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A CRISE DO TRABALHO NOS DISCURSOS DE UNIVERSIDADES
PÚBLICAS PORTUGUESAS: A EPISTEMOLOGIA DO CONTRABANDISTA
NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO
The crisis of work in the speeches of portuguese public universities: an
epistemology of the smuggler in the society of knowledge
Gabriel Henrique Idalgo
1
José Alberto de Azevedo e Vasconcelos Correia
2
Maria Teresa Guimarães de Medina
3
RESUMO
Este artigo reflete como se manifesta a crise do trabalho a partir dos discursos de universidades
públicas portuguesas. A crise estrutural do fordismo-keynesianismo, com icio na cada de 1970,
mobiliza uma rie de transformações ecomicas e sociais. Estas transformações apresentam-se
como ajustes da economia, mas simultaneamente aprofundam as contradões essenciais da relação
capital-trabalho na sociedade. Neste contexto, emerge o discurso hegenico de uma sociedade na
qual se atribui ao conhecimento um papel fundamental para o desenvolvimento econômico,
reduzindo-o ao estatuto de um instrumento, cujo valor é definido pela sua utilidade nos sistemas
produtivos. A análise de Programas deão de três universidadesblicas portuguesas, nos permitiu
identificar a emergência de um paradigma de ensino superior que busca adaptar as instituições às
determinações dos processos globais de flexibilização da economia. Isto nos permitiu identificar que
tal paradigma se fundamenta em uma perspectiva positiva e evolutiva de cncia, a qual - baseada em
uma perspectiva sucessiva de tempo - assume o desenvolvimento enquanto um processo positivo e
evolutivo. Nesta concepção, as contradições imanentes do desenvolvimento capitalista tornam-se
superáveis pelo mero avanço do conhecimento cienfico e não pela crítica dos pressupostos da sua
cientificidade. Neste sentido propomos a assunção de um paradigma científico do “contrabandista
que permitiria que a refleo cienfica partisse das contradições da relação entre o trabalho e os
saberes científicos por vias que subvertam os limites das formas de dominação social capitalista, as
quais a cientificidade positiva nunca foi capaz de efetivamente criticar.
Palavras-chave: Crise do Trabalho. Universidade. Sociedade do Conhecimento.
ABSTRACT
This paper reflects how the labor crisis expresses on discourses from Portuguese public universities.
The structural crisis of Fordism-Keynesianism, started on 1970’s, generate a set of economic and
social shifts. These changes are defined as economic adjustments, but simultaneously deepen the
essential contradictions on capital-labor relation in the society. On this context, emerges the
hegemonic discourse that attributes a central role to the knowledge in the economic development in
our society, reducing the knowledge statute to one instrument, whose value is defined by its utility in
productive systems. The analysis on Action Programs of three Portuguese public universities, moved
us to identify the emergence of a paradigm of higher education which seeks to adapt the institutions to
the determinations of the global process of economic flexibilization. This allowed us to identify that this
paradigm is funded on one evolutive and positive perspective of science, which - based in a
successive perspective of time - assumes the de development as one positive and evolutive process.
In this conception, the immanent contradictions of the capitalist development became surmountable by
1
Doutorando em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (Portugal). E-
mail: <gabriel.ghi@gmail.com>.
2
Professor Catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade do Porto (Portugal). E-mail:
<correia@fpce.up.pt>.
3
Professora Auxiliar da Faculdade de Psicologia e Cncias da Educação, Universidade do Porto (Portugal). E-mail:
<tmedina@fpce.up.pt>.
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the mere scientific development instead of the critic of its own scientific premises. In this regard, we
propose the assumption of an “smuggler” scientific paradigm which would allow the scientific reflection
to move from the contradictions of the relation between labor and the scientific knowledge by paths
that subvert the limits of the capitalist forms of social dominations, whom the positive science never
was effectively able to criticize.
Keywords: Labor Crisis. University. Society of Knowledge.
INTRODUÇÃO
Já não é novidade o discurso de que vivemos hoje em uma sociedade do
conhecimento capaz de proporcionar um desenvolvimento econômico e social, como
nunca antes visto, pelo auxílio da tecnologia e da ciência. Este ideário rontico, que
afirma a centralidade do conhecimento em meio a uma sociedade historicamente
assente no trabalho, nos leva a refletir acerca de como essa concepção de
desenvolvimento econômico e social hegemônico se manifesta na atualidade em
universidades públicas portuguesas.
Para tal, em um primeiro momento refletimos sobre o processo histórico da crise do
sistema produtivo fordista para pensarmos como o capitalismo se modifica, pela via do
aprofundamento da sua racionalização, na tentativa de garantir a sua continuidade.
Trata-se de um momento central, pois determina diversas transformações no mundo
do trabalho que passam desde a tendência à redução da oferta de emprego à
transformação qualitativa do trabalho, agora mais precário, instável e com piores
remunerações.
É neste contexto, que emerge de forma hegemônica, nas políticas internacionais, a
ideia de uma “sociedade do conhecimento, a partir da qual estabeleceremos relações
com o movimento de mudança das concepções da educação e da formação, as quais
tendencialmente aproximam-se de um modelo cada vez mais instrumental e submetido
às necessidades do mercado de trabalho.
