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Gramsci and the ethical foundation of the collective will
FAVARETTO, João Batista
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RESUMO
O presente artigo trata do fundamento ético necessário à formação da vontade coletiva, tal como fora
pensado por Antonio Gramsci (1891-1937), especialmente, nos Cadernos do rcere. Nosso objetivo
não é o de abordar aqueles que poderiam ser considerados os prinpios formais de uma nova ética,
mas o de explorar a relação entre ética e cultura, pois é a cultura que aparece, frequentemente, como
elemento fundador e motivador de uma vontade capaz de orientar a ação individual e coletiva em uma
determinada direção. Portanto, nosso objetivo é o de tratar dos meios pelos quais se a formão
dos indivíduos no sentido da constituição de uma vontade coletiva. Enfim, pretendemos mostrar como
Gramsci pensa a formação da vontade coletiva, tendo como refencia a importante mudança de
mentalidade introduzida na Modernidade pela Reforma Protestante.
Palavras-chave: Antonio Gramsci (18911937). Ética. Cultura.
ABSTRACT
The present article deals with the ethical foundation necessary for the formation of the collective will, as
Antonio Gramsci (1891-1937) thought, especially in the Prison Notebooks. Our goal is not to address
those that could be considered the formal principles of a new ethics, but to explore the relationship
between ethics and culture, it is the culture that often appears as a founding and motivating element of
a Will capable of guiding individual and collective action in a particular direction. Therefore, our
objective is to deal with the means by which the formation of individuals is formed in the sense of the
constitution of a collective will. Finally, we intend to show how Gramsci thinks the formation of the
collective will, having as reference the important change of mentality introduced in Modernity by the
Protestant Reformation.
Keywords: Antonio Gramsci (18911937). Ethic. Culture.
1
Doutor e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP), Bacharel e
Licenciado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas UNICAMP e Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Centro
Regional Universitário de E. S. do Pinhal SP. Professor da Rede Pública do Estado de São Paulo. E-mail:
<joaobatistafavaretto@gmail.com>.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo trata do fundamento ético necessário à formação da vontade coletiva,
tal como fora pensado por Antonio Gramsci (1891-1937), especialmente, nos Cadernos
do cárcere. Nosso objetivo não é o de abordar aqueles que poderiam ser considerados
os princípios formais de uma nova ética, mas o de explorar a relação entre ética e
cultura, pois é a cultura que aparece, frequentemente, como elemento fundador e
motivador de uma vontade capaz de orientar a ação individual e coletiva em uma
determinada direção. Portanto, nosso objetivo é o de tratar dos meios pelos quais se dá
a formação dos indivíduos no sentido da constituição de uma vontade coletiva.
Antes de qualquer coisa, um esclarecimento: não queremos, com essa abordagem,
afirmar a autonomia da cultura em relação a outros aspectos como a política e o mundo
da produção. Evidentemente, Gramsci não é um pensador preocupado
especificamente com a cultura ainda que dela muito tenha se ocupado. Há uma
articulação entre os diversos aspectos da sociedade e o pensador italiano é fiel aos
princípios marxistas, principalmente, no que se refere à articulação entre estrutura e
superestrutura. No entanto, tamm é evidente que ele tenha repensado tal
articulação, contestando o determinismo das estruturas materiais sobre as chamadas
superestruturas ideológicas, tendência até então dominante. Em oposição ao
determinismo aparece a noção de necessidade orgânica.
Nesse sentido, as respostas às transformações da estrutura, que exigem mudanças na
sociedade, não são respostas autoticas. Em outros termos, as transformões da
esfera produtiva interferem no modo de vida existente pela imposição de novas
exigências. A adaptação geral da sociedade é, de certo modo, forçada, mas não no
sentido de determinar exatamente o que deverá ou não ser feito. Respostas são
suscitadas, muitas aparecem, mas enquanto algumas são descartadas, outras
permanecem, ou seja, enquanto algumas são respostas meramente ocasionais, outras
são duradouras. Essas últimas é que, de fato, correspondem às reais necessidades
provocadas pelas transformações da estrutura e que Gramsci as denomina orgânicas.
Portanto, embora se trate de necessidade é preciso considerar que, em Gramsci, não
se trata de determinismo, até porque nunca há apenas uma única resposta possível. É
desse quadro atravessado por certo grau de indeterminação da vida individual e
coletiva que emerge a necessidade de uma reflexão sobre a ética.
Enfim, pretendemos mostrar como Gramsci pensa a formação da vontade coletiva,
tendo como referência a importante mudança de mentalidade introduzida na
Modernidade pela Reforma Protestante. Temática que remete à categoria da reforma
moral e intelectual. Essa categoria parece ter tido origem em Ernst Renan, mas chega
a Gramsci por meio de Georges Sorel. O próprio Gramsci, em uma nota, expõe
brevemente a origem da discussão sobre ela, mencionando uma corrente intelectual
contemporânea que sustentava o princípio de que a causa da fraqueza da nação e do
Estado italiano decorria da ausência de uma reforma protestante na Itália.
Segundo Gramsci, tal tese era sustentada por Missiroli que parecia tê-la tomado de
Sorel e esse, por sua vez, de Renan, que sustentava uma tese semelhante para a
Fraa. No caso de Missiroli, Gramsci entende que se tratava de uma simples dedão
menica das ideias críticas de Renan e de Sorel (Q 14, § 26, p. 13-13 bis). Em outra
nota, comenta sobre a necessidade de uma reforma moral e intelectual, mas como
crítica do Risorgimento enquanto movimento que teria ocorrido distante das massas
populares (Q 3, § 40, p. 22). No caso de Renan, como observa Marcos Del Roio, ele
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queria restabelecer o Antigo Regime, mas de modo atualizado. Propunha uma
monarquia constitucional inspirada naquela da Prússia/Alemanha, para quem a França
havia perdido recentemente a guerra. Mas o que de Renan parece ter exercido forte
admirão em Sorel foi o ensaio A reforma moral e intelectual, de 1871, no qual trata de
um recomeço para a França viável apenas em oposição à democracia, ao socialismo e
ao catolicismo. Sua proposta segue no sentido de resgatar o poder militar da França e
princípios aristocráticos. Uma reforma da educação seria indispensável na reciclagem
da classe dirigente. Completando o trabalho da educação, ao clero caberia adaptar o
senso comum das massas dominadas, promovendo seu conformismo. Da obra de
Renan, também parece ter interessado a Sorel o que ele escreveu sobre a história do
cristianismo.
