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QUALIDADE E DEMOCRACIA NO ENSINO SUPERIOR: RELATO E
FUNDAMENTAÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA DE GESTÃO
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Quality and democracy in higher education: report and foundation of a
management experience
CORREIA, José Alberto
2
RESUMO
Este trabalho traz uma reflexão sobre efeitos do desenvolvimento do paradigma da qualidade na
configuração dos modos de se pensar a administração e a avaliação no campo educativo.
Multiplicam-se os gabinetes de controlo da qualidade e da melhoria contínua, os quais, mais do que
promover a qualidade dos processos se ocupam da melhoria dos indicadores burocráticos de
qualidade que eles próprios construíram com régua e esquadro. Essas reflexões são também a
partir da experiência do autor como Diretor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade do Porto Ensino Superior em Portugal. Junto a isso, discute-se sobre o exercio das
fuões de direção procurando realçar a possibilidade de desenvolver dinâmicas tendencialmente
alternativas às lógicas dominantes.
Palavras-chave: Qualidade da educação. Administração escolar. Avaliação. Ensino Superior.
ABSTRACT
This work brings a reflection on the effects of the development of the quality paradigm in the
configuration of the ways of thinking about administration and evaluation in the educational field.
Multiplying quality control and continuous improvement offices, which, rather than promoting process
quality, are concerned with improving the "quality" bureaucratic indicators that they themselves have
built with ruler and square. These reflections are also from the experience of the author as Director of
the Faculty of Psychology and Educational Sciences of the University of Porto Higher Education in
Portugal. Alongside this, we discuss the exercise of the functions of direction seeking to highlight the
possibility of developing dynamics tendentially alternative to the dominant logics.
Keywords: Quality of education. School administration. Evaluation. Higher education.
1
Este texto foi apresentado na Conferência de encerramento de um Seminário realizado no Instituto de Educação da Universidade de
Lisboa e organizado pelo Fórum Português de Administração Escolar.
2
Doutor em Ciências da Educação pela Universi de Bordeaux II, mestre em Ciências da Educação Université de Bordeaux II e
licenciado em Engenharia Electrocnica FEUP. Professor catedrático do Departamento de Cncias da Educação da Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. E-mail: <correia fpce.up.pt>.
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1. INTRODUÇÃO
O presente texto busca discutir questões do campo da administração, da avaliação
escolar. Para tal analisa o efeito de ocultão exercido pelo paradigma da qualidade.
Essas discussões se originam no entendimento de que há um intenso processo de
despolitização das decisões no campo da educação com particular ênfase no Ensino
Superior.
Este processo tem vindo a intensificar-se a um ritmo rápido e tornou-se de tal forma
naturalizado que não encontramos referência no campo da investigão e da formação
que o esteja associada às palavras qualidade e avaliação.
Os centros de investigação propõem-se desenvolver uma pesquisa de qualidade nos
domínios X, Y e Z; as instituições do Ensino Superior, sejam universidades ou
politécnicos, proem-se oferecer formações de qualidade no 1.º, 2.º ou 3.º Ciclos.
Concomitantemente, multiplicam-se os gabinetes de controlo da qualidade e da
melhoria contínua, os quais, mais do que promover a qualidade dos processos se
ocupam da melhoria dos indicadores burocráticos de qualidade que eles próprios
construíram com régua e esquadro.
Neste contexto, também proliferam os dispositivos e as práticas de avalião dos
estudantes às instituições que, por serem frequentemente concebidos e aplicados por
pessoas cooptadas do mundo acadêmico, adquirem a áurea de uma cientificidade
inquestionável.
As práticas de avaliação e de creditação desenvolvem-se a um ritmo tal que lembram
as tramas desenvolvida no filme O baile dos Bombeiros, em que estes ateavam
incêndios para justificarem a sua própria existência. O presente trabalho faz uma
referência, ainda que de forma breve, aos efeitos simbólicos do paradigma da
qualidade na gestão universitária, nomeadamente aos seus efeitos ao impor uma
ordem cognitiva legítima para se narrar e intervir neste campo. Essa referência também
é fundamentada na minha experiência como Diretor da Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Importa, por outro lado também, destacar transformões das políticas educativas no
Ensino Superior que iniciaram o processo de consolidação há sensivelmente dez anos
atrás e que, entretanto, se generalizaram e acentuaram nos seus aspetos mais
negativos.
2. A QUALIDADE NO ENSINO SUPERIOR: REGRESSO, CONSOLIDAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO DA METÁFORA DA FABRICAÇÃO NO TRABALHO COGNITIVO E
ORGANIZACIONAL
Nas intervenções a que fiz referência anteriormente, procurei situar o aparecimento da
problemática da qualidade num contexto de mudança do sentido e dos modos de
executar as políticas educativas. De uma forma genérica, destaca-se o facto de o
sentido das políticas educativas se ter deslocado da problemática da justiça social e do
combate às desigualdades para se ancorar no referencial do ajustamento e da eficácia
e pela preocupação em assegurar a governabilidade interna de cada um dos espos
educativos. Ou seja, as políticas educativas preocupadas com as questões da justiça
social diluíram-se perante as que se querem mais ajustadas aos recursos disponíveis.
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Este contexto político foi acompanhado por uma intensa prodão narrativa de
argumentos tendentes a diabolizar a intervenção do Estado no campo educativo e a
legitimarem o reconhecimento simbólico do mercado como grande regulador da ão
humana, em geral, e da ação educativa em particular.
