DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.46953
SEÇÃO: ENTREVISTAS
Professora universitária negra e trans: entrevista com Feibriss Cassilhas
Profesora universitaria negra y trans: entrevista con Feibriss Cassilhas
Black and trans professor: interview with Feibriss Cassilhas
Maylla Monnik Rodrigues de Sousa Chaveiro 1 ,
Feibriss Henrique Meneghelli Cassilhas 2 , Bruna Lopes Couto 3
RESUMO
Este texto é resultado da entrevista com a professora Feibriss Henrique Meneghelli Casillas, da Universidade Federal da Bahia, e tem como objetivo compreender sua trajetória e mapear estratégias de resistência que permitiram adentrar o espaço da universidade enquanto docente, rompendo os sistemas de opressão colonial. A entrevista foi feita com um roteiro semiestruturado, tendo por base a perspectiva teórico-metodológica da interseccionalidade. A partir desse diálogo, refletiu-se acerca de questões como: desafios em ser professora negra e trans na universidade; estratégias de enfrentamento ao racismo estrutural a partir da docência; importância do aquilombamento enquanto estratégia política de fortalecimento de intelectuais negras na academia; reconstrução de uma democracia na sociedade brasileira por meio da ruptura com a supremacia branca cis-heteropatriarcal que embasa a construção da ciência moderna. Destarte, o encontro com Feibriss traz à tona o entendimento e a força de sua trajetória enquanto pessoa trans feminina, negra e professora universitária, de modo a auxiliar outras pessoas negras, as quais pretendem seguir pelo caminho acadêmico. Por fim, a entrevista também visa contribuir com a área de estudos de gênero, sexualidade, raça e etnia.
Palavras-chave: professoras negras universitárias; pessoa trans feminina; interseccionalidade; subjetividade.
RESUMEN
Este texto es resultado de una entrevista con la profesora Feibriss Henrique Meneghelli Casillas, de la Universidad Federal de Bahía, y tiene como objetivo comprender su trayectoria y mapear estrategias de resistencia que le permitieron ingresar al espacio universitario como docente, rompiendo sistemas de opresión colonial. La entrevista se realizó mediante un guión semiestructurado, basado en la perspectiva teórico-metodológica de la interseccionalidad. A partir de este diálogo reflexionamos sobre temas como: desafíos de ser profesor negro y trans en la universidad; estrategias para enfrentar el racismo estructural desde la docencia; importancia del aquilombamento como estrategia política para fortalecer a los intelectuales negros en el mundo académico; reconstrucción de una democracia en la sociedad brasileña a través de la ruptura con la supremacía blanca cis-heteropatriarcal que sustenta la construcción de la ciencia moderna. Por lo tanto, el encuentro con Feibriss saca a la luz la comprensión y la fuerza de su trayectoria como transfemenina, negra y profesora universitaria, para ayudar a otras personas negras que pretenden seguir el camino académico. Finalmente, la entrevista también pretende contribuir al área de estudios de género, sexualidad, raza y etnia.
Palabras clave: profesoras universitarias negras; transfemenina; interseccionalidad; subjetividad.
ABSTRACT
This text is the result of an interview with professor Feibriss Henrique Meneghelli Casillas, from the Federal University of Bahia, and aims to understand her trajectory and map strategies of resistance that allowed her to enter the university space as a professor, breaking systems of colonial oppression. The interview was carried out using a semi-structured script, based on the theoretical-methodological perspective of intersectionality. From this dialogue, we reflected on issues such as: challenges in being a black and trans professor at the university; strategies for confronting structural racism from teaching; importance of aquilombamento as a political strategy for strengthening black intellectuals in academia; reconstruction of a democracy in Brazilian society through the rupture with the cis-heteropatriarchal white supremacy that underpins the construction of modern science. Therefore, the meeting with Feibriss brings to light the understanding and strength of her trajectory as a trans female, black person and university professor, in order to help other black people, who intend to follow the academic path. Finally, the interview also aims to contribute to the area of gender, sexuality, race and ethnicity studies.
Keywords: black professors; transfeminine; intersectionality; subjectivity.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é parte de uma pesquisa chamada Professoras universitárias negras: uma perspectiva interseccional.
Kimberlé Crenshaw, ativista negra estadunidense e advogada defensora dos direitos humanos, em especial, dos direitos das mulheres em escala global, foi a responsável por cunhar o termo “interseccionalidade” em um artigo publicado em 1989, cujo título pode-se traduzir como Desmarginalizando a intersecção de raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina antidiscriminação, teoria feminista e políticas antirracistas.
Segundo a autora:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (Crenshaw, 2002, p. 177).
A interseccionalidade é uma ferramenta analítica e metodológica muito relevante para operar no combate às injustiças e desigualdades sociais, pois permite refletir acerca da complexidade que emerge na convergência de múltiplas opressões: “Esta ferramenta conceitual, a qual opera em múltiplas combinações, tem sido muito utilizada para entender conceitos de constituição de identidades de mulheres negras, lésbicas, pessoas transexuais, migrantes” (Chaveiro, 2023, p. 74). Maior entendimento e ampliação da perspectiva da interseccionalidade têm sido construídos com o avanço de publicações e estudos na área, apesar do conceito ter sido cunhado em 1989 e a teoria ter sido posta em 1850.
Carla Akotirene, ativista negra brasileira, assistente social e pesquisadora da epistemologia de gênero e relações étnico-raciais, discorre sobre a necessidade de ir além do entendimento sobre o conceito de interseccionalidade, e lutar pelo reconhecimento de quem realmente são as pessoas acidentadas pelas matrizes de opressão, ou seja, pelo racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado (Akotirene, 2018).