Na alise de Sorel, cabe destaque ao sentido revolucionário da cisão do judaísmo que
gera o cristianismo, promovendo uma reforma intelectual e moral que altera o senso
comum (Del Roio, 2018, p. 5- 6). Observa ainda Del Roio que a categoria da reforma
intelectual e moral passa por várias reformulações e quando chega a Gramsci passa
por uma nova reformulação. Na versão gramsciana, uma reforma moral e intelectual
encontraria impulso no senso comum forjado pela experiência do trabalho. Aos
intelectuais favoráveis à reforma caberia o empenho de dar organicidade ao complexo
de ideias inicialmente desconexas que se apresentavam, reforçando o espírito de cio
frente à ordem existente (Del Roio, 2018, p. 8).
A categoria em questão é fundamental no arcabouço teórico gramsciano, pois o
pensador italiano chega a mencionar a respeito de uma concepção de filosofia da
práxis, termo usado para designar o marxismo, como reforma popular moderna. Além
disso, diz também que tal filosofia pressupõe todo um passado cultural, o
Renascimento, a Reforma Protestante, a filosofia ale e a Revolução Francesa, o
calvinismo, a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo que estão
na base de toda concepção de vida moderna. A filosofia da práxis seria, então, o
coroamento de todos esses momentos de reforma intelectual e moral que se
encontram dialeticamente no contraste entre cultura popular e alta cultura (Q 16, § 9, p.
13). Portanto, em um plano teórico mais amplo, o que es em questão é a própria
definição gramsciana de marxismo como filosofia teórica, mas com o objetivo de
embasar uma prática de vida ética e política.
DA CRÍTICA AO DETERMINISMO À ÉTICA
Como podemos observar no artigo de Aldo Tortorella, O fundamento ético da política
em Gramsci, o tema da ética em Gramsci ainda o recebeu a devida atenção. Na
verdade, nas referências sob o tema da moral sempre prevaleceu o aspecto da
moralidade individual do marxista italiano, isto é, o exame dos valores éticos presentes
na sua exemplar história de vida. Além disso, como ainda afirma Tortorella, a ética
sempre foi um tema marginal diante da ideia de política das tendências comunistas, isto
é, da política como luta pelo poder em nome de valores considerados como
conclamada e evidentemente válidos. Esses fatores desviaram a atenção do tema da
ética em Gramsci. Mas o estudo atento em torno da concepção gramsciana da
interdepenncia entre estrutura econômica e superestrutura cultural, a atenção
dedicada à sociedade civil, antes e além do Estado, e o conceito de hegemonia
contraposto à ideia de domínio mostram que uma estrada inteiramente original fora
inaugurada, ou seja, a da possibilidade da interveão de um sujeito transformador
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(Tortorella, 1998, p. 93-94). É essa estrada que conduz, inevitavelmente, a problemas
de ordem ética.
A necessidade de se colocar tais questões aparece, explicitamente, nos Cadernos do
cárcere. É o que se pode observar na seguinte nota:
O problema mais importante para se discutir neste parágrafo é o seguinte: se a filosofia da
pxis exclua ou não a história ético-política, ou seja, se reconheça ou não a realidade de
um momento da hegemonia, se dê importância à direção cultural e moral e considere
realmente comoapancias” os fatos da superestrutura. Pode-se dizer que não apenas a
filosofia da práxis não exclui a história ético-política, mas que, pelo contrário, a fase mais
recente do desenvolvimento desta concepção consiste de fato da reivindicação do
momento da hegemonia como essencial na sua concepção estatal e na “valorização” do
fato cultural, da atividade cultural, de um fronte cultural como necessário ao lado daquele
meramente econômico e político (Q 10, § 7, p. 45ª-45, grifo do autor).
Como vemos, a emergência de questões éticas está diretamente relacionada a uma
crítica à concepção determinista da estrutura material de produção sobre as
superestruturas ideológicas, ou seja, à crítica da consideração dos fatos
superestruturais como mera aparência. Podemos dizer que a principal preocupação de
Gramsci era com as consequências práticas da conceão determinista do processo
histórico. Em outra nota, quando analisa a obra de Rosa Luxemburgo, traduzida para o
italiano sob o título de Lo sciopero generale- il partito e i sindacati, diz que ela não havia
dado um tratamento adequado aos elementos vontade e organização. Diz ele que:
O elemento econômico imediato (crises, etc.) é considerado como a artilharia campal, que
na guerra abria uma passagem pela defesa inimiga, passagem suficiente para que as
tropas invadissem e obtivessem um sucesso definitivo (estratégico) ou, ao menos, um
sucesso importante na diretriz da linha estragica. Naturalmente, na ciência histórica, a
eficácia do elemento econômico imediato é entendida como muito mais complexa do que
aquela da artilharia pesada na guerra de movimento, porque esse elemento era concebido
como tendo um duplo efeito: 1) de abrir passagem pela defesa inimiga após tê-la derrotado
e feito com que ela perdesse a confiaa em si mesma, na sua força e no seu futuro em
relação ao inimigo; 2) de organizar, instantaneamente, as próprias tropas, de criar os
quadros ou, ao menos, de colocar os quadros existentes (elaborados até então pelo
processo histórico geral), imediatamente, nos postos antes ocupados pelas tropas
derrotadas; 3) de criar, instantaneamente, a unidade ideológica da identidade dos fins a
serem alcançados. Era uma forma de férreo determinismo economicista, com a agravante
de que os seus efeitos eram concebidos como rapidíssimos no tempo e no espaço; por
isso, tratava-se, verdadeiramente, de um misticismo histórico, da expectativa de uma
fulguração milagrosa (Q 13, § 24, p 18, grifo do autor).
Para Gramsci, uma clara consciência dos fins, ou uma vontade capaz de dirigir o
processo de fundão de uma nova sociedade, não nasce espontaneamente ou
imediatamente a partir da crise da sociedade existente. Dessa forma, o economicismo,
uma das formas de fatalismo ou determinismo, provocava um efeito desastroso sobre a
possibilidade de emancipação de uma classe subalterna. Essa ideologia, ao separar o
elemento econômico do político e ao acentuar a imporncia do primeiro sobre o
segundo, levava as classes subalternas a assumirem a ideologia das classes
dominantes, isto é, o liberalismo. Ao assumir que a economia funcionava por suas
próprias leis, isto é, independentemente da vontade coletiva, não poderia sequer
imaginar a possibilidade de sair de sua condição e se tornar dirigente por um ato de sua
vontade. Para Gramsci, o economicismo estava fundado num erro teórico, a saber:
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[...] sobre a distinção entre sociedade política e sociedade civil, que de distinção
metodológica tornou-se distião orgânica. Assim, afirma-se que a atividade econômica
era própria da sociedade civil e que o Estado não deveria intervir na sua regulamentação.