A mudança paradigmática acerca da relação entre a educação e o trabalho, nos leva a
buscar compreender como esse processo se manifesta, na atualidade, em
universidades portuguesas. Para tanto, analisamos Programas de Ação das três
maiores universidades públicas portuguesas para discutirmos, a partir de seus
discursos, como esse processo de transformações amplas são concebidos pela
entidade política máxima de tais instituições.
Isto nos levará a refletir acerca das perspectivas de desenvolvimento social que
fundamentam as propostas políticas das universidades estudadas e como essas
instituições se relacionam com as contradições de nossa sociedade. Para tal,
realizaremos uma breve reflexão acerca da formação do conceito de tempo no
processo de modernização e de como a constituição da temporalidade moderna é
indissociável à formação da categoria trabalho na sociedade.
Este percurso teórico nos coloca diante da necessidade de uma crítica do conceito de
desenvolvimento inerente da cientificidade moderna, a qual é incapaz de reconhecer a
contradição em seu todo, o qual concebe a história e a própria ciência a partir de um
movimento evolutivo e ascendente. Desta forma, propomos uma epistemologia do
contrabandista que, inversamente ao método positivo da cientificidade moderna
presente nos discursos dos Programas de Ação, funda-se pela primazia da
controvérsia. Trata-se de uma concepção de cientificidade que não constitui um
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movimento evolutivo de desenvolvimento cienfico, mas sim uma diversidade de
caminhos constantemente autorefletidos para avaar sobre as fronteiras da sua
própria forma de se relacionar com o mundo.
A CRISE DO FORDISMO E A EMERGÊNCIA DA CENTRALIDADE DO CONHECIMENTO
A crise de superacumulação que se inicia no fim da década de 1960 e alcança o seu
auge em 1973, evidenciou os limites do sistema produtivo fordista (Postone, 2012;
Harvey, 2014). Os desdobramentos desse momento repercutem até a atualidade e
efetivam diversas determinações nas relações entre a educação e o trabalho (Correia
et al., 2011; Correia et al., 2012; Correia, 2014). Trata-se do momento que marca o fim
da era dourada do fordismo-keynesianismo, onde a aparência concreta da potência
produtiva desse sistema produtivo assegurada pela política desenvolvimentista de
Estado keynesiano , até então inconcevel na história do movimento expansivo do
capitalismo, foi capaz de velar os processos contraditórios que geraram a sua crise
estrutural (Kurz, 2004; 2014).
Nesse processo de colapso do sistema fordista de produção emerge um conjunto de
transformações na sociedade, no qual o enorme desenvolvimento das forças
produtivas promovido pela revolução da microeletrônica (Kurz; Mandel, 1985) constitui
um elemento central. Para o geógrafo David Harvey, trata-se da constituição de um
novo regime de acumulação que busca opor-se à rigidez do sistema fordista e seu
alicerce no Estado keynesiano:
A acumulação flexível, como vou cha-la, é marcada por um confronto direto com a
rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados
de trabalho, dos produtos e pades de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de
setores de produção inteiramente novos, novas maneiras fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, 2014, p.140) .
O autor também destaca que a acumulação flexível se associa a um sistema de
regulamentação política e social bastante distinto do anterior período, no qual
conjuntamente com os processos flexíveis de produção e de mobilidade do trabalho
efetivam fortes transformações sobre a força de trabalho, que se vê cada vez mais
politicamente fragilizada. Efetiva-se, nesse sentido, uma profunda reestruturação do
mercado de trabalho, que frente a uma forte volatilidade do mercado, do acirramento
da competitividade, um excedente cada vez maior de mão de obra, e a redução das
margens de lucro, permitiram que os patrões impusessem regimes e contratos de
trabalho mais flexíveis
4
(Idem).
Neste contexto, o modelo de Estado de providência desenvolvimentista, baseado na
política econômica keynesiana em vigor assegurava, de certa maneira, os direitos
historicamente conquistados pelas lutas dos trabalhadores. Porém esta estrutura dá
lugar a uma nova forma de Estado que se fundamenta, segundo Moishe Postone
(2012), em paradigmas ecomicos neoclássicos renovados que se efetivam
4
Aqui o sentido atribuído ao conceito de flexibilidade que o autor traz se aproxima da ideia de uma flexibilidade defensiva, na qual
discursivamente se afirma como algo que aprimora o trabalhador para se adaptar às condicionantes do mercado de trabalho, mas que na
prática tende a se traduzir em precariedade laboral, em instabilidade e mais baixas remunerações (CORREIA, 1996).
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conjuntamente a uma nova configuração caracterizada pela desregulão,
globalização e a primazia da financeirização
5
Essa mudança paradigmática, para Robert Kurz (2014), é resultado do
aprofundamento da crescente necessidade de redução dos custos associada à
necessidade desenvolvimento das forças produtivas em escalas cada vez maiores,
processo imanente ao desenvolvimento capitalista. Tal necessidade constante de
desenvolvimento das forças produtivas o se faz sem contradições, as quais Marx foi
capaz de identificar, já no século XIX, a partir da sua formulação acerca da queda
tendencial da taxa de lucro” (Marx, 1988b), mas que assumem seus contornos mais
complexos na atualidade (Kurz, 2014; Postone, 2012).