Paradoxalmente, esta utopia neoliberal saldou-se pela multiplicação das intervenções
estatais, já não à entrada, mas à sda do sistema. Foi neste contexto político e
cognitivo que as narrativas educativas estruturadas pela noção de qualidade se
consolidaram apoiando-se num conjunto de noções particularmente entusiasmantes.
Nos últimos anos temos assistido, igualmente, ao reforço de uma tenncia
caracterizada por um modo de implementar decisões políticas em educão em que se
se faz cada vez menos pela imposição e prescrições normativas e cada vez mais pela
imposição de formas legítimas de se pensar a ação educativa.
O trabalho cognitivo desenvolvido no campo deixou, deste modo, de ter por referencial
a utopia e a transformação e passou a sernaturalmente pensado como uma
administração de recursos humanos e materiais, com a sua eventual requalificão,
numa lógica em que o projeto se reduz ao plano e a autonomia à responsabilizão
individual do ator solitário e estrategicamente motivado.
Do ponto de vista simbólico, esta naturalização do homo economicus como o único
protagonista da ação educativa conduziu ànaturalização” da ideia de que a qualidade
só pode ser assegurada através do aprofundamento de lógicas concorrenciais,
induzidas pela hierarquização dos seres e dos contextos educativos.
Para além destes efeitos na imposição de uma ordem cognitiva, o paradigma da
qualidade teve uma influência significativa na configurão do campo da gestão
educativa; em particular, o paradigma da qualidade induz a aceitação do pressuposto
de que a especificidade da gestão reside no facto de esta se estruturar, visando o
cumprimento de objetivos não produzidos nem negociados através de um trabalho
colaborativo, mas impostos do exterior recorrendo a um conjunto mais ou menos
extenso indicadores de qualidade.
Por outro lado, o paradigma da qualidade estabelece um modo de descrição
organizacional decalcado do modelo da fabricação; este modelo tende a ser partilhado
pelos membros da organização e induz a produção de inconscientes coletivos em
que a pertinência de cada um dos membros depende da sua integração numa
racionalidade que lhe é extrínseca e que é simultaneamente funcionalista, objetivista,
utilitarista e economicista.
Este pressuposto, de que a organizão é um dado e não uma construção social,
conduz a que não se reconheça a pertinência do trabalho de produção organizacional
realizado pelos seus intervenientes e naturaliza concepções da vida organizacional
em que as tensões e os conflitos são sempre encarados como disfuncionamentos,
como ameaças que importa evitar, e não como conjunturas potenciadoras do
enriquecimento e da complexificão organizacional.
A ideia de que é possível decompor a vida da e na organização em unidades simples,
agregadas em variáveis, cuja manipulão permite prever e melhorar o funcionamento
organizacional, constitui, assim, o fundamento da legitimidade científica do domínio da
expertise, tendente a conceber as relões entre entes humanos como relões entre
coisas.
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A ideologia dos recursos humanos, fundamentando este trabalho de produção de
cognições adequadas às dinâmicas da coisificão organizacional, desqualifica
qualquer debate sobre os fins da organização; por outro lado, a participação dos
membros da organização só é estimulada na procura de soluções, na afirmação
incontrolada de que o que importa é encontrar respostas sem que haja lugar a um
trabalho de explicitação das perguntas e/ou dos seus fundamentos.
No domínio da gestão educacional, tal como noutros domínios da administração
pública, assiste-se, deste modo, à consolidação de uma disposição que insinua que o
exercício das funções de gestão, nomeadamente ao nível das funções de dirão, não
depende das características especificas e intrínsecas do trabalho cognitivo, antes
devem exclusivamente reportar-se às regras do mundo da gestão, a regras, portanto,
intrínsecas, a um mundo impermeável aos contextos específicos da gestão.
Importava agora, depois de realçar os efeitos cognitivos e organizacionais do
paradigma da qualidade, evidenciar, ainda que de uma forma sucinta, os seus efeitos
epistemológicos, ou seja, os seus efeitos na estruturação dos discursos com a
pretensão à verdade. Desde logo, sublinhe-se que o campo da investigação científica
se tem vindo a fechar sobre si próprio e as suas pertinências só se tornam inteligíveis
no seu interior.
Além do mais, neste campo têm-se implementado metodologias e técnicas de
investigação com o intuito de permitir o acesso rápido a informações, não
reconhecendo que os fenómenos educativos se situam sempre numa temporalidade
longa.
Em suma, na investigação educativa tem-se vindo a adotar acriticamente formas
caricaturadas de pesquisa associadas a perspectivas positivistas, unicamente porque
estas facilitam uma produção rápida de textos que se destinam apenas ser publicados,
sem terem preocupões de garantir ganhos de lisibilidade e de reflexibilidade para a
área.
Se este modo de estruturação da investigão não pode ser dissociada do paradigma
da qualidade, dever-se-á reconhecer também que a influência deste no campo se
exerce também por se ter estabelecido uma relão de analogia entre as práticas de
avaliação e as práticas de investigão. Ambas as práticas afirmam o predomínio da
epistemologia do olhar e a legitimidade exercida pelo paradigma da medida na
construção dos objetos, problemas e argumentos científicos.
E se podemos reconhecer que a avaliação associada ao paradigma da qualidade se
apoia, por vezes, em argumentos oriundos da ciência (objetividade, quantificão,
exterioridade, medida etc.), ela não constitui, apesar disso, uma ciência, na medida em
que se referencia sempre a modelos de descrição da realidade mais ou menos
arbitrários.