Todavia, assim como na realidade efetiva sociedade civil e Estado se identificam, é
necessário levar em conta que também o liberalismo é uma regulamentação de caráter
estatal, introduzido e mantido por via legislativa e coercitiva: é um fato da vontade
consciente dos próprios fins e não a expressão espontânea, autotica do fato
econômico. Portanto, o liberalismo é um programa político destinado a mudar, enquanto
triunfa, o pessoal dirigente de um Estado e o programa econômico do próprio Estado, isto
é, a mudar a distribuição da renda nacional. Diverso é o caso do sindicalismo teórico
enquanto se refere a um grupo subalterno, o qual, com essa teoria, fica impedido de se
tornar classe dominante, de se desenvolver para além da fase econômico-corporativa para
se elevar à fase de hegemonia ético-política na sociedade civil e dominante no Estado (Q
13 § 18, p. 10ª 11, grifo do autor).
A distinção entre sociedade civil e política servia perfeitamente aos interesses das
classes dirigentes, pois visava apenas a rotação dos partidos dirigentes no governo.
Seu objetivo, portanto, não era o de promover grandes transformações na sociedade,
menos ainda o de fundar uma nova ordem. Por isso, o sindicalismo deveria se colocar
numa outra perspectiva, pois a independência e autonomia do grupo subalterno, do
qual se dizia representante, era, na verdade, sacrificada em favor da hegemonia do
grupo dominante.
Segundo Gramsci, o fatalismo, que um dia fora uma importante ideologia
revolucionária, se transformou num verdadeiro antídoto contra as próprias forças
revolucionárias. Por isso, podia conviver pacificamente com as ideologias das classes
dominantes e até mesmo se tornar uma forma de absorção daquelas forças em
benefício do sistema vigente. Assim, Gramsci investe contra a velha ideologia da
esquerda que não mais correspondia às necessidades de transformação da realidade.
Neste sentido, diz ele:
Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecanicista foi um aroma
ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religo e de excitante (da natureza
dos narcóticos), que se tornou necesrio e justificado historicamente pelo caráter
subalterno de determinados extratos sociais. Quando ainda não se tinha uma iniciativa na
luta e a própria luta se identificava com uma série de derrotas, o determinismo menico se
tornou uma força formidável de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e
obstinada... Eis porque é necessário demonstrar a futilidade do determinismo mecânico,
que, se é explicável como filosofia ingênua da massa e apenas enquanto tal, como
elemento intrínseco de força, quando é assumido pela filosofia reflexiva e coerente por
parte dos intelectuais, torna-se causa de passividade, de imbecil autossuficiência, e isto
sem esperar que o subalterno tenha se tornado dirigente e responvel (Q 11, § 12, p. 17
bis-18 bis, grifo do autor).
A grande preocupação de Gramsci era com a conseqncia do fatalismo que, na
prática, produzia um estado de passividade, de expectativa de que algo viesse a
acontecer independentemente da vontade e da iniciativa de quem quer que seja,
mudando o curso da história. Na verdade, não significa que não exista nenhum grau de
consciência e de vontade na ideologia determinista, mas, como afirma Remo Bodei,
tanto o fatalismo quanto o sorelianismo, ideologias fortes na época de Gramsci,
mantinham a vontade coletiva numa fase primitiva, passiva, não a mobilizavam como
força consciente. A vontade não podia ser ativada, porque o objetivo distante havia se
tornado politicamente invisível ou indiferente e, então, o movimento se tornava tudo e o
fim não era nada. O fatalismo era a expressão dessa passividade defensiva, porque
prevalecia sobre a consciência do proletariado a iniciativa ou a hegemonia das classes
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dominantes (Bodei, 1978, p. 76-78). Como ainda afirma Bodei, assim como em Weber
ou Croce, também em Gramsci não existe mais o teleologismo espontâneo ou natural
da história e da economia, que caracterizou o idealismo clássico alemão e a economia
política clássica. Gramsci o substitui pelo projeto consciente, portanto, a construção
aparece como adequação e conformidade racional ao fim, isto é, a vontade aparece
como intervenção ordenadora do mundo. A relevância da vontade nasce, exatamente,
do fato de que não existe teleologismo espontâneo, força das coisas, concatenação
fatalista ou naturalista dos acontecimentos. Atrás da história não há umamão invisível
que empurra os homens e as coisas, mas há a capacidade de decidir, de conhecer, de
agir de modo a mudar as relações de força (Bodei, 1978, p. 87). Se um fim não existe
por si mesmo, porque é obra de uma vontade, um outro fim só pode ser vislumbrado
na medida em que uma nova vontade se torna autônoma. Segundo Bodei, Gramsci
efetivamente põe em evidência a complexidade e a desagregação dos
acontecimentos, minimizando e reduzindo o momento estrutural a função tendencial, a
impulso. Por trás dos acontecimentos não se pode supor nada de estático, nada de
objetivamente fixo, mas apenas linhas gerais, funções geradoras do movimento (Bodei,
1978, p. 92). Em outras palavras, objetivamente, existem apenas tenncias que
deixam em aberto caminhos possíveis.
A RELÃO ENTRE ESTRUTURA E SUPERESTRUTURA E A FUNÇÃO DAS
IDEOLOGIAS
O determinismo econômico e o fatalismo da história, que dominaram o cenário do
marxismo da época de Gramsci, têm origem em uma interpretação das teses do
materialismo histórico. Apenas mencionando um fato, que de qualquer modo é
conhecido, durante a vigência da II Internacional (1889-1916) surge uma interpretação
que se torna então dominante, ou seja, a de que o processo histórico é dirigido por leis
próprias e objetivas que independem da vontade dos indivíduos e de que a
subjetividade, por sua vez, seria a consequência e o a causa desse processo.
Qualquer tentativa de interferência nas leis desse processo seria interpretada
negativamente como reão que, consciente ou inconscientemente, distorcia os fatos
tanto no sentido de evitar a completa destruição da velha ordem, mantendo
dissimuladamente interesses particulares ou de classe, quanto no de inventar uma
falsa revolução. Além disso, entendia-se que havia o risco de deturpar a nova
subjetividade que haveria de nascer, pois ela deveria se formar no curso dos
acontecimentos como resultado do processo dialético de contradição da sociedade
capitalista. Assim, uma verdadeira revolução não poderia jamais ser obra do arbítrio,
porque ela não pode, simplesmente, ser inventada. Em outros termos, uma verdadeira
revolução não é obra do arbítrio dos homens, porque ela é consequência necessária
de um processo que tem suas próprias leis. A partir de certo momento, essa
concepção das teses do materialismo histórico também se torna a versão oficial da III
Internacional (1919-1943)
2
.