Trata-se de uma tendência de decréscimo nas taxas de lucro conforme cada rotão
do capital, que se dá pela diminuição da capacidade do capital extrair mais valia do
trabalho vivo, o que simultaneamente determina um imperativo de redução dos custos
de produção pelo aumento da composição orgânica do capital, ou seja, pela redução
dos custos com capital variável (trabalho vivo) e pelo o aumento do capital constante
(maquinaria). De maneira que a cada rotação do capital geral de uma determinada
indústria há uma tendência na redução dos custos com os trabalhadores. O problema
apontado por Marx é que:
[...] o desenvolvimento da força produtiva e a composição superior do capital que lhe
corresponde, põem um quantum cada vez maior de meios de produção em movimento
por um quantum cada vez menor de trabalho, cada parte alíquota do produto global, cada
mercadoria da massa global produzida absorve menos trabalho vivo e, além disso, contém
menos trabalho objetivado (MARX, 1988, p.163).
A partir disto, torna-se possível identificar a contradição de um processo onde a
expansão do capital, que se manifesta fenomenicamente no crescimento das
empresas, no aumento do volume de mercadorias etc., vela o aprofundamento da crise
lógica da reprodução do capital. Desse modo, delineia-se um contexto em que há uma
diminuição acelerada do dispêndio de trabalho por unidade de mercadoria produzida
que se dá simultaneamente ao alargamento da sua produção em massa, cada vez
mais barata, e à expansão acelerada dos mercados (Kurz).
Esta conjuntura macro do processo de modernização evidencia que a racionalização
da produção, dada por meio do desenvolvimento das forças produtivas, na qual o
dispêndio de trabalho humano se torna supérfluo, torna o dispêndio de trabalho
humano cada vez supérfluo, pois na medida em que se desenvolve o sistema
produtivo se permite e promove-se o alargamento dos mercados de mercadorias,
conjuntamente com o encolhimento dos mercados de trabalho (Kurz, 2014; Segnini,
2000)
Quando nos referimos a esse processo de redução da necessidade de trabalho
humano, não estamos a profetizar um fim do trabalho vivo pela substituição por
máquinas ou computadores. Reconhecemos que sim, o trabalho humano continua a
ser imprescindível ao desenvolvimento capitalista, porém ao tornar o trabalho humano
cada vez mais supérfluo, altera-se a configuração das relações de poder da força de
5
É importante destacar que, como afirma Moishe Postone, a recente dominância da economia neoclássica não significa que se trata de
uma vitória contingencial de uma escola de pensamento, mas deve ser entendida historicamentecom referência aos problemas gerados
pelas mudanças na configuração do capitalismo global (2012, p. 229).
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trabalho, o que se identifica nos crescentes processos de precarização que se
apresentam eufemisticamente como trabalho flexível.
Por outro lado, se analisarmos os desdobramentos das contradições da queda
tendencial da taxa de lucro no trabalho, é posvel ir além da questão do aumento ou
diminuição do emprego de trabalho humano. Isto porque com o processo de
financeirização da economia se identifica o deslocamento do eixo de valorização do
valor no capitalismo, que necessariamente dependeria da criação de valor do trabalho
vivo (substância de valor), sendo este produtivo. Agora, o que se vê é um sistema
(im)produtivo, que, em princípio, tem a finalidade última de valorizar o valor, mas cada
vez mais depende dos processos especulativos e das movimentações financeiras, os
quais se tornam o fundamento dos enormes montantes de dinheiro (sem substância)
que financiam o sistema produtivo (Botelho, 2018).
Porém, apesar da economia política pensar que esse deslocamento pode ser
considerado um ajustamento do capitalismo, a partir dessa perspectiva torna-se visível
como essa dita forma de ajustamento pode ser pensada como um indicador da própria
falência da capacidade de desenvolvimento deste modo de produção que fundamenta
a nossa sociedade (Kurz, 2004; Postone, 2012).
Identificarmos a falência não significa dizer que o capitalismo o seja mais capaz de
se reproduzir ou que estamos caminhando para uma sociedade sem trabalho.
Reconhecemos que esta assunção dos limites categoriais do capital, que se
evidenciam a partir do trabalho, nos permite ver o quão crítico se torna o processo de
modernizão, que a cada transformação da sociedade em busca de se adaptar a
economia e os sistemas produtivos aos condicionamentos das crises, aprofundam-se e
se tornam ainda mais complexas as suas contradições (Postone, 2017; Botelho, 2018).
Ou seja, efetiva-se um processo simultâneo negativo onde positivamente assolões
econômicas a partir dos pressupostos do capital efetivam o aprofundamento da crise e
dos limites da sua própria capacidade lógica de reprodução.
A SOCIEDADE DO CONHECIMENTO OU SOCIEDADE DO TRABALHO?
É neste campo das soluções econômicas positivas que identificamos a emergência da
ideia de uma sociedade do conhecimento que se afirma de forma hegemônica
(Worldbank, 2002; Bernheim e Cha, 2008; Bonal, 2009; Żelazny, 2015; Jessop,
2017). Para buscarmos o sentido atribuído a esta ideia, é muito relevante o documento
“Constructing knowledge societies: New challenges for tertiary education”, publicado
pelo Banco Mundial (2002).