Como assinalou e bem Guy Berger, em uma conferência realizada na Universidade do
Porto, a avaliação tem uma relação semelhante a que o Jack Daniels mantém com os
uísques, não é necessariamente um uísque, mas se assemelha muito com ele, dessa
forma, a avaliação não é uma ciência, mas se aproxima bastante do modelo de
cientificidade tributária do paradigma galilaico, que especificamente nas Ciências da
Educação se aproxima dos outros modelos científicos (CORREIA, 2010).
A seguir irei continuar essa discussão fazendo uma relação com minha experiência
como Diretor da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto.
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3. POLÍTICA EDUCATIVA NO ENSINO SUPERIOR EM PORTUGAL
Realcei, desde logo, que as responsabilidades destas transformações não podem ser
imputadas exclusivamente a imposições do FMI e à União Europeia, na sequência do
chamado programa de ajuda financeira; elas já se vinham, em grande parte,
esboçando anteriormente.
Aqui, saliento algumas dimensões que mais diretamente interferem na gestão
universitária e na minha experiência enquanto Diretor da Faculdade de Psicologia da
Universidade do Porto. Organizo a reflexão, centrando-a em quatro domínios:
institucional; económico; extensão das dinâmicas de suspeição e sentido do trabalho
docente.
O primeiro domínio é de natureza institucional e incide sobre o espaço onde se define a
configuração organizacional da Universidade Portuguesa. Neste domínio importa
destacar três tendências resultantes da aprovação do Regime Jurídico das Instituições
de Ensino Superior-RJES em 2007 como documento orientador da definição do
exercício da autonomia no Ensino Superior.
Na realidade, este documento legal impõe várias limitações ao exercício da autonomia.
Antes de mais, o exercício da democracia deixa de ser o modelo admissível para a
eleição do Reitor das Universidades e dos Diretores das Faculdades.
Em segundo lugar, o RJES impõe um modelo único de organização das Faculdades e
considera desejável que o Diretor da Faculdade seja simultaneamente Presidente do
Conselho Científico e do Conselho Pedagógico. Atenua-se, assim, a influência dos
órgãos colegiais de gestão e, por esta via, reduz-se a complexidade organizacional das
Universidades e das Faculdades, reforçando-se os modelos de gestão concentrados e
apoiados em lideranças fortes em detrimento dos modelos que acentuam
fundamentalmente a coordenão entre as decisões dos diferentes órgãos de gestão a
quem se reconhece a capacidade de auto-constituição e autodeterminação.
Por último, o RJIES prevê que as Universidades Públicas possam adotar o regime
fundacional, transformando-se em instituições públicas de Direito Privado, desde que
cumpram determinados requisitos institucionais decalcados, em parte, dos modelos
adotados pelos grupos empresariais. A possibilidade de adesão a este regime
fundacional está, por outro lado, dependente da capacidade das Universidades
gerarem um volume de receitas próprio superior às receitas oriundas do financiamento
do Estado.
A segunda dimensão é de natureza económica. Traduziu-se numa diminuição sem
precedentes do financiamento público do Ensino Superior, numa diminuição dos
salários dos trabalhadores universitários e na multiplicação de figuras que não têm uma
relação laboral estável, ou mesmo, reconhecida juridicamente como tal.
Esta tendência foi acompanhada pela burocratizão das regras de controlo de
execução orçamental, induzindo lógicas de suspeição generalizada e procedimentos
burocráticos cujo respeito exige gastos em trabalho claramente superiores à redução
de despesas que eles eram supostos assegurar. Estas medidas não obedeceram,
assim, a qualquer racionalidade ecomica e fundamentalmente instituíram a suspeita
como forma desejável de relão com o Estado.
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A terceira dimensão diz respeito ao processo de extensão das dinâmicas de suspeição
em domínios em que as Universidades possam autonomamente uma autoridade
incontestada pela sua vinculação privilegiada à produção e difusão da ciência. Refiro-
me, obviamente, à formação e à investigação cujos referenciais de legitimação se
transferiram das Universidades para as agências de creditação da formação e de
avaliação/financiamento da investigação.
O funcionamento destas agências é assegurado por funcionários zelosos cooptados,
em geral, da instituição universitária e que desenvolvem o seu trabalho, recorrendo a
um conjunto de instrumentos com formulários infindáveis e as temidas visitas de
avaliação às Universidade, que se destacam pelo seu valor simbólico. Neste domínio, a
dissociação que se estabeleceu entre os espaços onde se produz a investigação e os
espaços onde se definem as políticas de investigação tem importantes implicações
políticas e epistemológicas, que devem ser discutidas em outro momento.
O quarto e último aspeto que gostaria de referir, diz respeito à diluição do sentido do
trabalho docente e às tendências para que a ão profissional dos docentes se
desagregue num conjunto de tarefas desarticuladas entre si.
A necessidade que tem hoje a Universidade Portuguesa de aumentar as suas receitas
próprias para assegurar as suas despesas de manutenção e, se possível, a
preservação dos postos de trabalho, induziu a que os docentes universitários tivessem
de dedicar uma parte importante do seu tempo na procura de fontes de financiamento
destinadas à investigação ou em contratos de prestação de serviços à comunidade.
Para além de tenderem a constituir-se num desígnio institucional, estas receitas
permitem assegurar a colaboração de um conjunto de bolseiros e de prestadores de
serviços que têm um importante peso quantitativo na vida das instituições sem que, no
entanto, a sua importância seja visível e valorizada e sem que eles tenham uma
relação estável de pertença à instituição. São, no entanto, estas figuras da
precariedade que asseguram uma parte significativa das tarefas universitárias de
alguns docentes, permitindo que estes se possam assim dedicar, com alguma eficácia,
ao seu ofício de investigador/empreendedor, sem que este ocio o obrigue a realizar
um trabalho regular de investigação ou de docência.