2
Como afirma Perry Anderson, Marx nunca sistematizou as teses do materialismo histórico. É Engels quem se encarrega dessa tarefa,
principalmente, com a sua obra o Anti-Dühring (1878) (Anderson, 2004, p. 26). Por isso, a responsabilidade pela concepção determinista
do processo revolucionário é geralmente imputada a ele. Como podemos observar no Precio da Segunda Edição do Anti-Dühring,
Engels apresenta a referida obra como umaexposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida
por Marx e por [ele], numa série de donios bastante vastos (Engels, 1979, p. 9). Trata-se, segundo suas palavras, de uma
sistematização dos fundamentos gerais da concepção materialista de Marx com a qual ele havia colaborado. Podemos dizer que essa
obra representa um grande esforço no sentido de encontrar as leis que dominam tanto o pensamento quanto a natureza. A partir disso, a
dialética é entendida, por ele, como o estudo das leis gerais que presidem à dinâmica e ao desenvolvimento da natureza e do
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Muitas críticas surgiram em relação a essa versão das teses do materialismo histórico,
acusando-a de concepção fatalista da revolução comunista e Gramsci é um dentre
outros marxistas que segue essa tendência
3
. O fatalismo ou determinismo surgem de
uma forma de conceber a relação entre as estruturas materiais de produção e as
superestruturas ideológicas. Em oposição à concepção determinista da estrutura sobre
a superestrutura, Gramsci apresenta a concepção de relação orgânica, introduzindo a
ideia de determinão reproca e não mais de determinão unilateral. Nesse sentido,
entende Gramsci que cada época hisrica corresponda à formação de um bloco
histórico, que é, exatamente, o estabelecimento de uma relação ou soldagem entre
estrutura material e superestrutura ideológica. No entanto, também entende que esta
soldagem não ocorra automaticamente pela determinão da estrutura sobre a
superestrutura. Como afirma Hugues Portelli, em seu ensaio Gramsci e o bloco
histórico, a atribuição da primazia ao momento estrutural ou, pelo contrário, ao
momento superestrutural de um determinado bloco histórico deriva de diferentes
interpretações da obra de Marx e não da de Gramsci. Para o pensador italiano, a
relação entre estrutura e superestrutura, num bloco histórico, é dialética, pois ambos
são igualmente determinantes, ou seja, determinam-se reciprocamente. Tanto que a
fraqueza ou importância da superestrutura pode, inclusive, limitar a evolução da
estrutura, mantendo o antigo bloco histórico ou não superando o nível trade-unionista.
(Portelli, 1990, p. 55-56) É com a concepção de bloco histórico que Gramsci evita tanto
o determinismo mecânico da estrutura sobre a superestrutura, como defendia a
ortodoxia marxista, quanto a idealização da cultura como se fosse ela o motor da
história. A propósito, diz ele sobre isso que:
A análise dessas afirmações creio que leve a reforçar a concepção debloco histórico, no
qual, de fato, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias a forma, distinção entre
forma e conteúdo que é meramente didática, porque as forças materiais não seriam
concebidas historicamente sem a forma e as ideologias seriam caprichos individuais sem
as foas materiais (Q 7, § 21, p. 62, grifo do autor).
Pensando na relação orgânica entre um novo modo de vida de uma sociedade, que se
impõe pelas transformões do mundo da produção, e a necessidade de um modo de
pensar condizente com tal situação, podemos dizer, eno, que uma nova concepção
do mundo se faz necessária, mas essa não pode ser confundida com o mero ato de
uma vontade que se julga suficientemente capaz de interpretar as necessidades
históricas do momento. Se uma concepção do mundo não corresponder às
pensamento (Engels, 1979, p. 120). Portanto, a dialética é entendida como uma lei universal e cienfica. A principal preocupação de
Engels era a de conferir aos pressupostos materialistas um caráter científico, que também era uma preocupação do próprio Marx. Mas
uma consequência importante da equivalência entre mundo natural e humano é a da ausência da relação dialética entre sujeito e objeto.
Na natureza não há um sujeito. O resultado desse esforço leva à conclusão de que a mesma objetividade que se faz presente nas leis da
natureza também se faz presente nas leis do mundo humano. Secundária se torna, então, a importância da subjetividade e da vontade no
processo revolucionário. Para Merleau-Ponty, a dificuldade sobre o assunto já vem da própria obra de Marx que, a partir de determinado
momento, se distancia de uma série de questões que levam a entender que o processo histórico é um processo que depende mais de
fatores objetivos que subjetivos (Merleau-Ponty, 2006, p. 77).
3
Como menciona Spriano, Gramsci, em seu artigo La rivoluzione contro il capitale, entende que os bolcheviques haviam superado a
interpretação menica e determinista da tradição socialdemocrata, que ele define como a teoria da inércia do proletariado (Spriano, 1975,
p. 16). Para Michel Löwy, o marxismo de Gramsci passa pela mediação de um hegelianismo antipositivista (Croce e Labriola) e de um
voluntarismo ético-rontico (Sorel e Bergson). A referência ao pensamento idealista, principalmente a Bergson e Croce, é nos anos
1917-1918 um meio para se opor à ortodoxia positivista, cientificista e econômico-determinista de Claudio Treves e Filippo Turati,
representantes oficiais do marxismo da Segunda Internacional na direção do socialismo italiano (Löwy, 1990, p. 97-110). Também
Tortorella comenta que Gramsci fica sensibilizado pelos textos de Bergson a que tivera acesso, principalmente com a ruptura
antipositivista e antidogmática, mas faz ressalvas quanto aos riscos de que tais ideias possam desembocar em um espontaneísmo das
massas (Tortorella, 1998, p. 96).