Para o Banco Mundial A habilidade de uma sociedade para produzir, selecionar,
adaptar, comercializar e usar o conhecimento é crucial para o crescimento econômico
sustentável e para melhorar os padrões de vida da população (2002). Aqui nota-se
que a perspectiva reificada sobre o conhecimento se aproxima do estatuto de uma
mercadoria, que é produzida, trocada e que permite acrescer um valor ecomico ao
ser utilizada, o que, nesta lógica econômica, geraria a riqueza capaz de melhorar os
padrões da populão.
Neste cenário romântico, a universidade e o seu papel na prodão de conhecimento
emerge como um ator chave para a sociedade: As universidades são, sem dúvida,
parte essencial do sistema de educação terciária, mas o conjunto diverso e crescente
de instituições de instituições terciárias públicas e privadas em cada país [...]
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conformam uma rede de instituições sobre as quais se apoia a produção de alta
capacidade para o desenvolvimento (Ibidem, p.IX). A universidade seria, então, o
centro produtor de tal conhecimento gerador de desenvolvimento econômico. Ao longo
do texto são delineadas propostas de mudanças nas instituições de ensino superior
que permitiriam alcançar tal cenário idílico de associação direta entre o conhecimento e
o desenvolvimento econômico e social.
Esse conjunto de propostas é assimilado e aprofundado por Henry Etzkowitz (2013) na
sua concepção deuniversidade empreendedora contemporânea, a qual estaria muito
mais inter-relacionada com a instria, tornando-a efetivamente em um motor para o
desenvolvimento e que promoveria mudanças nos seus próprios valores que ainda
estariam por aparecer.
Os valores principais que identificamos a partir de seu texto são os da afirmão de
uma universidade que se aproxima da concepção de empresa, onde o seu produto é o
conhecimento, o qual teria o seu valor atribuído pela sua utilidade no ramo industrial.
Ou seja, os parâmetros do valor do conhecimento seriam definidos pela capacidade
desse conhecimento ser aplicado no processo produtivo.
De tal modo, o conhecimento é visto como uma mercadoria, que assim como o
trabalho, possui a propriedade de entrar no processo de valorização do capital. Porém,
a sua entrada no processo de valorização, em termos lógicos, difere muito do papel
produtivo, consideramos que a ampliação da capacidade produtiva, que a
racionalização produtiva viabilizada pelo acréscimo de técnica (conhecimento), significa
o aprofundamento da contradição na composição orgânica do capital que assinalamos,
onde, nomeadamente, se efetiva a eliminação de trabalho produtivo e expansão de
trabalho improdutivo.
Neste contexto, consideramos ser posvel afirmar que a ideia de uma sociedade do
conhecimento, desloca centralidade do trabalho na sociedade para uma periferia onde
o centro se constituiria pelo conhecimento, movimento que traria a contradição de uma
sociedade historicamente e logicamente constituída a partir do trabalho (Marx, 1988;
Postone, 2014), onde o que é posto como central é o conhecimento.
Porém, é importante notarmos que nesses termos o conhecimento se aproxima de um
instrumento para o desenvolvimento econômico. Isto significa assumir uma dimensão
possível de emprego do conhecimento como o todo de suas posveis aplicações na
vida social. Esta concepção instrumental, passou a ser reproduzida nos sistemas
educativos, com a emergência da educação e da formação enquanto um instrumento
para resolver as contradições inerentes à forma de desenvolvimento econômico que
se afirma a partir da crise do fordismo (Correia, 1996; Segnini, 2000; Correia et al.,
2011).
Logo, frente a esta reconfiguração contraditória do conhecimento em meio à sociedade
do trabalho em crise, nos pareceu ser pertinente o questionamento se ou como,
atualmente, esse discurso se manifesta nas universidades públicas portuguesas. Tal
problemática constitui o objeto de estudo da dissertação de mestrado que serve de
pano de fundo para este texto.
Porém, tendo em conta as possibilidades limitadas de uma investigão de mestrado
que impossibilitavam realizarmos um estudo sistemático das recentes políticas de
todas as universidades públicas portuguesas, optamos por analisar Programas de
Ação recentes das três maiores universidades públicas portuguesas. Os documentos
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apresentam as propostas, metas e compromissos assumidos pelos reitores tanto com
a comunidade universitária, quanto com a sociedade em geral.
Apesar de aparentar ser um mero conjunto de metas e compromissos, que nem
sempre são totalmente cumpridos, reconhecemos que devem ser lidos enquanto
documentos eminentemente políticos com relevância para definição dos rumos que as
instituições tendem a assumir e a perspectiva de desenvolvimento social que sustenta
as propostas da instituição máxima de governo de cada universidade.
Tendo em conta que a linguagem e o discurso o domínios de prática social (Ball,
2006) - simultaneamente produtos e produtores do mundo social -, identificamos que
poderíamos abordar as contradições aqui discutidas a partir dos discursos presentes
nessas políticas, pois assim seria possível ilustrar o que os discursos dos programas
políticos das instituições estudadas propõem e também contrapor esses discursos com
as tendências políticas globalmente estabelecidas para o ensino superior que aqui
discutimos.
