Trabalho & Educação | v.28 | n.2 | p.63-77 | maio-ago | 2019
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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2019.9878
TRABALHO, EDUCAÇÃO E CAPITAL: PERCURSOS HISTÓRICOS E
IMPEDIMENTOS PARA A FORMAÇÃO OMNILATERAL
Labor, education and capital: historical paths and impediments to omnilateral
capacitation
RIBEIRO, Ellen Cristine dos Santos
1
SANTOS, José Deribaldo Gomes dos
2
SOBRAL, Karine Martins
3
RESUMO
O artigo discute as relações entre trabalho e educação ao longo da história no intuito de evidenciar a
perpetuação da dicotomia expressa no modelo educacional vigente, sobretudo no ensino
profissionalizante, que tem reproduzido a cisão entre trabalho manual e intelectual na base da
sociedade capitalista. Nesse sentido, reafirma-se a necessidade da construção de uma proposta
pedagógica baseada na transmiso do conhecimento historicamente acumulado pela humanidade,
articulada à possibilidade de desenvolvimento integral do ser humano. Para tanto, partiu-se do
pressuposto marxiano da prioridade ontológica exercida pelo trabalho em relão aos demais
complexos, que torna a educação dependente em relação a este, apesar de sua autonomia relativa e
determinão reproca. A pesquisa, de natureza teórico-bibliogfica, recorreu a autores clássicos e
contemponeos, cujas interpretões conferem coesão com a proposta do referencial balizador: o
marxismo. A partir da investigação foi posvel apontar cticas à legitimação da dicotomia educativa
através dos séculos e apontar alguns construtos teóricos fundamentais de impedimento para a
formação humana omnilateral.
Palavras-chave: Trabalho. Educação. Ensino Profissionalizante.
ABSTRACT
The paper aims to discuss the relationship between work and education throughout history in order to
highlight the perpetuation of the dichotomy expressed in the current educational model, especially in
vocational education, which has reproduced the division between manual and intellectual work at the
base of capitalist society. In this sense, it is reaffirmed the need to build a pedagogical proposal based
on the transmission of knowledge historically accumulated by humanity, articulated to the possibility of
integral development of the human being. In order to do so, this paper was based on the Marxian
assumption of the ontological priority exerted by the work in relation to the other complexes, which makes
education dependent on it, despite its relative autonomy and reciprocal determination. The research, of
a theoretical-bibliographic nature, appealed to both classic and contemporary authors, whose
interpretations confer cohesion with the proposal of the reference framework: Marxism. From the
investigation, it was possible to point critiques to the legitimation of the educational dichotomy through
1
Doutoranda e Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Especialista em Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar (FA7). Pedagoga (UFC). Professora efetiva da rede municipal de
Fortaleza. Pesquisadora-colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO) da Universidade Estadual do
Ceará. Membro do grupo de pesquisa Trabalho, educação, estética e sociedade (GPTREES). E-mail: ellencristineribeiro@hotmail.com
2
Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade
Estadual do Ceará (UECE). Professor Adjunto da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC-UECE). É
pesquisador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO-UECE) e do Laborario de Pesquisas sobre Políticas Sociais
do Sertão Central (Lapps-UECE). Lidera o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade (GPTRE). E-mail:
deribaldo.santos@uece.br
3
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Especialista em Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar (FA7). Pedagoga (FA7). Professora Assistente do Curso de Licenciatura em
Ciências Humanas/Sociologia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA / Campus de São Bernardo). Colaboradora externa do Grupo
de Estudo Marxismo e Educação. Pesquisadora-orientadora do Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente, Desenvolvimento e Cultura
(GEPEMADEC/UFMA). E-mail: karineufma2013@gmail.com
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the centuries, and to point out some theoretical constructs that constitute a key point for impediment of
the omnilateral human capacitation.
Keywords: Work. Education. Vocational Education.
INTRODUÇÃO
O ponto de partida desta pesquisa é o pressuposto marxiano de que o trabalho
(mediação homem/natureza) é a categoria fundante da sociabilidade humana, ou seja,
é o modelo de práxis social que possibilita o surgimento de todas as outras, residindo
nisso seu estatuto ontológico em relação às demais práxis sociais (linguagem, educação,
direito, política, etc.) não menos importantes para o desenvolvimento da humanidade.
Com essa inferência em tela, parece uma questão fundamental recuperar a
compreensão da educação enquanto um complexo necessário à continuidade do
processo de reprodução social, assim como alguns aspectos históricos que
caracterizaram a educão através das diferentes épocas, demonstrando que, desde os
tempos mais remotos, o conhecimento humano foi negado à classe trabalhadora ou,
ainda mais grave, foi oferecida uma educação a partir dos ditames da superficialidade e
da conveniência das classes dominantes.
Insiste-se em fazer frente às concepções que contrapõe de modo excludente trabalho e
educação, pretendendo retomar a origem indissociável do complexo educativo à
perpetuação do processo humanizador do homem. Ressalta-se, pois, o entendimento
da realidade como uma construção humana, demonstrando que o surgimento do
complexo educacional acompanhou o surgimento do próprio homem. No tocante às
questões educacionais, a pesquisa se volta aos fundamentos históricos que
demonstram os antagonismos da educação oferecida à classe trabalhadora,
entendendo que, ao levantar esses elementos, tangenciam-se questões que perpassam
a atualidade das políticas educativas, sobretudo aquelas destinadas aos filhos da classe
trabalhadora, que se encontram fortemente revestidas de uma suposta necessidade de
qualificação e requalificação para o mercado de trabalho capitalista.
A EDUCAÇÃO ENCURRALADA: CRÍTICAS INICIAIS À LEGITIMAÇÃO DA DICOTOMIA
EDUCATIVA
Declaradamente, o modo de produção capitalista tem como fundamento a exploração
do trabalhador. Assim, as desigualdades sociais inerentes à propriedade privada, não
são um defeito, mas uma característica básica da natureza do capitalismo. Significa dizer
que é impossível construir uma forma de sociabilidade justa e igualitária a partir deste
modelo econômico, já que a desigualdade faz parte de sua estrutura fundamental.