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necessidades históricas, ou seja, se ela não for orgânica, ela jamais conseguirá criar
rzes entre as massas e se tornar a filosofia daquela época. Nesse caso, o modo de
vida que se impõe somente poderá ser mantido por via coercitiva, pois não se formou a
necessária convicção que deveria susten-lo. Aos olhos das massas, o novo modo de
vida aparecerá como meramente arbitrário. Diz Gramsci a respeito disso:
É evidente que uma construção de massa de tal gênero não pode ocorrer
arbitrariamente, em torno de uma ideologia qualquer, pela vontade formalmente
construtiva de uma personalidade ou grupo que se proponha pelo fanatismo das suas
pprias convicções filoficas ou religiosas. A adesão ou não da massa a uma ideologia é
o modo pelo qual se verifica a ctica real da racionalidade e historicidade dos modos de
pensar. As construções arbitrárias o mais ou menos rapidamente eliminadas pela
competição histórica ainda que, às vezes, por uma combinação de circunstâncias
imediatamente favoráveis gozem de certa popularidade, enquanto construções que
correspondem a exigências de um período histórico complexo e orgânico acabam sempre
se impondo e prevalecendo mesmo que atravessem muitas fases intermediárias, cuja
afirmação ocorra somente por combinações mais ou menos bizarras e heteróclitas (Q 11,
§ 12, p. 20 bis, grifo do autor).
Apenas aquelas ideologias que vão ao encontro da necessidade de orientar os
indivíduos de acordo com as transformações da sociedade é que, de fato, criam rzes
e se tornam uma nova concepção do mundo, uma nova Weltanschauung. Isso
acontece e pode ser atestado quando ocorre a adesão das massas a elas. Diz ainda
Gramsci sobre as ideologias que:
Enquanto historicamente necesrias elas têm uma validade que é psicológica, elas
organizam as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movem,
adquirem consciência de sua posição, lutam etc. Enquanto arbitrárias não criam nada
além de movimentos individuais, polêmicas etc. (Q 7, § 19, p. 61 bis, grifo do autor).
Como observa Portelli, ideologia orgânica é aquela necessária à estrutura, porque
organiza os grupos sociais de acordo com as necessidades históricas do momento.
Por isso, movimentos superestruturais orgânicos são aqueles que adquirem um caráter
permanente ou duradouro, distinguindo-se dos demais que são passageiros (Portelli,
1990, p. 48).
Em algumas notas, Gramsci trata do senso comum que nada mais é do que a
naturalização de certa perceão da realidade, e de sua importância na fundação de
uma ordem social. É o que se pode observar na seguinte passagem:
Encontram-se frequentemente em Marx referências ao senso comum e à solidez de suas
crenças. Trata-se, porém, de referências não à validade do conteúdo dessas crenças, mas
de fato à sua solidez formal e, portanto, à sua imperatividade quando produzem normas de
conduta (Q 11, § 13, p. 24-24 bis).
É o senso comum que, de fato, produz normas que se transformam em
comportamento, instituindo um modo de vida que dá unidade a uma sociedade.
Portanto, se uma nova cultura ou concepção do mundo não se tornar senso comum,
ela não tem forças para criar um novo indivíduo, para instituir novos comportamentos e
práticas compaveis com as necessidades da ordem emergente. Por isso, o grande
problema na constituição de uma nova ordem é o da necessidade de desagregar a
aparência de naturalidade que a velha ordem adquire aos olhos dos indivíduos. Nesse
sentido, o senso comum existente precisa ser superado. Sobre isso, observa Gramsci
que: Quando na história se elabora um novo grupo social homogêneo, elabora-se
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também, contra o senso comum, uma filosofia homogênea, isto é, coerente e
sistemática (Q 11, § 13, p. 22). Além disso, também afirma que: Na realidade, em
todos os casos, o resultado é o de superar um senso comum para criar outro mais
aderente à concepção do novo grupo dirigente (Q 11, § 13, p. 23-23 bis). No entanto,
não podemos perder de vista que uma filosofia ou cultura só se universaliza quando, de
fato, reflete as necessidades históricas do momento, ou seja, quando é orgânica,
porque segue na dirão de resolver a contradição entre estrutura e superestrutura
gerada em determinado momento histórico. Somente a cultura que atenda a essa
necessidade pode se universalizar e se transformar em um novo senso comum. Em
outros termos, atendendo a essa demanda, uma cultura pode se tornar consciência de
todos os indivíduos e não apenas a de uma classe em particular. É nesse sentido que
uma cultura se torna o elemento fundador e motivador de uma vontade capaz de
orientar a ação individual e coletiva em uma determinada dirão. Nesse sentido,
observa Gramsci que:
[...] nesse ponto põe-se o problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda
filosofia que tenha se transformado num movimento cultural, numareligião, numa, isto
é, que tenha produzido uma atividade ptica e uma vontade na qual esteja contida como
premissa teórica implícita... o problema de conservar a unidade ideológica de todo o bloco
social que, de fato, é por aquela determinada ideologia cimentado e unificado (Q 11, § 12,
p. 13 bis-14, grifo do autor).
O senso comum é equiparado à fé religiosa no sentido de instrumento capaz de
produzir uma conduta como consequência da iniciativa do próprio indivíduo, isto é,
como consequência de sua capacidade de discernimento entre o que deve ou não ser
feito a partir daquilo que fora assumido como verdade, consciência ou forma de pensar
naturalizada. Como observa Nicola Badaloni, para Gramsci, as ideologias são práticas
de vida conformes a uma conceão do mundo, ou religiões no sentido croceano
(Badaloni, 1978, p. 21-22). É dessa forma que o novo modo de vida, imposto pelas
necessidades históricas, pode deixar de ser mantido pela coerção ou por outros meios
artificiais e pode ainda deixar de ser entendido apenas como pressão social arbitrária.
Pode parecer estranho falar apenas de necessidade de adaptão ao invés de
resistência às mudaas, mas, na perspectiva em que se coloca Gramsci, posicionar-
se contra as mudanças seria o mesmo que andar na contramão da história e desejar
que a marcha do processo de emancipação humana aconta sem uma base real. O
que permite que o processo de emancipão avance cada vez mais é o progresso
geral da sociedade que tem seu alicerce no desenvolvimento do mundo da prodão.