A INSTABILIDADE ENQUANTO HORIZONTE PARA AS POLÍTICAS DAS
UNIVERSIDADES PORTUGUESAS
Em nossa pesquisa buscamos fugir de uma análise crítica da mera casualidade, onde
os programas de ação seriam pensados como um fenômeno resultante das
transformações sociais. Consideramo-los simultaneamente enquanto produtos e
produtores das transformações sociais globais anteriormente debatidas neste texto.
Nesse sentido, a análise dos documentos nos permitiu identificar quais as concepções
de desenvolvimento econômico e social que fundamentam os discursos ali presentes.
Conceões que posteriormente colocaremos em conflito com as contradições das
formas críticas que o trabalho tende a assumir na sociedade.
É importante ressaltar que nesta pesquisa não se buscou olhar para um documento
para buscar generalizações do sistema universitário português, ou considerar os
documentos, os seus autores e as respectivas universidade enquanto o problema a
ser analisado, para então propor, a partir disso, solões definitivas. Trata-se, antes,
de olhar para os documentos enquanto manifestação de um processo social o qual
simultaneamente determina é determinado pelas transformões que o documento traz
à tona. Assim evitamos uma estetizão da crítica onde se identifica uma imagem do
problema a qual passa a constituir todo o conteúdo e não como ponto de partida,
primeira impressão, para pensar as suas relações sociais constituintes. Portanto,
consideramos o documento como uma representação, a qual nos traz elementos para
pensarmos as contradições do processo de modernização capitalista no qual está
inserido, como produto e produtor.
Tendo em conta a impossibilidade de incorporarmos toda a análise dos documentos
realizada para a dissertação de mestrado que constitui o pano de fundo da temática
abordada neste artigo (Idalgo, 2016), apresentaremos aqui apenas um recorte que
consideramos mais pertinente para o debate acerca das transformações das relões
entre o campo educativo e o trabalho na dita sociedade do conhecimento.
Logo no seu momento inicial, o Programa de Ação da universidade A, identifica que na
atualidade se vive uma conjuntura de instabilidade política, social e econômica, sem
paralelo no período do regime democrático instalado com o 25 de abril de 1974, o que
traria o predomínio de umagrande incerteza na dimensão de intensidade e na
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dimensão das restrições que têm sido e irão continuar a ser impostas à sociedade e ao
serviço público em particular (Programa de Ação A, p.6).
Discurso similar ao da universidade B: As severas restrições orçamentais, que têm
levado à adoção de medidas muito restritivas, ou mesmo impeditivas da contratação de
pessoal, que vigoram há vários anos, o podem comprometer o futuro da
Universidade (Programa de ão B, p.12).
Em uma tônica semelhante, segue o Programa de Ação da universidade C:
Os últimos quatro anos foram indelevelmente marcados pelos efeitos do Programa de
Assistência Económica e Financeira (PAEF) a Portugal, que resultou em graves cortes
orçamentais e numa perda significativa de autonomia das universidades [...] Os níveis
muito elevados da dívida pública portuguesa não deixam, aliás, antever qualquer alívio
orçamental relevante nos próximos anos (p.4).
Com este enquadramento conjuntural já é delineada a particularidade do momento em
que vivemos, onde a ideia de instabilidade e incerteza se tornam determinantes para o
âmbito político, social e ecomico. Enfatiza-se, assim, que se vive, na atualidade, um
momento de excepcionalidade, o qual inevitavelmente imporá restrições à sociedade, e
especialmente ao serviço público. Inicialmente nos indagamos sobre fato da palavra
crise não ter sido utilizada no seu enquadramento conjuntural, utilizam, antes,
instabilidade e incerteza.
Cabe pensarmos sobre esta questão, pois na medida em que um contexto de crise do
capitalismo é identificado como período de incerteza ou instabilidade, a crise é
apresentada a partir do âmbito da positividade do problema, abdicando assim do
âmbito negativo que remete às contradições inerentes do desenvolvimento desta
sociedade.
É neste sentido que anunciam que as determinações do período excepcional trarão
restrições, as quais serão impostas afetando em primeiro lugar os serviços públicos,
apesar de estas variarem na intensidade e dimensão. Assim, dos seus enunciados,
podemos concluir: em tempos incertos e instáveis a austeridade é inevitável.
Para refletir sobre tal ideário de inevitabilidade das transformações no desenvolvimento
capitalista, é necessário brevemente voltarmos a atenção àquele encadeamento
sistemático de crises econômicas de todos os tipos que ocorreram a partir da década
de 1970 e se estendem até a atualidade, o qual acima denominamos de período de
crise do fordismo, que nos traz um panorama nunca antes visto de instabilidade perene
e progressiva (Botelho, 2018).
Para o Programa de Ação a resposta a este contexto de instabilidade certamente será:
adaptando, reorganizando, racionalizando e cooperando com que está mais próximo e
mais distante (Programa de Ação A, p.7). Se colocarmos em outros termos, é possível
dizer que o seu discurso nos apresenta um horizonte para contornar os
condicionamentos dos tempos atuais, onde há um reconhecimento em que a mudança
possível deve-se fazer internamente e externamente com os recursos já presentes.
O programa delineia uma contextualização do atual momento histórico de rápidas e
profundas transformações, no qual a dinâmica natural da vida nunca foi tão
vertiginosa como a das últimas três décadas. Tal movimento evolutivo é identificado
como uma “revolução global que traz conseqnciaslargamente superiores àquelas
atribuídas a revolução industrial do século XVIII.