Estas injunções são, por outro lado, burocraticamente cada vez mais exigentes e
supõem uma expertise sofisticada, necessária quer ao preenchimento dos formulários
de candidatura, na procura seletiva de oportunidades de financiamento, quer ainda no
domínio de uma linguagem que se sabe ser valorizada pelas agências de
financiamento.
Intensifica-se, deste modo, a desqualificação simlica do trabalho cognitivo
desenvolvido com os jovens estudantes, nomeadamente ao nível das Licenciaturas e
dos Mestrados, já que ele tende a ser subjetivamente encarado como um obstáculo,
uma perda de tempo, para realização da nobre missão de investigação.
4. ALGUNS DADOS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA FPCEUP
A Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto -
FPCEUP é uma unidade orgânica da Universidade do Porto com cerca de 1400
estudantes nacionais nas formações conferentes de um grau académico, sendo que
mais de 40% são estudantes de formações pós-graduadas. Todos os anos recebe
mais de centena e meia de estudantes (mais de 10 % do total de estudantes) europeus
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integrados no programa Erasmus e mais de uma centena de Estudantes Internacionais
que frequentam os Mestrados e Doutoramentos.
Para a realização das suas tarefas de investigação, de formação e da prestão de
serviços, a FPCEUP conta com o trabalho de 77 Docentes e 43 técnicos, bem como
com a colaboração de mais de 30 bolseiros com contractos de trabalho precários.
Possui duas unidades de investigão financiadas pela Fundação para a Ciência e
Tecnologia e outras estruturas de investigação desenvolvidas internamente. Para além
destes estudantes normais ou regulares, a faculdade é ainda habitada anualmente
por cerca de 1000 profissionais, estudantes dos cursos de educação contínua.
A faculdade é ainda habitada por um número significativo de investigadores que, não
tendo um contrato de trabalho com a instituição, está institucionalmente vinculado aos
centros de investigação; e nela circulam também os utentes das cerca de 8000
consultas anuais realizadas pelo Serviço de Consultas Psicológicas.
No ano 1999/2000 a Faculdade era frequentada por 1243 alunos, sendo que 79%
eram estudantes do Mestrado Integrado em Psicologia-MIP e da Licenciatura em
Ciências da Educação-LCE, 20% do Mestrado e 8% do Doutoramento. Os cursos de
Educação contínua, por sua vez, eram frequentados por 250 formandos. Foram
defendidas 28 dissertações de Mestrado e 5 teses de Doutoramento, correspondendo,
respetivamente, a 10% e 5% dos estudantes inscritos nestes cursos.
As verbas oriundas do Orçamento do Estado correspondiam nessa altura a 78% do
Orçamento da Faculdade e asseguravam a quase totalidade dos custos de
funcionamento, nomeadamente os salários dos 80 docentes e 36 técnicos. O número
de estudantes internacionais era relativamente irrelevante.
Em 2008/2009 o número de estudantes aumentou de 27%; o número de docentes de
12,5%; e o número de técnicos de 16,6%. Os estudantes internacionais já
representavam cerca de 35% dos estudantes de Mestrado e Doutoramento e eram
oriundos de diferentes países. Os estudantes do MIP e da LCE só representavam 57%
do total, sendo que os restantes 30% frequentavam o Mestreado e 14% o
Doutoramento.
Foram defendidas, nesse ano de 2008/2009, 178 dissertões de Mestrado e 28 teses
de Doutoramento o que correspondia a 38% e 14% da totalidade dos estudantes
inscritos nestes mesmos graus de ensino.
As verbas oriundas do Orçamento do Estado - OE já só representavam 61% do
Orçamento da Faculdade e cerca de 60% dos salários.
Em 2017, o número total de estudantes manteve-se mais ou menos inalterado (1444),
tendo-se assistido, no entanto, a uma diminuição do número de docentes e de técnicos
(os primeiros com valores semelhantes aos de dez anos atrás e os técnicos com uma
diminuição de 10%).
O peso dos Estudantes de Mestrado diminuiu para 15% e manteve-se mais ou menos
inalterado o peso dos estudantes de Doutoramento. Os estudantes internacionais nos
cursos de s-graduação já representam 26% do total, com um peso percentual
semelhante nos mestrados e Doutoramento.
Em outubro de 2010, as transformações da estrutura do trabalho não estavam
consistentemente articuladas com a organização do trabalho que no passado, se tinha
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estabilizado para dar respostas a solicitões mais ou menos previsíveis, programáveis
e rotinizadas.
Nesse período, o peso relativo dos estudantes de pós-graduação aumentou
ligeiramente, tendo-se verificado um crescimento exponencial dos estudantes
estrangeiros e uma diversificação das suas nacionalidades. Esta internacionalização
permitiu moderar os efeitos devastadores da chamadacrise económica na quebra da
procura da formação.
A transferência de verbas do orçamento de estado já só representa, atualmente (em
2018), 40% do orçamento total e só permite assegurar o pagamento de pouco mais de
60% dos salários e de 36% das despesas correntes de funcionamento. As receitas
resultantes do financiamento da investigão obtidas em concursos, particularmente
em concursos internacionais, duplicaram em sete anos, representando atualmente
20% do orçamento da FPCEUP.