A REFORMA PROTESTANTE E O ETHOS EMPREENDEDOR
Como observa Badaloni, as ideologias que assumem a consistência de preconceitos
populares não nascem casualmente. Elas são expressões de necessidades estruturais
profundas, que não se exprimem diretamente como imaginava a aceão mecanicista
do marxismo, mas assumem o aspecto de solicitações ideológicas permanentes,
capazes de influir duradouramente sobre a prática. Outro dado importante é que essas
solicitações nem sempre dão lugar a ideologias laicas, mas com frequência, a
ideologias religiosas em sentido estrito. Um desses exemplos é o da Reforma
Protestante. Ideologias como essa são formidáveis solicitadores de ão (Badaloni,
1979, p. 22). Nesse sentido, o mais surpreendente no que diz respeito à Reforma foi o
fato de ter produzido, para além dos limites do mundo religioso, um espírito de iniciativa
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que muda radicalmente o modo de vida tradicional. Essa foi, em suma, a análise do
sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) sobre a Reforma Protestante. Em uma nota
dos Cadernos, Gramsci menciona a obra de Weber A ética protestante e o espírito do
capitalismo, criticando a falta de conhecimento dessa grande obra da parte de um
discípulo de Benedetto Croce, De Ruggiero, e o apelo especulativo presente em uma
de suas resenhas, na qual critica o marxismo, afirmando ser providencial a própria
contradição de uma ideologia estritamente, aridamente materialista que, embora
negando a exisncia de grandes recursos interiores na humanidade, prova o contrário,
se convertendo ela mesma, na prática, na paixão de um grande ideal. Ao apelo
especulativo de De Ruggiero, na explicão do mencionado fato, Gramsci opõe a
explicação de Weber de que teorias como a da Graça e da Predestinação, que mesmo
tendo um contdo totalmente espiritual, foram capazes de dar origem, no mundo
concreto, a um grande espírito de iniciativa. Diz Gramsci na mencionada nota:
A posição da qual fala De Ruggiero pelo qual uma ideologia “estritamente etc., dá lugar na
ptica a uma paio do ideal etc., não é nova na história, e deve ser explicada de modo
diverso daquele dado por De Ruggiero. Pode-se mencionar a teoria da Predestinação e da
Graça própria dos protestantes e ao fato de ter dado lugar a uma vasta expansão do
espírito de iniciativa... Cf. Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (Q 8, §
231, p. 76 bis, grifo do autor).
É exatamente no sentido mencionado nessa nota que abordaremos o tema da
Reforma Protestante, ou seja, sua importância na mudaa da mentalidade tradicional
e no comportamento geral dos indivíduos.
Segundo Weber, dentre as condições necessárias ao desenvolvimento do capitalismo
está a formação de um determinado ethos, cujo bem supremo é a obtenção cada vez
maior de dinheiro combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da
vida. O indivíduo é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como
finalidade última de sua vida, sem que tal aquisição tenha por objetivo diretamente a
satisfação de suas necessidades materiais. Este é, para Weber, o princípio orientador
do capitalismo moderno. Esse ethos é a expressão de um tipo de sentimento que está
intimamente ligado a certas ideias religiosas (Weber, 1967, p. 33). Ganhar dinheiro,
dentro da ordem econômica, desde que legalmente, é a expressão da virtude e da
eficiência de uma vocação, do cumprimento de um verdadeiro dever moral. Não se
trata da simples mudança de mentalidade no sentido quantitativo em relão à auri
sacra fames, pois o moderno burguês não é mais ávido pela riqueza do que qualquer
outro indivíduo da história. Na verdade, não é da exasperação da ânsia por riqueza,
mas de um controle racional sobre ela que nasce o capitalismo moderno (Weber, 1967,
p. 36).
O que de fato ocorre no advento do capitalismo moderno é a mudaa qualitativa no
sentido de que a busca por riqueza passa a ser encarada como o cumprimento de um
dever moral que se realiza, obedecendo a um plano racional de busca sempre
renovada da rentabilidade. E para que o capitalismo moderno se tornasse um
fenômeno de massa, como de fato aconteceu, foi necessária a mudança qualitativa da
mentalidade não só do empresário capitalista, mas também do trabalhador. Ambos
compartilham do mesmo ethos, pois também o trabalho é encarado como vocação,
como dever moral que obedece a um plano racional. A razão de se trabalhar mais não
é pelo objetivo de obter maiores recursos para uma vida mais confortável ou luxuosa,
mas pela simples razão de que, sendo possível, é um dever trabalhar mais, produzir
mais e se tornar mais eficiente.
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Também os trabalhadores se tornaram peças fundamentais para o capitalismo
moderno, não por terem sido estimulados por melhores salários ou por qualquer outra
coisa do gênero, mas por uma mudança de mentalidade que os levou a encarar a sua
função a partir de um novo ângulo (Weber, 1967, p. 39). Sem a constituição de uma
nova mentalidade, o capitalismo continuaria a existir em sua forma especulativa e
aventureira, totalmente irracional. Essa transformação qualitativa só se tornou possível
quando um ideal ascético, de origem religiosa, tem seu foco deslocado do mundo
espiritual para o mundo terreno, ou, como diz Weber, quando o ascetismo cristão
adentra no mercado da vida, fecha atrás de si a porta do mosteiro, penetrando na rotina
diária com sua meticulosidade amoldando-a a uma vida racional (Weber, 1967, p. 109).
O significado do trabalho como vocação ou como cumprimento de um dever moral foi
introduzido, segundo Weber, por Lutero. Originalmente, o termo vocação significava
cumprimento de uma tarefa ordenada ou sugerida por Deus. O sentido moderno, de
cumprimento de um plano de vida, vem da interpretação de Lutero das Sagradas
Escrituras e é um produto da Reforma. É esse significado que passa a fazer parte da
linguagem cotidiana dos povos protestantes. Certa valorização do trabalho cotidiano
secular já havia acontecido em outros tempos, tanto na Antiguidade baixa helenística
quanto na Idade Média, mas a valorização do cumprimento do dever dentro das
profissões seculares é algo de fato novo. É com a Reforma, particularmente com
Lutero, que o trabalho secular cotidiano adquire um significado religioso. Dessa forma,
a superação da moral secular pela ascese monástica, como a única maneira de viver
aceitável para Deus, é substituída pelo ideal de cumprimento das tarefas do século
impostas ao indivíduo. É no cumprimento dessa tarefa, segundo a perspectiva de
Lutero, que se realiza a vocação ou o cumprimento da vontade de Deus. A vida
monacal passa a ser encarada não apenas como destituída de qualquer valor e
justificativa perante Deus, mas como produto de uma egstica falta de carinho que
afasta o homem das tarefas deste mundo (Weber, 1967, p. 52-53). Mas, para o
sociólogo alemão, com Lutero, o conceito de vocação ainda permanece na sua forma
tradicional (Weber, 1967, p. 56-57). A relação com o espírito do capitalismo é indireta e
sua contribuição se dá dentro dos limites da valorizão moral do trabalho secular em
contraposição à concepção católica que não atribuía nenhum significado moral ou
religioso ao trabalho.