A despeito da negação de alguns arautos liberais sobre a crise estrutural do capital, e
das abordagens pseudo-humanistas dos discursos de reprodução e unificação escolar,
a crise estrutural do capital, a maior já vista até hoje, pode facilmente ser observada a
partir do agravamento de todos os problemas sociais num momento em que a
humanidade possui condições tecnológicas, científicas e naturais para suprir toda a
humanidade.
A categoria de alise Crise Estrutural do Capital é desenvolvida pelo estudioso marxista
Ístvan Mészáros (2009), levando em consideração de que a partir da década de 1970,
com a crise do petróleo, entre diversos outros fatores, entramos num período da história
em que o desemprego é estrutural, ou seja, impossível de ser resolvido nos marcos do
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capitalismo. Dentre tantas outras consequências, destaca a inviabilidade das taxas de
juros serem recuperadas.
Ainda que esta crise se manifeste primeiramente na esfera econômica, acaba por atingir
todas as dimensões sociais. Tonet (2003), afirma que ela afeta poderosamente o mundo
das ideias, dos valores e das relações sociais. Esse contexto caótico de crise é terreno
fértil para que a ideologia dominante defenda a qualificação profissional como sendo a
solução de diversos problemas sociais, antídoto para todos os males e, sobretudo,
perante o discurso meritocrático, de que cada um é responsável pela melhoria de sua
vida individual.
A ordem do capital burguês atribui à educação o papel de amenizar as mazelas sociais
produzidas pelo capitalismo que são agravadas a cada dia pela decadência anunciada
deste modo de produção, aumentando as desigualdades e contradições que lhe são
próprias. Este idealismo em torno da educação é embasado emnovas teorias que se
apresentam como grandes inovações educacionais, mas que não representam nenhum
tipo de mudança efetiva ou profunda. Na verdade, esses discursos têm como objetivo
implícito a manutenção do modelo de exploração, tentando adequar a prática
educacional às exigências do mercado.
Para atingir tal objetivo, o sistema escolar burguês se manifesta de forma ambígua: uma
de suas faces é unificadora, sendo oferecida de forma ampla e maciça como pa basilar
do projeto liberal a fim de conservar seu donio, formar mão de obra barata, a outra,
entretanto, é segregadora, responsável pela exclusão dos filhos dos trabalhadores ao
acesso ao conhecimento propedêutico.
O próprio capitalismo cria, para se desenvolver, novas condições de aprendizagem e
conhecimento dos indivíduos, encarregando-se, ele mesmo, de suprir certas barreiras, que
até então discriminavam certos setores sociais do acesso à escola e a certos conteúdos do
saber, por razões culturais, regionais, raciais, políticas, etc. Nesse sentido, o capitalismo é
unificador. Mas, tais premissas econômicas, unicamente, seriam insuficientes para
converter, qualitativamente, a estrutura social numa ordem distinta. Elas esbarram em
processos cruciais, que impõem controles e limites, para os quais, premissas de tipo
diferente precisam ser desenvolvidas e que estão na esfera da luta política, em relação às
quais a república democrático-burguesa oferece condições, que não podem ser
menosprezadas pelo proletariado (MACHADO, 1991, p. 245).
Os pressupostos teóricos da proposta liberal articulam um refinado projeto escolar,
reforçando a promessa burguesa de solidariedade entre as classes, cooptando a classe
operária sob a expectativa do ensino universal, acessível e democrático. Sabe-se,
entretanto, que as aristocracias forjam a distribuição de iguais oportunidades a fim de
garantir que a estrutura social não seja ameaçada. Se por um lado a proposta burguesa
de escola universal pressupõe o livre acesso ao ensino, por outro limita as ofertas
educativas aos padrões estabelecidos pelo Estado capitalista, afastando-se de um
modelo de educação omnilateral, capaz de possibilitar o desenvolvimento pleno das
capacidades humanas.
A título de ilustração, tomemos o exemplo do Estado do Ceará em relação ao Instituto
Tecnológico de Aeronáutica (ITA), um dos vestibulares mais concorridos do país.
Segundo o portal de nocias G1
4
,
40,9% dos aprovados no vestibular ITA 2018 são
alunos do Ceará. Das 110 vagas disponibilizadas, 45 foram garantidas pelos cearenses.
4
Matéria publicada em 29 de dezembro de 2017, a partir de dados divulgados pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).
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Levando em consideração a proporção entre o número de inscritos e o número de
aprovados, a vantagem do estado aumenta ainda mais, com taxa de aprovação de
3,93%; em segundo lugar, ficou com o estado de São Paulo, com taxa de aprovão de
1,21%. Dos estudantes aprovados, entretanto, nenhum é da rede pública de ensino.
Todos são oriundos de escolas privadas, e muitas delas figuram entre as maiores da
cidade. Em contrapartida, a realidade da esmagadora maioria é bem diferente. A
educação básica no estado do Ceará, apesar de um discreto aumento no Ideb
5
verificado
através do Censo Escolar de 2015
6
, continua em situação de extrema desvantagem em
relação às escolas particulares de ensino, exibindo diversos fatores de precariedade
impossíveis de serem esmiuçados aqui, dado o objetivo da pesquisa ora apresentada,
mas que evidenciam uma desvantagem brutal nas chances de concorrência em
vestibulares locais, menos concorridos.
É fatoblico e notório o baixo percentual dos filhos dos trabalhadores que ingressam
nas universidades federais e estaduais, embora o aprofundamento empírico dessa
desvantagem não seja o enfoque desse estudo. Como amostra, apesar do alarde feito
pela Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC) ao comemorar um crescimento de 27%
no índice de aprovação dos alunos de escolas públicas estaduais no ensino superior em
instituições públicas e privadas em 2016
7
, pode-se afirmar que, em números reais,
sobretudo nas vagas públicas, ainda não constitui representatividade relevante. No curso
de Medicina, por exemplo, ingressaram 25 alunos de um total de 260 vagas
8
, ou seja,
menos de 10%.