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Quando fala de um momento revolucionário, partindo de uma concepção de
desenvolvimento evolucionista, logo, linear e ascendente, que evidencia quão
modernizadora é a sua perspectiva. Isto por que naturaliza o movimento de
transformação da sociedade enquanto uma linha ascendente, onde o último momento
sempre é superior ao precedente, o que elimina a possibilidade de identificar qualquer
contradição que a forma de desenvolvimento pode possuir. Assim identifica-se que o
seu discurso parte de uma perspectiva ontológica de transformação da sociedade, que
considera enquanto essência de nossa sociedade a transformação positiva, onde o
momento atual é necessariamente uma evolução em relação ao anterior.
Haja vista que mesmo a revolução industrial do século, que marca a ruptura histórica
com o modo de produção feudal iniciada pelo capitalismo comercial, é tida como um
processo de inferior potencial de transformação social em relação ao processo que se
vive hoje.
A revolução a qual se refere seria decorrente das transformações na estrutura
produtiva global capitalista, dinamizadas pelo período de crises iniciado na década de
1970, que efetivam uma profunda racionalização dos sistemas produtivos viabilizados
pela acelerada inovação tecnológica dada pela microeletrônica e informática.
Tendo em conta este panorama, em oposição ao deslumbramento presente no PA,
consideramos que o atual momento histórico de transformações do capitalismo pode
ser considerado revolucionário no máximo no que toca ao desenvolvimento das suas
forças produtivas, pois apesar das amplas e profundas transformações que isso efetiva
na sociabilidade capitalista, a lógica de produção e reprodução social mediada pela
mercadoria permanece desde os primórdios desta forma social.
É evidente que a universidade o escapa a este processo, pelo contrário ela se torna
um dos atores chave neste momento do processo de modernização capitalista. De
modo que a universidade humanística clássica se torna anacrônica, principalmente por
ser identificada enquanto uma instituição economicamente inviável, isto gera uma
pressão no sentido de adaptar a sua estrutura às condicionantes do seu entorno
econômico-social (Mandel, 1985).
É neste contexto que Amaral e Magalhães (2000) reconhecem a emergência de um
novo paradigma de universidade, no qual o ambiente social e econômico passa a ser
considerado como uma teia dentro da qual as instituições de ensino superior se têm
de integrar se pretendem sobreviver enquanto organizações” (p. 16).
Os programas de ação nos permitem identificar tal paradigma presente em seus
discursos, principalmente na proposição supracitada da resposta inevitável às
condicionantes do momento atual de incertezas e instabilidade. Esta ideia de
inevitabilidade de adaptação do ensino superior é reconhecida por Magalhães (2006),
quando reflete acerca deste paradigma do ensino superior que emerge a partir da
década de 1980, que denomina de paradigma da adaptabilidade:
Inspiradas na teoria dos sistemas e das organizações, sobretudo através das teorias e
práticas da administração, e na preso das restrições financeiras e políticas, a
investigação e a reflexão sobre as instituições de ensino superior (IES) têm vindo a ficar
prisioneiras das assunções de que, primeiro, as organizações académicas, como
quaisquer outras organizações, têm de cuidar da sua relação com o seu meio ambiente e,
segundo, que a sobrevivência organizacional depende da reformulação da sua missão.
(MAGALHÃES, 2006).
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Esta retórica de que não há alternativa emerge conjuntamente com a crise do trabalho
discutida anteriormente, as quais apontam para medidas políticas no sentido da
flexibilizão e adaptação da sociedade em geral às condicionantes econômicas, o que
resultou na retirada de direitos sociais historicamente conquistados. No âmbito do
discurso político estas medidas se justificam pela retórica que não há alternativa
(There Is No Alternative TINA), a qual é oriunda da concepção neoliberal de
economia, caracterizada por uma ideologia de livre mercado baseada na liberdade
individual e de Estado reduzido (Séville, 2017).
É interessante notar que na definição dos rumos a seguir, em um trecho do Programa
de Ação A, o reitor partilha um de seus princípios de vida pessoal que muito se adequa
à retorica TINA: não ter pressa, não perder tempo, a partir do qual enfatiza que
chegou o tempo de não perder tempo. Ora, nos questionarmos, que tempo é esse
que agora já não pode mais ser perdido? De onde viria a ideia da perda de tempo no
seu discurso?
Isto nos suscita a pensar qual é a concepção de temporal que sustenta a proposta de
desenvolvimento que apresentam os programas de ão, afinal em todos uma
leitura de que a solão se situa na adaptação das instituições às condicionantes
econômicas, racionalizando, flexibilizando e cooperando internamente para garantir a
sua sobrevivência em meio a ummercado que movimenta em todo o mundo cerca de
5 milhões de estudantes e envolve verbas superiores ao PIB português, com taxas de
crescimento anual na casa dos 7% (Programa de Ação C, p.5).
Desta forma consideramos pertinente refletirmos brevemente acerca do conceito de
desenvolvimento e como ele emerge enquanto um sinônimo de resolução das
contradições de nossa sociedade, sem nunca romper com a lógica de reprodução
social que a produz.