Nos sucessivos programas, Planos de Ação e intervenções públicas que desenvolvi ao
longo do meu mandato, como Diretor da FPCEUP, da Universidade do Porto procurei
realçar e desenvolver os princípios, os pressupostos e as figuras de compromisso que
constituíram o pano de fundo da minha ão. Estes referenciais derivaram de uma
descrição da organizão da Faculdade e da Universidade como organismo vivo que
me pareceu importante explicitar enquanto alternativa ao modelo da fabricação
taylorizada que ameaça a gestão da universidade pública e que, como sabemos,
constitui o modelo atualmente dominante e considerado o mais eficaz para a obtenção
de resultados positivos.
Como contraponto ao modelo da fabricão, entende-se que as Universidades são
organizações cuja descrição e gestão ficam a ganhar se, metaforicamente, elas forem
pensadas como organismos vivos. Estas organizações, como realça Edgar Morin
(2007 e 2008), são organizações complexas, trans-hierárquicas e que devem recear
tanto o excesso de ordem como o excesso de desordem, reconhecendo que entre
estes dois excessos o é possível predefinir um meio-termo mais ajustado nem
soluções otimizadas.
Os problemas com que se confrontam as organizações vivas não são do domínio da
funcionalidade preestabelecida, mas tendem a ser principalmente problemas
relacionados com as potencialidades em enfrentar as eventualidades, os equívocos, os
imponderáveis, os perigos, os conflitos num processo que é sempre um processo de
aprendizagem inventiva e criativa.
Para tal, torna-se necessário que os dispositivos de gestão não sejam prescritivos, mas
comunicacionais; que se privilegie o policentrismo e a descentralização, as autonomias
e as interfaces e a gestão sábia dos conflitos.
Para que a Universidade possa ser pensada como um organismo vivo, ela deverá
respeitar alguns referenciais organizacionais, nomeadamente:
1. Situar os processos de mudança numa temporalidade longa, privilegiando as
dinâmicas mais interativas do que incrementativas. Trata-se de respeitar o
princípio de que quando se tem pressa se deve ir devagar, de forma a possibilitar-
se o debate democrático argumentado, não encarando este debate como uma
excrescência ou um luxo que se tolera, mas como um garante da qualidade da
decisão.
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2. Assegurar o predomínio dos dispositivos que favorecem a ação concertada em
detrimento dos que impõem uma ação centralizada e hierarquicamente
estruturada. Importa dar uma atenção particular à produção de núcleos de
coerência que envolvem diferentes componentes organizacionais, dotadas, por
seu turno, de uma autonomia relativa de forma a promover uma cooperação
multifacetada.
3. Reconhecer que não existe um protagonista único ou privilegiado que assuma o
papel de intérprete dos interesses gerais da organização, mas que esses
interesses gerais são sempre objeto de negociação nunca terminada e sempre
contextualizada. A arte da gestão é a arte de saber conviver com esta polissemia e
de a incorporar na vida cotidiana da organização. Realce-se, entre parênteses,
que o reconhecimento da polissemia e da importância do debate argumentado
não significa que se deva fazer a economia de argumentos e informões que, por
serem mais distanciados da ação concreta, podem enriquecer e delimitar
pertinências para o debate contextualizado.
4. Assumir que as mudanças nas organizações não podem desperdiçar as suas
experiências, memórias e as suas produções organizacionais, sendo que estas
últimas, embora nem sempre tenham uma existência estatutária nem figurem nos
organogramas, desempenham um papel fundamental nas mudanças interativas.
Esta descrição da organização como organismo vivo, por não contemplar normas
prescritivas para ação, mas por se afirmar como contraponto às descrições mais
mecanicistas e normativas, constituiu um dos substratos em que se alicerçou um
conjunto de compromissos e de valores que estruturaram e organizaram a minha ação
como diretor a FPCEUP.
De uma forma transversal, como diretor tive a preocupação de desenvolver uma cultura
da confiança nas relações institucionais e interpessoais alternativa à cultura da
suspeição que se tinha vindo a instalar. Esta cultura parece-me ser imprescinvel ao
respeito e ao aprofundamento de dinâmicas de uma autonomia que se quer solidária e
não solitária. Procurei, dentro dos limites impostos pela lei do Orçamento do Estado
(OE), implementar dispositivos que permitissem gerir as queses da justiça laboral,
estando cientes que esta passa por repor o fosso que se tem vindo a acentuar entre
contribuições e retribuições laborais, dando um particular ênfase às retribuições
simbólicas, já que as materiais estão fora do meu espo de decisão.
Não irei fazer, em seguida, uma referência detalhada às dinâmicas que se procurou
desenvolver nas diferentes áreas de interveão da FPCEUP. Parece-me, no entanto,
interessante fazer uma alusão àquelas que foram mais emblemáticas, encarando-as
como dispositivos que nos permitem lidar com os mais importantes e atuais desafios
com que se confrontam as Universidades nos domínios da formação, da investigação e
da prestação de serviços.
5. JOVENS E ALUNOS DO ENSINO SUPERIOR: AS DINÂMICAS NO CAMPO DA FORMAÇÃO
E A EMERGÊNCIA DA HETEROGENEIDADE
Numerosos trabalhos investigação têm posto em realce as transformações que vive
atualmente a Juventude, nomeadamente a Juventude Universitária, cujas qualidades a
afastam progressivamente daquelas que caracterizaram a gerão precedente e que,
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em grande parte, serviram de referencial dos processos de ensino/aprendizagem ainda
hoje em vigor no Ensino Superior.