Tomando em conta uma proposta marxiana de unificação entre trabalho manual e
intelectual, procurou-se apreender o significado das contribuições de Marx e Engels na
gênese de uma escola capaz de formar um novo homem nos termos da
omnilateralidade. Faz-se mister, a fim de esclarecer o leitor, retornar aos fundamentos
da articulação entre teoria e prática, segundo a premissa que concebe trabalho e
educação numa relação de dependência ontológica e autonomia relativa. Apesar de não
terem escrito nenhuma obra específica sobre educação, os estudos que esses autores
empreenderam sobre a lógica do funcionamento da sociedade burguesa acabaram por
tocar na questão educacional, especialmente na forma como o pensamento liberal-
burguês se articula com estas questões. Segundo registra Machado (1991), o fato de
terem provocado uma ruptura com o pensamento anterior e por terem criado uma nova
teoria, com bases científicas, sobre o desenvolvimento das sociedades e suas
respectivas formas de constituição, especialmente no modo de produção capitalista,
acabaram por provocar também uma revolução no âmbito da pedagogia, embora não
fosse seu objeto específico de estudo.
5
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, calculado a partir do fluxo escolar e da dia de desempenho dos alunos em avaliações
padronizadas de rede.
6
O Ideb do Ceará aumentou de 3 para 3,4 entre os anos de 2005 e 2015. Contudo, esta melhora ocorreu apenas nos primeiros anos, de
2005 a 2009, voltando a aumentar apenas em 2015. Em 2011, seu desempenho se manteve constante e, no ano de 2013, o Ceará
apresentou uma pequena piora (de 0,1) em sua nota seu melhor desempenho se deu nos anos 2009 e 2011, com 3,4 de média. Esta foi
uma tendência observada também à nível nacional e, para todos os anos analisados, o Ideb do Ceará ficou abaixo, porém muito próximo
ao do Brasil. Nos anos de 2005, 2009 e 2011, o desempenho de ambos foi o mesmo. Mas, no ano de 2007, o Ceará apresentou uma
melhora em menor magnitude que a média nacional (que foi compensada no ano de 2009, quando ambos voltaram a ter a mesma nota),
e, no ano de 2013, o desempenho do Brasil se manteve constante e o do Ceará apresentou a já mencionada queda de 0,1. Em 2015,
estado e país aumentaram seu Ideb (3,4 e 3,5 respectivamente). Pesquisa realizada nas páginas institucionais da Secretaria Estadual da
Educação do Ceará, entre 2016 e 2017 (CEARÁ, Panorama dos territórios, 2017, p.26).
7
De acordo com matéria publicada no jornal O Estado, em 03 de março 2017.
8
Universidade Federal do Cariri (UFCA) 40 vagas; Universidade Federal do Ceará (UFC/Campus Fortaleza) 160 vagas; Universidade
Federal do Ceará/Campus Sobral) 60 vagas. Total: 260 vagas.
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Marx e Engels (2004) dispensaram esforços investigativos para descobrir e explicar a
trama de relações presentes no interior da sociedade capitalista, com o objetivo de
compreender as possibilidades reais e radicais de transformação da sociedade, assim
como as mediações necessárias para promover tal ruptura. Esse posicionamento acaba
por aproximá-los de diversos outros temas, como aquele que ora nos interessa: o
alargamento das oportunidades educacionais.
Na perspectiva omnilateral, os indivíduos não ficam circunscritos em atividades
exclusivas. Nessa concepção, para além, os estudantes podem desenvolver suas
aptidões como bem lhes parecer, sem limitações, movidos por suas capacidades e
necessidades sociais. A fim de garantir que a humanidade atinja esse esgio, Marx e
Engels (2004) reivindicam o fim da subordinação do homem à divisão do trabalho
manual e intelectual - e da propriedade privada para alcançar o desenvolvimento do
indivíduo e socialização da riqueza produzida pelo conjunto dos homens.
No mesmo sentido, Gramsci (2004), que concebeu seu horizonte educativo ancorado
no pensamento marxiano, jamais poderia admitir a submissão da educação aos
esquemas impostos para favorecer as linhas de produção. O intelectual italiano
vislumbrava, segundo esclarece Jimenez (2001), um cenário sócio-educativo que
apontasse como horizonte a capacitação do trabalhador para assumir a função de
dirigente do processo de prodão e da vida social. Sobre a centralidade das
proposições gramscianas, a autora acrescenta que Gramsci situou-se longe da ideia de
subordinar o ensino à produção, colocando, ao mesmo tempo, no centro de sua
concepção educacional, o trabalho moderno. Projetava um cenário sócio-educativo que,
fincado no campo do trabalho industrial moderno, apontasse, como horizonte educativo,
capacitar o trabalhador para assumir a função de dirigente do processo de produção e
da vida social (JIMENEZ, 2001, p. 73).
Significa dizer que a proposta apresentada por Gramsci (2004) não admite o ensino
técnico-profissionalizante aos filhos dos operários, predeterminando seu futuro a tarefas
unicamente mecânicas e imediatistas. Em sua organização pedagógica, este caráter
profissionalizante só é atribuído ao indivíduo por volta de 17 ou 18 anos, mas ainda
assim, em todos os veis que propõe, demonstra preocupação com a elevação cultural
daqueles que um dia, em sua previsão, serão os dirigentes da sociedade. Na mesma
esteira, Machado (1991, p. 158) afirma:
Gramsci denuncia o papel segregacionista e castrador da escola profissional, mas reprova
também a escola humanista tradicional, porquanto o princípio educativo sobre o qual ela se
fundamenta, a cultura clássica, já não mais corresponde à etapa atual de organização do
trabalho e de desenvolvimento das forças produtivas. Ele se opõe à noção de cultura como
acúmulo de conhecimentos e de um saber enciclopédico, com a função precípua de
distinguir socialmente os indivíduos. [...] A formação do novo tipo de intelectual deve estar
alicerçada nas exigências do tempo presente e nas necessidades da vida cotidiana.