A TEMPORALIDADE DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E A CIENTIFICIDADE
MODERNA
A nossa argumentão se inicia com uma breve reflexão acerca da cientificidade
moderna e a sua conceão de desenvolvimento. Este percurso se situa numa
tentativa de refletirmos criticamente sobre como os fenômenos sociais e suas
imanentes contradições, dada essência contraditória das relações sociais no
capitalismo, são concebidas pela forma de razão fetichista que sustenta esta
cientificidade (Lukács, 2003).
Para tal, é interessante o estudo que Moishe Postone (2014) realiza acerca da
transformação da concepção acerca do tempo ao longo das sociedades, pois permite
reconhecer o ponto de clivagem que se efetiva na formação da modernidade e do
capitalismo frente à formação social da Idade Média. Para o autor, é a partir deste
momento que se constitui o tempo enquanto uma categoria abstrata,
independentemente de qualquer determinação natural ou religiosa. Esta forma de
conceber o tempo, no seu processo de constituição social, tem como expressão mais
enfática a formulação de Isaac Newton, o qual define um tempo absoluto, verdadeiro e
matemático, que flui de maneira homogênea, independente a qualquer coisa ou
fenômeno externo e é dividido em unidades iguais, constantes e não qualitativas. É
evidente que, posteriormente, esta perspectiva newtoniana de tempo passa a ser
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contestada pela física, mas no que toca a prática social, a vida cotidiana é esta
concepção de tempo que se afirma até a atualidade.
Esta perspectiva temporal científica é afirmativa e essencialmente ligada na própria
concepção da relação entre sujeito e objeto que define o todo filosófico da sua
própria cientificidade. Trata-se de um método que, segundo Georg Lukács (2003),
constitui um ideal de todo incapaz de conhecer a contradição ou mesmo os
antagonismos, os quais, quando aparecem à sua frente, são considerados indícios de
que o grau de conhecimento existente até então ainda necessita ser aperfeiçoado e
desenvolvido, ou seja, aquilo que se apresentava como um problema seria então
resolvido com o maior desenvolvimento do conhecimento científico.
Entendemos que assim se afirma uma concepção de desenvolvimento na história da
modernizão como um movimento sucessivo e ascendente, que se move
naturalmente no sentido de patamares superiores. A sua abrangência não se limita
ao método da física, ou da biologia com a teoria evolucionista de Darwin, mas também
nas ciências dedicadas aos fenômenos sociais (Alfredo, 2009).
É neste sentido que este conceito de desenvolvimento, oriundo do método das ciências
naturais e fundamentado em uma perspectiva abstrata de tempo, passa a assumir um
caráter hegemônico, principalmente a partir da segunda metade do século XX, de
modo a constituir-se como elemento central para a mobilização para a mudança social,
tanto no discurso científico, quanto no político e da opinião pública (Caramelo, 2009).
Segundo Postone (2017), esta forma abstrata, homogênea e vazia de tempo se
constitui simultaneamente à forma mercadoria, uma vez que esta é o fundamento do
próprio valor no capitalismo, o qual é identificado simultaneamente enquanto forma de
riqueza e forma de dominação social. Desta forma, o autor nos aponta como a reflexão
acerca da temporalidade na sociedade moderna é fundamental para criticarmos a
forma de dominação social que se efetiva pela medião do valor e a forma
mercadoria.
São estas formas abstratas de tempo e de valor que consideramos centrais para a
constituição da categoria trabalho no processo de modernização. O que nos permite
reconhecer a especificidade histórica do trabalho no capitalismo, ou seja, nos permite
identificar que somente em um momento histórico onde o tempo se abstrai, o trabalho
pode existir na sua simultaneidade entre valor de uso e valor.
É exatamente aí que Marx evidencia como a não identificação desta simultaneidade
dificulta visualizarmos a contradição fundamental do capital, o que seria possível de
reconhecer pela crítica da forma mercadoria e o seu fetiche (Marx, 1988).
É neste sentido que consideramos relevante pensarmos acerca desta simultaneidade
histórica da formão do tempo e do trabalho na modernidade, pois abriria o caminho
para identificarmos as contradições de uma sociedade onde as relações sociais
assumem a forma de relação entre coisas (Marx, 1988).
A constituição do tempo enquanto conceito abstrato, independente e perfeitamente
quantificável se efetiva simultaneamente ao processo de formão da categoria
trabalho na constituição da modernidade. É quando o tempo se liberta das suas
vinculações com a natureza, que tamm se liberta o trabalho das antigas formas de
dependência do sistema feudal, tornando-se uma abstração, uma medida que assume
a forma de mercadoria, e é concebido como a única riqueza que está em todos os
indivíduos e que pode ser vendida livremente. Ao se autonomizar o trabalho e seus
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produtos assumem a forma geral daforma mercadoria” e as relões entre as
pessoas enquanto detentoras de mercadorias se torna a relação social dominante
(Marx, 1988).