É com Calvino que coma um processo que segue definitivamente na direção de um
apego ao mundo e de uma valorização da vida secular cotidiana como um dever. A
questão fundamental, que põe em curso o processo de valorização da vida secular, é a
doutrina da Predestinação. Para Weber, é discutível que tal doutrina seja ou não
fundamental à Igreja Reformada, mas é certo que ela seja seu dogma mais
característico. Segundo a doutrina da Predestinação, o homem, pela sua queda em
estado de pecado, perdeu completamente sua capacidade de se salvar, pelas suas
próprias forças, da condenação eterna. Por vontade de Deus, alguns homens e anjos
são predestinados à vida eterna enquanto outros o são à morte eterna. Tudo para a
manifestação de Sua glória e jamais por mérito de alguém. Na verdade, antes mesmo
da obra da criação, Deus definiu os escolhidos. À razão da escolha nenhum homem ou
qualquer criatura tem acesso, pois se trata da livre manifestação da vontade de Deus e
de sua Graça. Pela nossa insignificância, só podemos saber de alguma coisa a esse
respeito se Deus nos revelar. Portanto, sendo a salvação um dom gratuito, não cabe
conquistá-la por meio de boas obras ou mesmo pela fé. Deus concede a Graça da
salvação a quem bem entender. Pela própria perfeição de Deus, Seus desígnios foram
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desde sempre estabelecidos para toda a eternidade. Assim, achar que Ele poderia
mudá-los ou que o homem pudesse neles intervir, seria o mesmo que admitir a Sua
imperfeição. Desde Santo Agostinho a Graça é o produto único de um poder objetivo
que não pode ser atribdo a qualquer valor pessoal.
Segundo Weber, a patética desumanidade deste pensamento teve, certamente, uma
consequência para a vida da geração que se rendeu à sua magnífica consistência: o
sentimento de uma inacreditável solidão interna do indivíduo. O indivíduo está
condenado a seguir sozinho o seu destino rumo à eternidade. Ninguém poderia ajudá-
lo a conquistar a Gra de Deus, nem o sacerdote nem os sacramentos, pois os eleitos
já tinham sido escolhidos. Esta completa eliminação da salvação por meio da Igreja e
dos sacramentos é o que diferencia o calvinismo do luteranismo. Para Weber, aquele
processo histórico-religioso da eliminação da magia do mundo, que começou com os
velhos profetas hebreus e com o pensamento científico helenístico, chega, então, à sua
conclusão lógica: todos os meios mágicos de salvação são repudiados pelo calvinismo
como superstição e pecado. Assim, o mesmo medo da morte e do além, que orienta
um não-calvinista à auto-humilhão e penitência para conquistar a Graça da salvação,
orienta um calvinista a uma sistetica luta com a vida, pois o mundo existe para a
glorificão de Deus e somente para este fim. A atividade social do cristão no mundo é,
então, uma atividade in majorem gloriam dei. Este caráter é partilhado pelo labor
especializado em vocações e justificado em termos de amor ao próximo. Se o amor ao
próximo era antes uma simples sugestão indeterminada, para o calvinista se torna algo
determinado e característico de seu sistema ético, ou seja, o amor ao próximo,
praticado para a glória de Deus e não em benecio da carne, se expressava no
cumprimento das tarefas cotidianas com um caráter objetivo e impessoal em prol da
organização racional do mundo. Esta organização era entendida como destinada por
Deus em benefício da humanidade e o esforço a serviço dela uma forma de promover
a glória de Deus (Weber, 1967, p. 74-75).
O mundo e a vida tinham um significado muito mais claro para o calvinismo do que
para outros ramos do cristianismo. Desse modo, sua angústia não derivava de um
questionamento sobre o sentido da vida, mas de como estar seguro de que se é um
dos eleitos. Onde quer que a doutrina da Predestinação tenha sido mantida, não se
pode suprimir a questão referente à existência de algum critério infalível pelo qual a
filiação aos electi pudesse ser reconhecida. Daí, eno, o dever de cada um de se
considerar como eleito e de combater a dúvida sobre essa consideração, pois é
reveladora de uma falta de fé, consequentemente, de uma graça imperfeita. Uma
intensa atividade profissional é considerada o meio mais adequado de afugentar as
dúvidas religiosas e de dar uma certeza sobre a Graça. Ao invés de produzir homens
humildes e penitentes, como o luteranismo, o calvinismo produziu homens
autoconfiantes (Weber, 1967, p. 76-77).
O calvinismo repudia tanto a piedade emocional puramente interior do luteranismo
quanto a fuga quietista do mundo de Pascal. Devido à absoluta transcendentalidade de
Deus, para os calvinistas, a comunidade dos eleitos apenas se torna perceptível nas
obras de Deus realizada por meio de seus fiéis. Portanto, a fé tem de ser provada por
seus resultados objetivos para proporcionar uma base segura para a certitudo salutis
(Weber, 1967, p. 78-79). Assim, mesmo que todas as obras humanas permaneçam
insignificantes diante da grandiosidade de Deus e inúteis no sentido de promover a
salvação, são consideradas indispensáveis como sinal da escolha de Deus. Portanto,
princípios de origem religiosa, independentes de qualquer motivação econômica, estão
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na base do ethos do novo modo de vida. A combinação de dois fatores, ou seja, um
comportamento fundado em princípios religiosos e um modelo ainda tradicional, mas já
racional de empresa, dá origem ao moderno capitalismo no Ocidente.
Gramsci entende que o processo de formação de uma nova civilizão deva ser
comparado àquilo que historicamente ocorreu na ocasião do movimento da Reforma.
Diz ele:
O nó histórico-cultural a ser resolvido no estudo da Reforma é o da transformação da
concepção da graça, que logicamente deveria levar ao ximo de fatalismo e
passividade, em uma prática real de empreendimento e iniciativa em escala mundial que
foi [ao invés] a consequência dialética que formou a ideologia do capitalismo nascente (Q
7, § 44, p. 74 bis, grifo do autor).
Não se trata, obviamente, de reproduzir a Reforma Protestante em lugares onde ela
não teria acontecido, mas da necessidade da ocorrência de uma experiência
semelhante. O que importa é que a Reforma é, aos olhos de Gramsci, uma pica
ideologia orgânica, porque, independentemente de sua origem, ela foi ao encontro de
necessidades reais, oferecendo uma orientação prática para a vida diante das
necessidades de desenvolvimento do mundo da produção e do trabalho. Se fosse
dada à teologia da Graça e da Predestinação alguma interpretação diferente daquela
dada por Lutero e Calvino, ela poderia ter sido apenas uma, como diz Gramsci,
elucubração individual. Aliás, é interessante notar que se trata de uma ideologia antiga
que não foi criada pelos pais do protestantismo, mas apenas retomada e sem a menor
inteão de produzir os efeitos que, de fato, produziu para além do mundo religioso.