A proposta educacional arquitetada por Gramsci é pautada pelo processo de criação do
homem, o trabalho em-si, articulando-se ao novo humanismo, capaz de alargar a cultura,
as ciências - fundamentos do trabalho -, as artes, sem finalidades imediatas pragmáticas.
O intuito é abranger uma não de consciência superior, lúcida, esclarecida quanto aos
direitos, deveres e papel histórico de cada sujeito na sociedade, construindo o novo sobre
os escombros do velho, impregnando essas referências alternativas nas escolas já
existentes.
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Por esse prisma, segundo as contribuições de Sobral (2010), Gramsci entendia cultura
no sentido amplo do termo. Relacionava principalmente com a necessidade de transmitir
à classe trabalhadora o conhecimento acumulado historicamente, de forma a permitir
que os trabalhadores se reconhecessem como classe. Para o militante italiano, só a partir
da compreensão de sua condição de explorados, os trabalhadores poderiam admitir a
possibilidade concreta encerrada numa alternativa para transformar a realidade. Em
suma, apropriando-se da proposta política engendrada pela tradição socialista, poderiam
desenvolver-se capazes de dirigir o processo de transição de uma forma de sociabilidade
a outra, através da educação sistemática das massas pelas instituições proletárias.
A função do modelo educacional idealizado por Gramsci, no memento de transição, é
preparar os novos indivíduos para a vida em sociedade, ensinando-lhes como se a
organização social em que o homem transforma a natureza, demarcando o trabalho
como atividade determinante teórico-prática. Nas palavras do próprio pensador sardo:
A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do pprio eu interior, apropriação da
própria personalidade, conquista de consciência superior: e é graças a isso que alguém
consegue compreender seu próprio valor histórico, sua ppria função na vida, seus pprios
direitos e seus próprios deveres. Mas nada disso pode ocorrer por evolução espontânea,
por ações e reações independentes da própria vontade, como ocorre na natureza vegetal e
animal, onde cada ser singular seleciona e especifica seus pprios órgãos
inconscientemente, pela lei fatal das coisas. Se não fosse assim, seria impossível
explicar por que, tendo sempre existido explorados e exploradores, criadores de
riqueza e consumidores egoístas da mesma, o socialismo ainda não se realizou. [...]
E essa consciência se forma não sob a preso brutal das necessidades fisiológicas, mas
através da reflexão inteligente (primeiro de alguns e depois de toda uma classe) sobre as
razões de certos fatos e sobre os meios para convertê-los, de ocasião de vassalagem, em
bandeira de rebelião e de reconstrução social (GRAMSCI, 2004, p. 58).
É notável a maneira assaz expressiva com que o autor arremata sua avalião
assinalando que a forma da cultura enciclopédica sem compromisso com a
transformação social é extremamente prejudicial, sobretudo para o proletariado, servindo
apenas para dar falsa notoriedade às pessoas que acreditam ser superiores ao resto da
humanidade unicamente por terem acumulado na memória alguns dados e
determinadas datas.
É preciso perder o hábito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual
o homem é visto apenas sob a forma de um recipiente a encher e entupir de dados
empíricos, de fatos brutos e desconexos, que ele depois deverá classificar em seu cérebro
como nas colunas de um dicionário, para poder em seguida, em cada ocasião concreta,
responder aos vários estímulos do mundo exterior. [...] Serve para criar aquele tipo de
intelectualismo balofo e incolor, tão bem fustigado duramente por Romain Rolland,
intelectualismo que gerou toda uma caterva de presunçosos e sabichões, mais deletérios
para a vida social do que os micróbios da tuberculose e da sífilis o são para a beleza e a
saúde física dos corpos (GRAMSCI, 2004, p. 57).
Dito isto, é possível compreender melhor a alise de Gramsci sobre a necessidade de
modificar o processo de formação no intuito de pôr fim à crise que se instaura no sistema
escolar a partir da cisão entre a capacidade de trabalhar manual e tecnicamente e
desenvolver as máximas potencialidades do intelecto. Num de seus Escritos Políticos
denominado O privilégio da ignorância (2004, p. 116), esmiuçando as contradições da
conservação do poder burguês, afirma que a mediocracia é estruturada de forma que
exista uma minoria de intelectuais e estudiosos para a manutenção dos negócios e das
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relações e sentencia que, para haver liberdade, é preciso que a educação do proletariado
seja efetivada, cabendo exclusivamente a eles a resolução deste problema.
Os burgueses podem até ser ignorantes. Mas não os proletários. Os proletários têm o dever
de não ser ignorantes. A civilização socialista, sem privilégios de casta e de categoria, exige
para realizar-se plenamente que todos os cidadãos saibam controlar o que seus
mandatários decidem e fazem em cada caso concreto. Se os sábios, se os técnicos, se os
que podem imprimir à produção e às trocas uma vida mais intensa e rica de possibilidades
forem uma egua minoria, não controlada, essa minoria pela própria lógica das coisas
tornar-se-á privilegiada, impo sua ditadura (GRAMSCI, 2004, p. 117, grifos nossos).
Refletindo sobre a questão do trabalho como elemento de superação do capital, torna-
se claro que teoria e prática jamais conseguirão se fundir enquanto estiverem a serviço
das necessidades do mercado, da burguesia e dos interesses das classes dominantes.
Ao negar o capital, Gramsci (2004) caminha na dirão da proposta marxiana politécnica
que, agregada à escola unitária, permitirão o desenvolvimento pleno da sociedade,
organizada com base no trabalho livremente associado. Jimenez (2001, p. 78) faz ainda
a ressalva de que, ao submeter a formação do trabalhador ao escopo das competências
e habilidades exigidas pelo mercado, o atual modelo de organização e gestão do trabalho
acaba por negar o vínculo entre a práxis do trabalho manual e o saber intelectual, teórico.