Esta dissociação entre a figura do jovem que habita a Universidade e a figura do
Estudante Universitário é de tal forma profunda que toca os fundamentos sociais e
cognitivos da vida académica.
A escritora dia Jorge, numa notável conferência que fez na Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, dizia que a atual geração que habita as Universidades tem
metade do cérebro fora dele, ou seja tem metade do cérebro nas redes sociais e na
internet, mas tem também metade do cérebro fora da razão; metade do cérebro é
marcada pela sensibilidade, pela estética, pela afetividade e por razões, saberes e
relações com os saberes que escapam, em grande parte, àquelas que nós supomos
estruturarem a figura do estudante.
Michel Serres (2013), por sua vez, chama a atenção para que estas transformões já
não podem ser interpretadas no quadro das relações inter-geracionais, nem são do foro
cultural. Nas suas palavras, são transformações homoneiscentes”, de tal forma
profundas que ainda não as conseguimos discernir em toda a sua radicalidade. Estas
mudanças anunciadas e prenunciadas põem, desde já, em causa as atuais
delimitações espaciais”, dado que o antigo espaço das concentrações o espaço
onde eu falo e vocês escutam se dilui e expande, para dar lugar a um espaço de
proximidade imediata que tende a ser cada vez mais distributivo.
Na opinião deste mesmo autor torna-se imperativo produzir uma verdadeira revolução
pedagógica no trabalho com estes jovens, abandonando as regras que estruturaram a
pedagogia da memória e a pedagogia da razão, para se afirmar a pedagogia da
invenção; esta, sendo em grande parte indefinida, exige seguramente que o trabalho
de formação se permeabilize às gramáticas das formas de vida dos jovens.
Não sendo ainda possível definir, de forma segura, os contornos das alternativas, as
Universidades só podem envolver-se neste trabalho, escutando os mundos que as
habitam e que elas desconhecem e contribuindo, deste modo, para que se anule a
dissociação entre os espaços e os tempos de aprendizagem e a sua organização.
O Ensino Superior convive com aprendizagens cada vez mais difusas e discretas, com
dinâmicas de aprendizagem que são dificilmente planeadas ou integradas nos planos
de estudo. Estas aprendizagens, embora façam parte do cotidiano da instituição, são
remetidas para as periferias, são consideradas como epifenómenos cujo
reconhecimento e conhecimento está subordinado à sua congruência com dimicas
construídas em torno de saberes concentrados.
De uma forma, ainda incipiente, a FPCEUP desenvolveu um Dispositivo de Mentoria
que se distingue de outras experiências similares, pelo facto de encarar a integração
dos novos estudantes não como um evento, mas como um processo. Um processo
que, num primeiro momento, seria facilitador do desenvolvimento de um trabalho de
ressocialização relacional, para, num segundo momento, desenvolver também
dinâmicas relacionadas com a aprendizagem do ocio do estudante e, começar hoje, a
desenvolver dinâmicas facilitadoras da sua integração em comunidades cienficas,
com as suas culturas, rituais e procedimentos mais ou menos codificados.
O apoio à inscrição dos novos estudantes não se confina ao ato administrativo nem ao
conhecimento sico das instalações. A inscrição não é unidimensional, mas
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multidimensional, congruente com o princípio que inscrever-se é escrever-se com todas
as dimensões materiais e simbólicas que incorpora a atividade de escrita.
6. O CAMPO DA INVESTIGAÇÃO: DA INTERDISCIPLINARIDADE À POLINIZAÇÃO DOS
SABERES
O Mestrado Integrado em Psicologia-MIT (MIT, 2011) publicou um relatório sobre o
estado atual da investigação, com o sugestivo título:A convergência entre as ciências
da vida, as ciênciassicas e a engenharia. Os autores, depois de assinalarem que o
campo das ciências biomédicas sofreu duas importantes revoluções afirmam que
estamos a assistir atualmente a uma terceira revolução a Revolução da
Convergência. Esta ultima, parece ser particularmente exigente no que diz respeito à
promoção de uma interdisciplinaridade que não se limita a transferir saberes entre os
diferentes domínios disciplinares, mas que se sustenta em novas formas de
abordagem ocupadas com a complexidade da evolução dos sistemas. Para estes
autores, aconvergência é o resultado de uma verdadeira polinização intelectual
transversal às várias áreas do saber.
A Revolução da Convergência coloca às instituições universitárias um conjunto de
desafios particularmente complexos a incidir tanto nos modos de organizar e fazer
ciência, como nas concepções de educação científica, como ainda nos circuitos
privilegiados para a difusão dos saberes e da sua valorização social.
Em primeiro lugar, a importância a atribuir às interfaces não surge no prolongamento de
uma investigação autocentrada e excessivamente especializada, mas envolve tanto a
organização das estruturas de investigão como principalmente uma revolução nas
culturas científicas excessivamente centradas na figura do Investigador Responsável.
O Desenvolvimento das Interfaces subentende a promoção de formas de cooperação
científica que não obedecem a uma organização taylorizada do trabalho para assim
poderem fomentar misturas improváveis entre saberes e culturas cientificas. Para
além das mudanças das culturas científicas, a revolução das interfaces interfere
também nos dispositivos de avaliação e financiamento da Ciência, isto é, apela para
uma mudança paradigmática nas políticas cienficas que devolvam à universidade
uma autonomia na sua definição e promoção em que se valorizam fundamentalmente
os saberes des-especializados.
