativas, estudassem o que se passa aqui, elas
poderiam melhorar o ensino. Tem muito exemplo, igual eu te falei, aqui nós
tiramos muito proveito do erro. Então se você voltar no exemplo da escola, ela
põe aquele respeito pelo que já está escrito e ninguém questiona o escrito.
Automaticamente, se todo mundo fica com medo de errar, ninguém vai tentar
outro caminho (...) Então, nas escolas você não faz e o o seu
conhecimento, boa parte a pessoa fica mais copiando e num tem aquele tempo
de acompanhar pra ver se sua ideia tá certa e nem troca ideias, é mais é
concorrência. Comparando com a nossa experiência, posso dizer que a escola
ensina pouco por causa dessas coisas, ao menos eu vejo assim (COOPERADO,
PRESIDENTE DA METALCOOP).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos partir da consideração de que, na maioria dos casos, os
trabalhadores deixam de frequentar a escola por causa do trabalho e,
igualmente possível, muitas vezes voltam a frequentá-la por causa do trabalho,
portanto, é inegável que o trabalho atravessa a EJA. Todavia, em boa medida,
a relação trabalho e educação na EJA é marcada pelo avesso, caráter
excludente do capitalismo e/ou pela perspectiva utilitarista da educação para o
mercado.
Também, isso evidencia o limite que é uma proposta educacional subordinada
ao mercado, primeiro porque este prima pela a necessidade e o pela
liberdade e igualdade dos homens, segundo, porque, a necessidade da
burguesia de ter o comando da produção da riqueza e a direção cultural
confere aos saberes dos trabalhadores apenas um sentido utilitarista. Daí,
como alerta Rummert (2007), que as propostas de universalização do ensino
no âmbito da reestruturação produtiva são expressões ideológicas que reiteram
desigualdades, agora com um novo vilão para o desemprego e a baixa
produtividade, o trabalhador pouco escolarizado.
Todavia, sem perder de vista a contradição, a riqueza da EJA está na
experiência dos seus sujeitos e na sua capacidade de criticar um processo de
trabalho que lhes cobra pouco de sua capacidade criativa, logo, pouco faz
avançar sua potência humana. É urgente que a EJA subverta a divisão do
trabalho que hierarquiza a favor da ciência, personificada na figura do
professor, em detrimento de outras formas de interpretar a realidade. Não
obstante, é educativo para a EJA o entendimento de que os saberes
produzidos pelos trabalhadores expressam sempre uma trama entre a
subjetividade e as relações sociais, não há uma sem a outra.
Diante disso, os saberes produzidos e mobilizados pelos trabalhadores jogam
luzes sobre como princípio educativo do trabalho pode se articular com a EJA
e, pelo fato de resultarem de experiências no marco da economia capitalista
apontam o caráter contraditório do modo de produção capitalista. Nesse
sentido, buscamos em nossa vivência como operário metalúrgico e em nossas
pesquisas elementos reflexão sobre a Educação de Jovens e Adultos
trabalhadores.
De início gostaríamos de apontar a necessidade de demarcar as possibilidades
de se tomar a escolar, ela própria, como um processo de trabalho, lugar, onde
pessoas se valham de infinitas capacidades para criar, ressignificar e se
apropriar dos meios de trabalho para atuar sobre um determinado objeto de
trabalho. A experiência operária indica que a EJA precisa considerar seus
educandos como sujeitos e, por isso, os estudantes devem, também, criar e
recriar os meios de trabalho para, assim, escaparem de ser objetos. Isso
implica, também, em subtrair de alguns professores a condição de gerentes
que limitam ao trabalho prescrito, mesmo porque, na maioria dos casos, os
professores formam o “trabalhador coletivo”.
Em Vázquez (1977) uma apreciação que nos permite tomar a prática dos
trabalhadores de observar, experimentar e validar suas intervenções no próprio
processo de trabalho, e não nos cálculos, como expressão da ontocriatividade
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do trabalho, (...) essa prefiguração do real diferencia radicalmente a atividade
do homem de qualquer outra atividade manual que, aparentemente, pudesse
parecer com ela” (1977, p. 190).
Por isso, a escola precisa levar em conta que os saberes não são mobilizados
somente pela insuficiência do trabalho prescrito. Os trabalhadores estudantes
pensam todo o tempo, portanto, a solução de problemas no contexto concreto
não é um saber residual ao proposto pela escola, mas, sim, uma expressão da
capacidade humana desenvolvida pelo, e no, trabalho.
Temos evidências para a EJA que o trabalho extrapola os domínios da
disciplina, inter e/ou trans, pois nele se inscrevem saberes, valores e
subjetividades que não são abarcadas pela abordagem disciplinar. Se toda
ciência tem uma tecnologia associada a ela e, como no caso das ciências da
natureza, é a engenharia que demonstra a verdade da Física e da Química,
podemos dizer que a mobilização de saber tácito pelos cooperados, ao se
inscrever pelo uso da técnica, revela uma contradição entre a ciência e a
tecnologia, já que no caso da extrusão a frio, a engenharia não explica os feitos
da técnica na Metalcoop. A distinção que Marx (1985) faz entre trabalho morto
e trabalho vivo é mais atual do que nunca. Além dos aspectos econômicos e
políticos, o “velho mouro” ao afirmar a relevância do trabalho vivo, índica,
também, que sem a técnica a ciência é uma peça de museu.
A experiência da produção associada mostra que a aprendizagem dos
trabalhadores esteve ligada ao fato de que eles buscaram se fazer, além de
sujeitos “técnicos”, também, sujeitos econômicos e políticos. Fica claro que a
potência educativa do trabalho ganha força na medida em que se supera o
medo e as barreiras psicossociais promovidas pela divisão do trabalho. Como
vimos, a liberdade e a coragem foram ingredientes importantes para que o
saber dos cooperados interrogarem a ciência, ou como eles gostam de dizer,
“além da literatura”.
Por fim, o princípio educativo do trabalho deixa para a EJA mais do que senhas
para as infinitas possibilidades de aprendizagem pelo e no trabalho. Coloca,
também, que a luta pela educação como um direito social deve ser a luta pelo
direito ao trabalho decente, não menos, também, como um direito social.
Apontar o caráter educativo do trabalho não é um elogio ao seu ajuste social
hegemônico, é para não esquecermos que uma educação plena de sentido
para a vida corresponde, também, a um trabalho pleno de sentido para a vida.
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