Ao analisar a divisão do trabalho, Marx guarda uma diferença em relação a outros
autores contemporâneos que é, segundo a análise de Machado (1991), partir do
pressuposto de que ela o se eternizaria, bem como todo o sistema de alienação dela
decorrente. Marx tinha plena convicção do tipo de ensino que deveria ser reivindicado
pela classe trabalhadora. A superação dos obstáculos para atingir este fim estaria contida
na educação integral por ele idealizada. Marx e Engels (2004, p. 107) assim enxergam
a dialética entre complexo educativo e sociedade: se por um lado, se tornanecessário
modificar as condições sociais para criar um novo sistema de ensino; por outro, falta um
sistema de ensino novo para poder modificar as condições sociais. Consequentemente,
é necessário partir da situação atual.
Fica evidente em tal dialética que a lógica do oferecimento da formação estreita precisa
ser quebrada para que as classes dirigentes não se perpetuem no domínio e liderança
do povo. Ofertar ensino no sentido amplo significa partir da concepção de totalidade, não
de segregação classista e fragmentação de conhecimentos e conteúdos. Educar para a
emancipação humana, deve ser antes de tudo, aproximar o indivíduo dos processos de
criação, numa relação dialética com a práxis social determinada ao longo da história.
A POSSIBILIDADE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL: APONTAMENTOS
INICIAIS E FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DA RELAÇÃO TRABALHO E EDUCAÇÃO
Destaca-se, já de início, o significado dos estudos empreendidos por Lucs (1979;
2012), convictos da necessidade de resgatar a teoria marxiana a fim de compreender os
rumos da humanidade diante do caos social instaurado pela sociedade do trabalho
estranhado, tratado como mercadoria e rebaixado às necessidades capitalistas. A fim de
construir a análise em terreno firme, toma-se como ponto de partida a base ineliminável
do mundo dos homens: o trabalho. Sobre essa afirmação, para refutar considerões
reducionistas, faz-se oportuno esclarecer que o trabalho funda, mas não esgota o ser
social, pois, a cada necessidade satisfeita, surgem outras num movimento contínuo e
com infinitas possibilidades. Desse modo, o desenvolvimento do ser social faz brotar
necessidades e problemas também mais complexos que não podem ser resolvidos na
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esfera do trabalho. Em resposta, surgem outras esferas de atividades, novos complexos,
como por exemplo, a linguagem, a ciência, a educação, a arte, a política etc.
É de grande valia o legado de György Lukács (2012), sobretudo sua Para uma Ontologia
do Ser Social extraída da obra de Marx. O rigor teórico - fundamentado na concepção
de totalidade - e a maturidade filosófica do autor húngaro permitiram o afastamento das
interpretações deterministas, vulgares e economicistas da teoria marxiana, aclarando a
perspectiva do materialismo hisrico-dialético contida na obra do grande pensador
alemão. Como ponto de partida, a ontologia marxiana abre uma veemente distância da
noção abstrata contida na Fenomenologia do Espírito de Hegel, priorizando, assim, o
próprio homem. Logo, o protagonismo ontológico não se encontra no ser abstrato
pensante, mas no ser concreto, histórico, efetivo, fixado num complexo tangível. Am-
se ao homem cujas forças objetivas geram objetos igualmente objetivos, resultantes da
objetivação do sujeito.
Tonet (2003) afirma que, já nos Manuscritos econômicos-filosóficos estão as linhas
gerais de uma ontologia do ser social. Maria Orlanda Pinassi, prefaciando a edição de
Para uma Ontologia do Ser Social I (2012, p. 1), assinala que Lukács apreende do jovem
Marx o caráter totalizador e unitário da dialética materialista e as ricas possibilidades
abertas pela definição de essência gerica do ser queo se pode restringir à forma
fenomênica de classe.
Sem perder de vista a totalidade, a ontologia marxiana não nega a subjetividade. Marx
encontra, no ato de origem do ser social, a natureza e a unidade entre subjetividade e
objetividade, na perspectiva de que a subjetividade também é uma construção histórica,
criada a partir da objetividade, numa relação dialética denominada práxis. Tal relação
garante uma articulação indissolúvel entre consciência e realidade, reconhecendo a
participação efetiva que a subjetividade tem nos processos de objetivação (TONET,
2005, p. 54). Desta forma, segundo aduz Lima (2010), romper com o idealismo hegeliano
não significou, para Marx, negar a subjetividade, mas compreender que os homens
constroem sua hisria por meio das objetivações e prévias-ideações e o por influência
de nenhuma força ou ser transcendente.
Segundo esclarecem Lessa e Tonet (2008), o pressuposto do trabalho pode ser
verificado historicamente em todas as sociedades e, o fato de poder ser comprovado na
realidade, guarda a distinção do pensamento de Marx em relação às correntes filosóficas
que se orientam a partir de deduções ou conjecturas. Conforme premissas marxianas, a
partir dos novos conhecimentos e habilidades adquiridos nos processos de
transformação da natureza, o indivíduo também se constrói. A transformação do meio
através do trabalho acaba por gerar componentes inéditos, que não existiam na esfera
natural biológica. Estes processos de criação do novo não se limitam apenas à produção
de objetos, pois ao transformar o meio em que vive, o homem também se transforma,
passando de ser biológico a ser social. Por isso a ideia retrocitada de que a atividade vital
funda uma nova esfera do ser.
Assim, a partir do trabalho,
[...] dá-se ao mesmo tempo ontologicamente a possibilidade do seu desenvolvimento
superior, do desenvolvimento dos homens que trabalham. Já por esse motivo, mas antes
de mais nada porque se altera a adaptação passiva, meramente reativa, do processo de
reprodução ao mundo circundante, porque esse mundo circundante é transformado de
maneira consciente e ativa, o trabalho torna-se não simplesmente um fato no qual se
expressa a nova peculiaridade do ser social, mas, ao contrário precisamente no plano
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ontológico -, converte-se no modelo da nova forma do ser em seu conjunto (LUKÀCS, 1978,
p. 5-6).