Assim, sob esta forma, o trabalho e as suas relações sociais constituintes se tornam
coisa, uma mercadoria trocável detentora de valor . É aqui que a relação entre o
tempo e o trabalho é essencial, pois o trabalho e o seu valor, agora são qualificados a
partir da medida do tempo de emprego de trabalho humano médio necessário para a
produção de uma mercadoria. Dessa forma, se torna posvel equivaler coisas
concretamente diferentes como um livro ou uma mesa, ou até mesmo o trabalho
(dispêndio produtivo de músculos, cérebro e nervos humanos), basta vermos a
naturalidade em que comparamos o valor do nosso trabalho ao pensarmos quanto vale
em dinheiro a hora de trabalho. Porém, seria o trabalho humano algo homogêneo,
igual, abstrato e passível de ser medido e assim valorado pelo conceito autônomo de
tempo?
Esta naturalização da equivalência de produtos do trabalho humano, coisas com
propriedades e finalidades distintas, onde o valor destas coisas é definido por uma
medida abstrata de um trabalho humano igual que nos chama a atenção para
pensarmos criticamente tal categoria. Isto porque, esta abstração transforma em igual,
justamente aquilo que é singular, a atividade de transformão da natureza, que nesta
sociedade denominamos por trabalho, é singular, advém de uma cadeia de relações
sociais, as quais seriam tudo menos igual e passível de se tornar algo mensurável
como o volume da água ou o peso de um objeto.
É desta forma que a cientificidade fundamentada na sucessão do tempo pensa as
transformações na sociedade, de maneira que os problemas que emergem ao longo
do desenvolvimento do capitalismo, os quais o as manifestões das suas
contradições, são encarados como uma questão que naturalmente podem ser
resolvidas com o maior desenvolvimento da própria ciência.
É desta forma que o movimento histórico é lido em uma sucessão de momentos de
crise e de não-crise, sendo aquele o momento que coloca em questão o que estava
sendo mal feito neste. Desta forma, os momentos de crise são encarados
positivamente como promotores da evolução da sociedade e não como a
manifestação da forma de ser do capitalismo, essencialmente crítico, onde o avançar
histórico significa o aprofundamento de sua própria crise e da aproximação de seu
limite lógico de reprodução.
É a partir desta concepção científica evolutiva que o trabalho é pensado pelos
defensores da sociedade do conhecimento, de maneira que as transformações
recentes do trabalho o um problema passível de resolver pela própria racionalidade
econômica, que se traduz em mais flexibilidade, empreendedorismo, eficiência etc. Um
desenvolvimento individual do trabalhador, o qual as universidades e o seu
conhecimento são responsáveis por fornecer no formato de competências a adquirir.
É neste sentido que reconhecemos a necessidade da constituição de uma
epistemologia alternativa para pensarmos como a universidade pode se relacionar com
as transformações da sociedade do trabalho, sem se fundamentar no método evolutivo
da ciência positiva.
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UMA EPISTEMOLOGIA DO CONTRABANDISTA PARA A CRÍTICA DA CIENTIFICIDADE
POSITIVA
Desta forma consideramos que para nos opormos a essa redutora cientificidade seria
necessária a construção de uma epistemologia que reconheça a fronteira do
pensamento positivo e sua concepção sucessiva de tempo, enquanto uma linha a ser
transgredida, e não enquanto uma barreira que delimita as possibilidades do
pensamento. O que constituiria, portanto, uma epistemologia do contrabandista
fundada na primazia da controvérsia (Correia, 2017), que possibilita promover novas
relações que complexificam ao invés de simplificarem, pois parte da assunção da
negatividade crítica que as contradições trazem.
Seria um caminho possível para avançarmos em direção a uma conceptualização da
relação entre o trabalho e os saberes científicos, pois reconhece a contradição
enquanto constituinte das relações sociais no capitalismo e que devem ser encaradas a
partir de sua negatividade. O que, em outros termos, significa dizer que não se trata de
buscar um ajustamento do trabalho, às abstrações positivas da racionalidade
econômica fetichista, reafirmando, assim, a redução do trabalho à sua dimensão de
mera mercadoria passível de aprimoramento pela aquisição de competências,
tornando-o melhor preparado para circular no mercado de trabalho.
Trata-se antes de buscar estabelecer uma relação em que o conhecimento, os saberes
científicos são assumidos enquanto uma relação social indissociável das experiências
dos indivíduos. Porém, esta relação somente rompe com as fronteiras que pretende
quando reconhece que os processos educativos/formativos que produz não são
necessariamente superiores e capazes de resolver absolutamente os problemas, mas
sim um momento de produção de novas relações entre os indivíduos, as quais não
necessariamente resolvem de maneira total as contradições, sendo assim superiores
às anteriores. Isto significa dizer que não se trata de uma cientificidade onde cada
saber produzido constitui um degrau no caminho da superação, mas sim um novo
caminho, tão cheio de contradição quanto os outros, mas que busca sempre avançar
sobre os seus próprios limites.
Uma perspectiva efetivamente contrabandista es sempre em busca de maneiras
diferentes de subverter os limites que se colocam à sua frente, seria uma concepção de
ciência que, de maneira invertida à ciência positiva, reconhece que as formas abstratas
de mediação social, dadas pela forma mercadoria são uma forma de dominação social
que necessita ser ultrapassada, mas que qualquer caminho que se abra necessita ser
criticamente refletido, reconhecendo a constante necessidade de buscar outros rumos,
pois assim, como bem sabe o contrabandista, os caminhos que encontra deixam os
rastros que o ligam diretamente ao lugar que quer deixar para trás.
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