Trabalho & Educação | v.28 | n.3 | p.161-178 | set-dez | 2019
alternativa, mesmo que restrita, da retomada da noção de artesão, de artífice, como
uma possibilidade para o resgate do papel do professor, mesmo sabendo dos limites
dessa perspectiva na atual conjuntura, mesmo sabendo da impossibilidade concreta de
sua efetivação no mundo capitalista contemporâneo que se consolida, cada vez mais,
a partir da crise e negação do trabalho vivo.
Para dar conteúdo e sentido a essa proposta, recupera-se uma passagem em que
Marx relata a perda do sentido artístico do trabalho no momento em que o trabalhador
– artesão – perde a determinabilidade do seu próprio trabalho e a ligação com seu
antigo mestre ao se transformar em trabalhador indiferente à sua forma, ao se
converter em trabalho abstrato.
Ser portador do trabalho enquanto tal, i.e, do trabalho como valor de uso para o capital,
constitui, portanto, seu caráter econômico; é trabalhador por oposição ao capitalista. Esse
não é o caráter dos artesãos, dos membros da corporação etc., cujo caráter econômico
reside justamente na determinabilidade de seu trabalho e na relação com um determinado
mestre etc. Por isso, essa relação econômica – o caráter que o capitalista e o trabalhador
portam como os extremos de uma relação de produção – é desenvolvida tanto mais pura e
adequadamente quanto mais o trabalho perde todo caráter de arte; a sua perícia particular
devém cada vez mais algo abstrato, indiferente, e devém mais e mais atividade
meramente abstrata, puramente mecânica, por conseguinte, indiferente à sua forma
particular; atividade simplesmente formal ou, o que dá na mesma, simplesmente física,
atividade pura e simples, indiferente à forma (MARX, 2011, p. 231).
Parece utópico reafirmar esse caráter do artesão, salientado por Marx,
para
asseverar uma alternativa para o trabalho docente. Mas é preciso reencontrar esse
sentido da atividade, reencontrar o interesse pela prática docente, realizá-la, também,
como um ato artístico e político de transformação humana
. Para tanto, conforme
Sousa Neto (2005), é preciso que o ofício docente represente um saber-fazer que
envolva pesquisa, estudo, criatividade e habilidades. É necessário também certo ritual
que exige compromisso e prazer. Para Hobsbawm (2005), o artífice precisa recuperar o
controle sobre seu trabalho sem precisar de mecanismos de supervisão direta, ele
precisa estar ciente do processo e de posse de suas ferramentas e meios de sua
produção. Para a realização de tal prática, é preciso também um espaço, uma “oficina”,
um lugar para as ferramentas e para a troca de conhecimento e saberes, espaço da
produção material, mas também não material – simbólica. O processo na oficina
envolve uma identificação com a prática e com os meios que possibilitam sua prática.
Essa identificação, segundo Sousa Neto, pode levar, no interior da sociedade, a uma
Outra passagem de Marx também aponta para essa cisão e suas consequências. “Nas cidades, a divisão do trabalho entre as
diferentes corporações era muito incipiente e, no interior dessas corporações, não era nem sequer realizada entre os diferentes
trabalhadores. Cada trabalhador tinha de estar habilitado a executar toda uma série de trabalhos e tinha de ser capaz de produzir tudo
aquilo que era possível ser produzido com suas ferramentas [...]. É por isso que, nos artesãos medievais, ainda se encontrava um
interesse em seu trabalho específico e pela habilidade em executá-los, o que muitas vezes podia elevar-se até um limitado sentido
artístico. Mas é por isso, também, que cada artesão medieval estava plenamente absorvido em seu trabalho, tinha com ele uma aprazível
relação servil e estava mais submetido a ele do que o trabalhador moderno, para quem seu trabalho é indiferente.” (MARX; ENGELS,
2007, p. 54).
Para Sennett (2012), o bom artífice deve ter em conta a importância do esboço como fator importante para o início de qualquer trabalho.
O esboço é aquilo que não está concluído, é o projeto aberto ao acaso, às intempéries do cotidiano. O bom artífice também tem de
acreditar no seu ofício e na realização de sua tarefa. Tem de buscar soluções abertas, não se pode tomar um problema isoladamente,
não se pode acreditar em “proporções perfeitas”, deve-se optar pela dúvida e pelo incerto. O bom artífice também deve evitar o
perfeccionismo, deve evitar ao autocentrismo, deve abrir a produção às imperfeições próprias da humanidade. Por fim, o bom artífice tem
de saber seu limite e o momento de parar. A persistência no trabalho que não encontra mais caminhos nem respostas pode fazer perder
todo o planejamento. O impulso para se fazer um bom trabalho não é nada fácil e é inseparável de seu lugar de trabalho (oficina). O
trabalho do artífice precisa fazer sentido, precisa provocar desejos, mas precisa estar aberto também para os fracassos e para as
decepções, pois estas fazem parte de qualquer ofício.