Na ontologia marxiana, conforme entende Lukács (1978), a estrutura fundamental do ser
revela três grandes esferas: inorgânica, orgânica e social. A constituição do homem
como ser social, embora consista numa ruptura com a esfera meramente orgânica do
ser, não significa a eliminação das esferas ontológicas das quais se originou (LIMA,
2009, p. 23, grifo da autora). Logo, o ser social se desenvolve numa outra esfera de ser,
contudo, sem perder sua base orgânica e inorgânica. Dizendo de outra forma, a relação
entre as três esferas ontológicas do ser é constante, não perde seu caráter biológico e a
esfera orgânica e inorgânica não desaparecem.
Os processos sicos e qmicos da esfera inorgânica se efetivam em todas as outras
esferas e o cessam nunca, pois o trabalho só se realiza com esta mediação da
natureza. O que ocorre é que, na esfera do ser social, o momento predominante passa
a ser o social, ou seja, o que passa a determinar a vida dos seres humanos não são mais
seus instintos naturais, a reprodução do mesmo e sim o mundo dos homens constituído
pela ação dos próprios homens. Nas palavras de Engels (2004, p. 3),
[...] a o não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo
trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do
aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos sculos e ligamentos e, num período
mais amplo, também pelos ossos; unicamente pela aplicação sempre renovada dessas
habilidades transmitidas a funções cada vez mais complexas foi que a o do homem
atingiu esse grau de perfeição [...].
Consolidada definitivamente a separação entre o homem e o macaco, num movimento
contínuo de desenvolvimento, Engels (2004) destaca o aparecimento de um novo
elemento: a sociedade, realidade na trajetória do homem acabado. Neste ponto, o marco
do trabalho aparece subdividido em dois aspectos: primeiro como fator de evolução; e,
segundo, como fator que difere os homens das outras espécies.
É importante ressaltar que o entendimento da realidade como construção humana, leva
a entender a possibilidade de transformação do real, uma vez que a realidade é
construída e reconstruída pelo conjunto da humanidade ao longo da história. Assim
como nós, seres humanos, também somos partícipes dessa construção, que se
expressa em forma de individualidade própria da natureza do homem. Então, pode-se
concluir que o destino da humanidade está nas mãos do conjunto da humanidade.
Nesse sentido, a ciência e a técnica m seu nascimento na busca dos meios, dado que
o saber fazer e os conhecimentos das leis naturais se transmitem aos instrumentos,
estes passam a ser vetores materiais de continuidade dos avaos obtidos, bem como
a base para os progressos do trabalho vindouro. Segundo a análise lukacsiana aqui
empreendida, o conhecimento absoluto do real é impossível, mas, ainda assim, não
afasta a possibilidade de que o homem atue, mesmo sem ter um controle total das
consequências de seus atos. Cada ato de trabalho tem, em seu cerne, um determinado
conhecimento da realidade, que, ao se realizar, impulsiona o ser social para além desse
conhecimento. O trabalho faz com que o conhecimento do homem acerca da realidade
e acerca de si mesmo, torne-se cada vez mais ampliado.
Compreende-se, por intermédio do trabalho, que o surgimento da educação
acompanhou o surgimento do próprio homem. Recuperando o percurso feito por Saviani
(1994, p. 151), a partir de sua afirmativa de que o problema das relações entre educação
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e trabalho tem sido abordado de diferentes maneiras, e partindo de uma premissa
lukacsiana, segundo a qual a relação estabelecida é de dependência ontológica,
autonomia relativa e reciprocidade dialética, ressaltamos que o complexo educacional
resguarda a necessidade universal do ser social ao longo dos tempos.
De acordo com Saviani (2012, p. 13), a prevalência do trabalho demanda articular ideias,
conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos a fim de [...] produzir direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
historicamente e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Dada a prioridade ontológica
exercida pelo trabalho sobre os demais complexos, compreende-se que o complexo
educativo possui, em relação a ele, um vínculo de dependência ontológica, autonomia
relativa e determinação recíproca. Cabe enfatizar, entretanto, que a educação não é um
complexo totalmente determinado, assim como não é inteiramente determinante. Assim,
conforme aduz o autor supracitado, o que não é assegurado pela natureza necessita ser
produzido historicamente pelos homens, inclusive os próprios homens. Pode-se afirmar
que a natureza humana não é dada ao homem, mas elaborada por ele sobre uma base
biofísica.
[...] o trabalho é antes de mais nada, em termos genéticos, o ponto de partida da
humanização do homem, do refinamento das suas faculdades, processo do qual não se
deve esquecer o donio sobre si mesmo. Além do mais, o trabalho se apresenta, por um
longo tempo, como o único âmbito desse desenvolvimento; todas as demais formas de
atividade do homem, ligadas aos diversos valores, só se podem apresentar como
autônomas depois que o trabalho atinge um nível relativamente elevado (LUKÀCS, 1979, p.
87).
A partir daí comprova-se a premissa de que a educação é uma atividade própria dos
seres humanos e, ao mesmo tempo, uma exigência para a continuidade da existência
dos homens. Assim, a compreensão da natureza da educação passa, necessariamente,
pela compreensão da natureza humana. Em acordo com Saviani (2012), credita-se ao
objeto da educação o desenvolvimento dos elementos materiais e culturais que precisam
ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que esta se humanize. A
sociedade capitalista, todavia, tem sonegado aos filhos dos trabalhadores o direito ao
conhecimento acumulado, ao melhor já produzido pela humanidade, articulando a
transmissão do conhecimento às necessidades do grande capital, sob a scara de
uma suposta era da técnica, da tecnologia, do conhecimento, da informação, e da
liberdade de mercado.
A já mencionada prioridade ontológica do trabalho em relão à educão se desdobra,
de acordo com Lukács (2012) em dois momentos: primeiro na origem do ser social, pelo
fato do trabalho ser a categoria fundante; segundo na reprodução social, porque a
reprodução biológica da existência gera a base de todas as manifestações vitais. A
segunda manifestação jamais seria possível sem a primeira.