Gramsci via, naquele momento, algo semelhante ocorrendo com o materialismo
histórico, do qual florescia uma iniciativa não esperada. Nesse sentido, deveria ser esse
o caminho para o socialismo. Para ele, o valor hisrico de uma filosofia pode ser
calculado pela eficácia prática que essa conquistou (Q 7, § 45, p. 73). É disso que se
deduz a importância histórica de uma filosofia ou de uma cultura que, afinal, só poderá
ser atestada, segundo Gramsci, como bem observa Badaloni, a partir da adesão ou
não das massas a ela (Badaloni, 1979, p. 31).
CONCLUSÃO
Nas notas americanismo e fordismo, Gramsci vê na sociedade americana da época o
potencial para a constituição de uma nova civilizão. No entanto, entendia que ela
ainda carecia de uma forma própria para não ser apenas mais um prolongamento da
velha civilização europeia. As condições materiais estavam dadas, a necessidade de
uma profunda transformação da sociedade já estava acontecendo com a introdução do
taylorismo pela Ford. A necessária adaptação dos trabalhadores a um novo ritmo de
trabalho requer mudanças no comportamento dentro e fora da fábrica, ou seja,
implicavam a mudança geral de toda a vida do trabalhador e de toda a sociedade.
Gramsci não condena o taylorismo propriamente dito, pois entendia que, com esse
método, estava sendo introduzida a forma mais racional de desenvolvimento das forças
produtivas, que expressava a tendência à formação de uma economia programada.
Este poderia ser, portanto, o caminho para o socialismo. (Vacca, 1998, p. 243) O que
Gramsci condena é o modo pelo qual o taylorismo estava sendo aplicado, ou seja,
apenas de modo coercitivo e por pressão sem preocupação alguma com o aspecto
espiritual do ser humano. Mas entende que tudo poderia ser diferente caso partisse da
iniciativa do próprio trabalhador. Se assim acontecesse, a adaptação necessária, ao
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invés de se impor como algo estranho, representaria não uma imposição arbitrária, mas
a necessidade de uma nova forma de sociedade. Com isso, finalmente, a necessária
adaptão seria introduzida por meios apropriados e originais. (Q. 22, § 11, p. 37) Mas
para que isso se tornasse possível seria necessária a mudança de sua mentalidade.
Na verdade, era o que faltava à sociedade americana, ou seja, uma cultura capaz de
mudar a mentalidade dos trabalhadores e da sociedade em geral. Com isso, o
trabalhador poderia sair de seu estado de passividade e se tornar sujeito do processo
de transformão social, abrindo novas possibilidades de emancipação. Nesse sentido,
Gramsci, inclusive, propõe a retomada de uma ideia que poderia produzir um efeito
semelhante ao da Reforma com a teologia da Graça e da Predestinação. Diz ele que:
O nascimento e o desenvolvimento da ideia de progresso corresponde à consciência
difusa de que se chegou a uma certa relação entre sociedade e natureza (incluindo no
conceito de natureza aquele de acaso e deirracionalidade) de tal forma que os homens,
no seu complexo, estão mais seguros do seu futuro, podem conceber racionalmente
planos mais complexos para a sua vida (Q 10, § 48, p. 32, grifo do autor).
Para ele, o nascimento de tal ideia representava um fato cultural capaz de marcar
época. Sobre isso, entendemos que a ideia de progresso funcionaria como o
equivalente da teologia da Gra e da Predestinação na origem do capitalismo
moderno. A ideia de progresso já tinha raízes na consciência das massas. No entanto,
por não mais estar em alta, era preciso recuperá-la e isto era possível, pois o descrédito
não estava relacionado à ideia propriamente dita, mas em relação a seus atuais
portadores. Esta seria a ideia fundamental à nova concepção do mundo, tanto que o
princípio educativo, pensado por Gramsci, tem por fundamento o trabalho, que está
intimamente ligado a ela, pois o trabalho só pode alcançar o seu máximo potencial por
meio de um conhecimento progressivo das leis naturais conjuntamente a uma ordem
legal que organiza de modo adequado a vida dos homens. O ponto a se chegar é o da
convicção de que a ordem legal deve ser respeitada espontaneamente e por convicção
e o como pura imposição, ou seja, como caminho para a liberdade e não como
coerção (Q 12, § 2, p. 9ª). Da mesma forma que a retomada da teologia da Graça e da
Predestinão pelo protestantismo deu origem à ideia de vocação, que gera a ideia de
trabalho como o cumprimento de um dever moral e o sucesso na atividade profissional
representaria um sinal da certeza da salvação, a retomada da ideia de progresso daria
origem a uma concepção de trabalho como domínio sobre as forças naturais, que
representaria a conquista de um controle sobre as incertezas da natureza entendida
como acaso e irracionalidade. Enfim, a reforma cultural desejada por Gramsci deveria
promover uma mudança de mentalidade semelhante àquela promovida pelo
protestantismo na época da Reforma que, ao retomar antigas ideias de ordem religiosa,
acabou fornecendo, ainda que involuntariamente, as bases para uma ética que serviu
de alavanca ao desenvolvimento do sistema produtivo. Podemos então concluir que o
fundamento ético formador de uma vontade individual e coletiva capaz, por sua vez, de
instituir um novo comportamento, é o senso comum ou bom senso, ou seja, uma
cultura ou modo de pensar que se torna uma convicção semelhante à fé no sentido
religioso. E como afirma Gramsci:
[...] se essa vontade é representada inicialmente por um indivíduo, a sua racionalidade é
atestada pelo fato de ser acolhida por um grande número, e, acolhida permanentemente,
torna-se uma cultura, um “bom senso, uma concepção do mundo com uma ética em
conformidade com a sua estrutura (Q. 1, § 58, p. 66, grifo do autor).
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Portanto, não importa que a origem da ideologia seja laica, metasica ou religiosa nem
quem seja seu autor inicial. O que realmente importa é que corresponda às
necessidades históricas objetivas, pois uma vontade coletiva consistente e duradoura
não nasce da arbitrariedade.
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Data da submissão: 02/11/2018
Data da aprovação: 25/04/2019