Curiosamente, estas dinâmicas parecem já terem estado inscritas no campo das
Ciências Sociais e Humanas e eram consideradas como manifestações do seu atraso,
ou seja, do seu caráter pré-paradigmático.
Na contemporaneidade, paradoxalmente, estas dinâmicas têm sido desvalorizadas
pelas Ciências Sociais e Humanas, preocupadas em buscar acréscimos de
cientificidade, quando as Ciências de Ponta as valorizam, não aproveitando um
contexto em que o seu atraso poderia constituir uma vantagem acrescida.
É também notório que a Revolução da Convergência o se cinge ao campo
específico da produção dos saberes. Ela envolve também os circuitos através dos
quais se define o destino social dos saberes produzidos e, por isso, também as formas
de articular os saberes teóricos com os saberes aplicados.
Sabemos hoje, que os dispositivos de financiamento da ciência tendem a privilegiar os
saberes aplicados relativamente à investigação teórica e que o modelo dominante e
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quase exclusivo de valorização social dos saberes aplicados se faz por via da inovação
tecnológica. Importa, portanto, neste donio, implementar um conjunto de dispositivos
de investigação e monitorização que permitam aprofundar a Revolução da
Convergência também do ponto de vista das suas implicações cognitivas e sociais.
O aprofundamento da Revolução da Convergência (RC) coloca também exigências no
domínio da formação de jovens investigadores e que sejam congruentes com aquela
que assinalámos no que diz respeito à organização da investigação.
Assim, a RC apela para a superação do modelo de uma formão centrada na relação
interindividual com o orientador e a sua integração em coletivos de pesquisa
tendencialmente des-especializados e transhierárquicos.
Em segundo lugar, a RC implica seguramente que a formação destes jovens
Investigadores não se conceba como uma formação iniciática que se reproduz e se
enquadrada nos temas e nos modos de fazer investigação privilegiados pela instituição
de formão; pelo contrário, esta formação deve promover a inovação tanto temática
como metodológica. Finalmente, sem ter a preocupação de esgotar estes desafios, a
formação curricular dos jovens investigadores fica a ganhar se envolver dimensões
transdisciplinares fomentadoras das misturas improváveis que referi.
Não quero de forma alguma insinuar que a FPCEUP tenha desempenhado um papel
de referência neste domínio. Não queria, no entanto, deixar de mencionar algumas
dinâmicas e preocupões que foram protagonizadas.
Relativamente à organização da investigação procurou-se, por vezes sem sucesso, é
verdade, afirmar o papel estruturante do Conselho Cienfico na definição das políticas
de investigação e como protagonista central neste domínio. Por outro lado, foi criada e
desenvolvida ao longo dos anos uma estrutura de apoio à investigação, cujo âmbito de
atuação não se limitava ao apoio administrativo e financeiro, antes se alargou para
procurar a construção de redes e de oportunidades de financiamento.
É de relevar também bem que se procurou que esta estrutura fosse capaz de articular
as exigências administrativas e financeiras com exigências científicas. Por outro lado,
quis também deliberadamente desenvolver projetos e atividades de investigação
envolvendo várias estruturas quer internas à Faculdade, a outras unidades orgânicas
da Universidade do Porto e ainda a outras Universidades Nacionais e Internacionais.
A vinculão à memória epistemológica das Ciências Sociais e Humanas, embora nem
sempre potenciada, possibilitou-nos, por outro lado, praticar formas alternativas de
articular os saberes teóricos com os saberes práticos; estas formas exprimem-se quer
nas metodologias adotadas, quer nos temas de investigação, quer ainda na
importância que atribuímos ao debate entre cientistas e não cientistas.
Finalmente, no domínio da formação de novos investigadores tem sido evidente o seu
envolvimento crescente em projetos e equipas de investigação. A sua formação
também incorporou domínios que não se inscreviam diretamente na sua área de
especialização.
7. A TERCEIRA MISSÃO: UMA NOVA ÁREA DE NEGÓCIOS OU DE COMPROMISSO CÍVICO
Sabemos que o donio da prestão de serviços à comunidade é marcado por uma
grande ambiguidade semântica. É também o donio em que as injunções oriundas
das transformações das políticas educativas mais se faz sentir.
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Desde logo, porque se trata de um domínio que é designado por duas expreses
ambíguas. A primeira prestação de serviços tende a ser valorizada simbolicamente
sem ter necessidade de explicitar a natureza da prestação que está em causa. A noção
de comunidade, por sua vez, parece designar tudo que é exterior à Universidade, sem
ter em conta a heterogeneidade deste exterior.
Em seguida, porque este domínio se desenvolveu nos últimos anos como uma área de
negócios, suscetível de contribuir para a sustentabilidade ecomica das
Universidades, num contexto em que as políticas educativas têm contribuído para a
sua descapitalização; a legitimação da Prestação de Serviços deixou de ser assim de
natureza cívica para se inscrever no mundo do mercado.
Finalmente, porque esta prestão de serviços tem por referência um inconsciente
epistémico que entende que as práticas, muitas vezes especializadas neste domínio,
se desenvolvem na aplicação instrumental e técnica de saberes descontextualizados
em diferentes domínios da atividade humana.
O trabalho desenvolvido pela Faculdade, pelo contrário, resulta de um conjunto de
figuras de compromisso que genericamente subentendem o reconhecimento da
importância de gerir, de forma dialética, a relação entre instrumentos e saberes
descontextualizados e os imperativos resultantes de um uso social tendencialmente
contextualizado.