Nos primórdios da humanidade, a educação estava impregnada na totalidade social,
ocorrendo de forma espontânea, articulando o singular e o genérico, possibilitando a
continuidade do ser social. Não é antecipado deixar claro que, quando analisamos a
relação ontológica entre trabalho e educação, partimos do sentido amplo deste
complexo, do sentido lato. Cabe resgatar as seguintes considerações, sintetizando que
a educação
[...] como um complexo universal, tem uma função específica que ocorre em qualquer forma
de sociabilidade este é o sentido lato da educação e uma função determinada
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predominantemente pela forma de sociabilidade na qual se encontra inserida este é o
sentido restrito da educação (SOBRAL, 2010, p. 25-26).
Dito isso, abre-se um parêntese para explicitar as devidas distinções entre o sentido lato
e o sentido stricto da educação. Para tanto, recorre-se às elucidações de Tonet (2013, p.
243 244, grifos nossos):
É preciso, porém, deixar claro que uma coisa é a natureza essencial de determinado
fenômeno social; outra coisa é o seu papel em determinado momento do processo
social. A primeira é encontrada quando se captam os elementos que conferem identidade
àquele determinado momento de ser. (...) A segunda o papel histórico só pode ser
identificada por uma análise concreta de cada momento histórico. Pode ser que os dois
coincidam, mas também pode ser que se oponham. Nada disso pode ser decidido
apenas pela identificação da natureza essencial daquele momento do ser. Sendo assim,
relativamente à educação, é preciso ter claro que não se pode deduzir da sua esncia qual
o seu papel em determinada forma de sociabilidade ou em um dado momento histórico.
Com efeito, sobre a natureza essencial da educação no sentido amplo, podemos
assegurar que este complexo resguarda a necessidade da transmissão do
conhecimento historicamente acumulado para efeito de novas objetivações no processo
de reprodução social.
A educação em sentido estrito, nas diferentes sociedades de classes (escravagismo,
feudalismo, capitalismo), desponta para atender interesses da minoria. De acordo com
Lima (2009), guarda uma diferença fundamental em comparação com a educação em
sentido lato, que é a relação de dependência da divisão de classes. Assim, a educão
stricto sensu acaba por assemelhar-se ao complexo do Direito pelo fato de que, dentre
outras razões, surge visando atender interesses particulares e não universais, tendo sua
reprodução influenciada por antagonismos de classe.
Nos planos burgueses, determinantes na política e regulação do ensino, só há
possibilidade de instrução fragmentada e, no limite, a oferta de uma propalada
qualificação profissional aos trabalhadores e seus filhos, num processo escancarado de
mercantilização da educão, tornando a perspectiva de uma formação omnilateral cada
vez mais distante. Na maioria das vezes, os indivíduos das classes dirigidas
[...] só tem acesso à aproprião das aquisições produzidas pela humanidade dentro de
limites inferiores, fato decorrente do modo de produção da vida material próprio de uma
sociedade cindida em classes, na qual uma minoria tem acesso à riqueza cultural
historicamente acumulada, enquanto a maioria sobrevive à margem desta (ARAUJO, 2012,
p. 197).
Nesses termos, a trama de relações estabelecidas pela sociedade capitalista, que
concentra nas os de uma classe dominante a riqueza material e intelectual produzida
pela humanidade, erguida sob as formas de organização do trabalho e da produção que
são negadas ao trabalhador e que, segundo observa Araujo (2012), impede o indivíduo
de estabelecer consigo aquilo que é próprio do gênero humano. Isto é, impossibilita a
apropriação pelo homem de toda a riqueza simbólica e material produzida e acumulada
de forma objetiva no decorrer da história.
A lógica destrutiva do capital tende a agravar cada vez mais os problemas de ordem
social, não pela falta de desenvolvimento das forças produtivas, mas pelo tipo de
relações sociais que regem este desenvolvimento. Uma vez compreendida esta
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realidade, tornam-se estéreis as tentativas de buscar através de atos jurídicos, políticos
ou educativos, formas de controlar o desajuste social causado pelas leis elementares do
capitalismo. Daí porque Marx chama de férreas as leis que regem o capitalismo
(TONET, 2003, p. 203), porque enquanto estas leis permanecerem vigentes, a lógica da
desigualdade não pode ser controlada.
É possível aduzir que as relações educativas estabelecidas entre o sujeito histórico e a
coletividade através da apropriação da cultura, estão submetidas à decadência da
sociedade capitalista, na qual o desenvolvimento humano é submetido às contradições
decorrentes da exploração do homem pelo homem, que antagoniza seres de uma
mesma espécie, uma vez que os interesses das duas classes antagônicas em disputa
são irreconciliáveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das particularidades da educão escolar atual, manteve-se ao longo da história
a perpetuação do seu caráter classista, já que ainda hoje é pensada e organizada a partir
da lógica de manutenção da existência de classes. A bipolaridade instaurada na
educação formal tem sua formulação na reprodução do capital e os fins educacionais
permanecem afinados com os objetivos finais de formar o trabalhador para a produção
cada vez mais especializada. Logo, as bases do modo de produção na qual está inserida
determinam o tipo de escola que vigorará. De acordo com o apanhado de Tonet (2013),
apenas com o advento do capitalismo a educação passou a ocupar um lugar de
destaque, passando a constituir um elemento cada vez mais central do processo de
produção e reprodução social.
Através de Lukács (1978; 1979; 2012) foi possível compreender não ser possível traçar
um limite preciso entre educação em sentido lato e educação em sentido estrito, pelo fato
de serem processos de reprodução social de influência mútua, com interferência direta
nos mecanismos de objetivação. Nessa relação, de acordo com Lima (2009), o
movimento predominante, novamente, é a totalidade social.
Aos trabalhadores é oferecida uma formação aligeirada, frágil em substância e
desarticulada com a realidade, de modo a não ameaçar a posição de classe explorada
dentro do sistema. Não tão distante dessa realidade, a classe consolidada no poder, de
posse da organização curricular e escolar, organiza o pensamento social em cada
momento histórico em que se firmou como classe predominante e influente. Marx (2008,
p. 41-42) complementa o seguinte: O que demonstra a história das ideias senão que a
produção intelectual se transforma com a produção material? As ideias dominantes de
uma época sempre foram as ideias da classe dominante”. A teoria da escola dualista tem
muito a nos dizer sobre as formas recentes de rearticulação do domínio ideológico dos
grupos dominantes, sendo um reflexo da disparidade entre a educação oferecida à
classe trabalhadora e a organizada pela classe dominante para ela mesma.
No momento em que a educação em sentido restrito incide sobre a educação em sentido
lato, acaba por estender a ela a ideologia predominante que influencia sua reprodução.
Entretanto, Lima (2009) relembra o fato de que os processos educacionais em sentido
amplo, cuja efetivação e desenvolvimento dependem da participação de todos os
sujeitos que formam a totalidade social, podem reproduzir práticas que, muitas vezes, se
sustentam em interesses contrários àqueles vinculados à educação em sentido restrito.
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A formação omnilateral em Marx constitui uma das categorias que situa o trabalho como
elo de desenvolvimento humano. Embora, como já dissemos, a educação não esteja
organizada de forma sistemática nos escritos marxianos, apresenta-se como um
princípio básico na perspectiva da formação do homem para a emancipação humana,
ampliando-se, inclusive, em outros aspectos da vida em comum para o construto da
sociedade comunista. A formação integral defendida por Marx constitui, igualmente, o
prelúdio de toda uma sociedade justa, com igualdade de oportunidades, em que trabalho
e instrução estariam definitivamente fundidos numa única chave de transformação social.
Acreditava Marx (1989) que o germe da educação do futuro, formadora de homens
plenamente desenvolvidos por meio da elevação da produção social, tinha um
importante assento no sistema fabril. Contudo, as determinações do sistema capitalista
afastaram - e muito - o trabalho produtivo do processo genuíno de trabalho, estando a
sociedade dividida entre os que trabalham e os que vivem à custa de trabalho alheio.
Dito de outro modo, a divisão social internacional do trabalho sentencia a divio da
sociedade em classes a partir do momento em que despedaça, nos termos de Marx
(2010), trabalho material e trabalho espiritual.
Não bastasse a classe trabalhadora ter desuportar todos os fardos da sociedade sem
desfrutar de suas vantagens (MARX, 2010, p. 41), é também a que mais sofre com o
processo de desumanização de estar alheia aos objetos de seu trabalho, de ter anulada
sua dimensão humana, de ter acesso apenas a uma formação unilateral, muito aquém
de suas potencialidades. Diante dessa realidade condicionada por uma prática social e
uma formação unilateral, Manacorda (2010) reaviva que a classe excluída deverá libertar
consigo todas as demais através da recuperação da individualidade humana, expressa,
ao mesmo tempo, na coletividade.
Nos marcos da Revolução Industrial, e a partir da demanda de mudanças na formação
humana por ela exigida, a educação formal, antes privilégio de poucos, torna-se direito
universal, mascarada nos discursos disfarçados em meritocracia, gratuidade e laicidade.
Todavia, os moldes industriais de classe nunca tornaram possível o conhecimento e
desenvolvimento de um ocio completo, circunscrevendo o trabalhador na moderna
tecnologia industrial, descartável, destinada a ser superada por ela mesma, necessitada
de constantes alterações ao tornar-se rapidamente obsoleta. A indústria moderna
transforma, continuamente, a base técnica de sua produção sem que isso represente
uma busca salutar por excelência ou aperfeiçoamento. Ao contrário, desarticula e
desmancha as funções sociais do processo de trabalho, posto que revoluciona
constantemente a divisão do trabalho dentro da sociedade e lança, ininterruptamente,
massas de capital e de trabalhadores de um ramo de produção para outro. No entanto,
conclui Marx (2004, p. 77), reproduz em sua forma capitalista a velha divisão do trabalho
com suas peculiaridades rígidas.
A formação tecnológica proposta por Marx conjectura a unidade absoluta entre teoria e
prática, partindo da atividade produtiva para a atividade social, de forma a garantir a
possibilidade de manifestação plena e total de si mesmo, independente das ocupações
específicas que cada indivíduo exerce (MANACORDA, 2010, p. 48). Na percepção do
filósofo aleo, unicamente a partir desta unidade entre formação manual e formação
intelectual, seguida da práxis social, torna-se possível a formação omnilateral por ele
idealizada e compartilhada. Qualquer formação que perca de vista a superação do
modelo de produção capitalista afasta-se da perspectiva omnilateral, e ainda que, de
algum modo, consiga aliar trabalho produtivo e instrução, conserva o caráter unilateral.
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Logo,a liberdade não é um estado; é uma atividade histórica que cria formas
correspondentes de convivência humana, isto é, de espaço social (KOSIK, 2002, p.
241).
A prodão deve estar voltada à universalização, buscando eliminar o refinamento da
especialização, caracterizando a chegada do ser social à omnilateralidade, representada
pela multiplicidade de habilidades e atividades, bem como o aumento do tempo livre para
o gozo de bens espirituais e materiais, conforme nos coloca Manacorda (2010). Essa
realidade peremptória requer a associão entre indústria e ciência nas bases da
produção, eliminando não apenas a divisão do trabalho, mas a divisão do ensino,
oportunizando a todos, de forma equânime, as mesmas chances, conduzindo tamm
e principalmente os filhos dos trabalhadores a um desenvolvimento superior, pleno,
consciente e maduro:
Ao reafirmar o caráter formativo do trabalho constituído nesta sociedade de forma
unilateral, a formação humana assume, inegavelmente, o caráter contraditório da
unilateralidade, visto que integra as bases materiais que condicionam a atividade
humana. Assim, ao passo que Marx nega o trabalho em sua forma alienada como elo
para o processo formativo, reafirma sua convicção na formação humana como elemento
de superação da sociedade de classes através da formação omnilateral.
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Data da submissão: 11/12/2018
Data da aprovação: 25/05/2019