A natureza dos saberes com que lidamos impede-nos de fazer a economia da reflexão
sobre o seu destino social, os seus processos de produção e a sua contribuição para a
construção de cidades e cidadanias. É neste donio que adquire particular relevância
a afirmação feita por Wittgenstein, há cerca de um século, ao reconhecer quemesmo
que todas as questões científicas possíveis tivesses obtido resposta, os nossos
problemas da vida não terão sido sequer tocados.
A nossa sensibilidade, simultaneamente para a importância e a relativa irrelevância dos
saberes científicos, está inscrita nos genes dos próprios saberes com que lidamos.
Procuramos trabalhá-los tendo a consciência trágica de saber que estes saberes são
imprescindíveis para lidarmos com o sofrimento e desenvolvimento humano, mas não
constituem o suporte mais importantes na estruturação das práticas susceveis de os
atenuarem e favorecerem o desenvolvimento humano; eles suportam-se sempre em
referências éticas e apelam sempre para uma ética do cuidado e da partilha. A Ciência
não pode ter a pretensão de consumar com o debate sobre o sentido da vida, mas
pode contribuir para a qualificação deste debate.
Inspirando-se nos Fóruns Híbridos e visando explicitamente promover uma
democracia cognitiva necessária ao desenvolvimento de uma opinião pública
esclarecida, organizamos nos últimos sete anos mais de 600 eventos científicos
abertos a não cientistas em que participaram cerca de 50 000 pessoas algumas delas
vindas de todos os continentes. Não se trata, convém dizê-lo, apenas de atividades de
divulgão da ciência, mas antes de debates e de controvérsias entrecientistas e não
cientistas, de insncias de aferição entre a pertinência cognitiva e a pertinência social
do trabalho de produção de saberes.
Finalmente, gostaria de fazer uma referência ao nosso papel no processo de
desenvolvimento de uma horta comunitária. Trata-se de uma iniciativa ainda recente
que envolve técnicos, docentes e alunos da Faculdade e que recentemente tem
contado com a colaboração ativa de pessoas aposentados o bairro social circundante
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da Faculdade. Este trabalho tem por inteão preservar e recrear a memória agrícola
dos habitantes da zona onde foi implementado um dos polos da Universidade do Porto
que sofreram um processo de degradação das suas condições de vida e que, de
qualquer forma, foram desapropriados dos terrenos onde desenvolviam uma atividade
agrícola.
Independentemente do número de pessoas envolvidas, ela tem simbolizado bem a
nossa concepção do trabalho de extensão universitária que se apresenta como uma
alternativa cidadã às perspectivas que a entendem apenas como transferência de
saberes e de tecnologia e que, por isso, a dirigem exclusivamente para o mundo
empresarial e para a criação de startups e spin offs onde se produz e reproduz a figura
do empreendedorismo e o novo espirito do capitalismo.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Democracia constitui a primeira referência constitutiva de um campo de desejos que
procuramos consumir intensamente. O consumo da democracia não acaba com ela;
produz mais democracia. Temos com ela uma relão de amor intenso, sincero e de tal
forma longo que se tende a eternizar. Desejamos possui-la e ser possuído por ela. Não
é uma relação circunstancial ou de conveniência, mas uma relação de sinceridade e de
fidelidade.
Não fazemos, por isso, flertes com a Democracia nem estabelecemos relações de
conveniência. Não a entendemos como objetos de estudo, mas como uma forma de
vida.
Institucionalmente procuramos viver com e em democracia. Por razões cívicas, éticas e
pelos compromissos que assumimos com a justiça e a igualdade social. Mas também
por razões funcionais. As instituições altamente qualificadas como é o caso da
FPCEUP conseguem ganhos de produtividade se promoverem a participão
democrática dos seus trabalhadores que assim mobilizam e produzem novas
competências individuais, coletivas e organizacionais. A promoção da participação na
tomada de decisões constitui o melhor garante da qualidade destas decisões e não
uma perda de tempo.
Estamos vinculados às cidades e às cidadanias que nos rodeiam, mas também
àquelas que nos habitam e que nos inscrevem na cidade universitária da UP. Nestes
diferentes donios procuramos desenvolver dispositivos de acolhimento e fortalecer
uma ética do cuidar que não se ocupa apenas de facilitar a integrão, mas também a
interpelação os processos de promoção de reajustamentos capazes de promover uma
cidadania mais justa e sensata.
Decisivamente habitamos as fronteiras, por razões éticas, mas também
epistemológicas e cognitivas. Os saberes com que lidamos remetem-nos, com efeito,
para os territórios onde se concentram os sofrimentos humanos individuais e sociais
e estes estão particularmente concentrados nas periferias. Os saberes científicos
com que trabalhamos têm a sua relevância social dependente de não fazerem a
economia do diálogo e da interpelação com aqueles que sofrem nas periferias e que
necessitam, como qualquer ser humano, de democracia, cidadania e reconhecimento,
elementos esses, que se constituem em eixos centrais para a construção e
fortalecimento do sentido da existência institucional.
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REFERÊNCIAS
CORREIA, José Alberto. Paradigmas e cognições no campo da administração
educacional: das políticas de avaliação à avaliação como política. Rev. Bras. Educ., Rio de
Janeiro, v. 15, n. 45, p. 456-466, Dec. 2010.
MIT. The Third Revolution. The Convergence of the Life Sciences, Physical Sciences, and
Engineering. Washington: Massachusetts Institute of Technology, 2011.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007.
SERRES, Michel. Polegarzinha (Tradução de Jorge Bastos). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2013.
Data da submissão: 04/12/2018
Data da aprovação: 21/02/2019