A fim de refletir acerca da elaboração da ciência em universidades, é fundamental compreender o lugar social de docentes que estão construindo saberes. Como reflexo do racismo estrutural (Almeida, 2019), as diretrizes universitárias, por meio de seu funcionamento, forma de inclusão, conteúdo e forma como ele é cobrado nas provas, a sociedade brasileira manteve as instituições acadêmicas como lugar exclusivo para pessoas brancas. Nesse sentido, considerando a academia como um espaço de construção de conhecimento científico, buscamos por meio deste artigo trazer a narrativa e perspectiva de uma professora universitária negra e trans, a qual conseguiu vencer as barreiras impostas pela realidade estruturalmente racista.
Patrícia Hill Collins, mais uma grande autora que conduziu os estudos da história da interseccionalidade, elucidou alguns temas em seus estudos, sendo esses: desigualdade social, relações de poder interseccionais, contexto social, relacionalidade, complexidade e justiça social (Collins; Bilge, 2021). Desse modo, ao ser dada maior visibilidade para uma entrevistada negra, trans feminina e professora acadêmica atuante no Brasil, estamos auxiliando na quebra de paradigmas sociais, além de contribuir com a área de estudos de gênero, sexualidade, raça, e outros marcadores sociais da diferença. Considerando o baixíssimo volume de pesquisas e entrevistas publicadas que foram feitas em parcerias com pessoas trans, também poderá auxiliar outras pessoas negras que almejam construir carreira acadêmica – um dos objetivos primordiais que regeu a construção da entrevista.
Portanto, este texto é resultado da entrevista com a professora Feibriss Henrique Meneghelli Cassilhas e tem como objetivo compreender sua trajetória e mapear estratégias de resistência que permitiram adentrar o espaço da universidade enquanto docente, rompendo os sistemas de opressão colonial. Inicialmente, elaboramos as perguntas do roteiro semiestruturado, as quais foram embasadas na ferramenta teórico-metodológica da interseccionalidade.
Dessa forma, as perguntas foram contextos para que Feibriss pudesse explanar acerca das múltiplas opressões por ser professora universitária negra e trans, além de ser contexto para apresentar suas estratégias de resistência. A entrevista durou cerca de 1 hora, sendo realizada em abril de 2023, por meio do aplicativo Google Meet e foi transcrita manualmente.
A seguir, uma breve descrição de nossa entrevistada: Feibriss H. M. Cassilhas é professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na área da graduação em Letras Inglês e atua no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. É doutora e mestra em Estudos da Tradução pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo sido bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) tanto no mestrado quanto no doutorado. Formou-se em licenciatura em Língua Inglesa e bacharelado em Tradução pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em 2009. É membra fundadora do Sarau Vozes Negras 4 (@vozesnegras no Facebook e no Instagram), um coletivo negro de práticas poéticas-pedagógicas interseccionais. Entre as atividades do sarau estão performances poéticas de autoria negra (presenciais e on-line), realização de oficinas de escrita e produção do projeto de entrevistas conVersos: Papos Afroliterário. Desenvolve o projeto de pesquisa Tradução-contação (de história) comentada: diálogos entre a Contação de Histórias de autoria negra (LGBTQIA+) e a Prática Tradutória/UFBA. Por fim, coordena o Corsciência: Grupo de pesquisa de tradução e contação de histórias.
Considerando sua produção científica, artística e de militância, a professora Feibriss tem contribuído intensamente para a desconstrução da colonialidade no espaço acadêmico. A partir de sua própria existência, Feibriss opera na intersecção entre raça, gênero, identidade de gênero, orientação sexual e classe social; em suma, suas produções refletem suas experiências de vida.
A autora Djamila Ribeiro enfatiza que “[...] quando falamos de pontos de partida, não estamos falando de experiências de indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania” (Ribeiro, 2017, p. 61). Assim, este texto oferece elementos para o entendimento desses processos, na medida em que elucida as vivências tão singulares de uma professora universitária negra e trans.
A partir da compreensão e dos estudos expostos, situamos a interseccionalidade da entrevista no momento em que compreendemos Feibriss como uma pessoa trans feminina e negra, a qual se encontra entre eixos de violência atemporais na sociedade. Desse modo, esta entrevista poderá auxiliar outras pessoas negras e trans que almejam construir carreira acadêmica e, assim, fortalecer o cenário de produção científica em perspectivas plurais no Brasil.
Além disso, a partir deste texto é possível compreender a relação estabelecida entre a prática docente e a interseccionalidade. Uma pessoa que esteja situada socialmente entre os eixos de opressão existentes no sistema colonial carrega consigo formas muito potentes para refletir as perspectivas metodológicas e epistemológicas utilizadas nas universidades.
Portanto, este texto irá percorrer discussões acerca de: 1) experiências pessoais e profissionais de Feibriss; 2) perspectivas políticas no enfrentamento ao racismo, machismo e transfobia; 3) discussões sobre importantes referências acadêmicas neste cenário; 4) estratégias de resistência e de mobilização para o fortalecimento da democracia. Por fim, espera-se que esta entrevista possa lançar luz sobre as peculiaridades nas experiências de professoras universitárias negras e trans por meio da interseccionalidade.
ENTREVISTA
Professora Feibriss Cassilhas, como você se identifica socialmente?
Sou uma pessoa trans feminina, negra e não binária. As pessoas às vezes me chamam de mulher trans ou travesti, e geralmente não me importo com essas interpretações distintas de quem eu sou, contanto que me tratem no feminino, sinto-me respeitada em todos esses contextos, mas geralmente enquanto pessoa trans. Neste momento eu me identifico como trans feminina não binária.
Você poderia nos contar da sua trajetória pessoal e profissional?
Eu sou capixaba, filha de pais de classe média que, enquanto eu fui crescendo, foram se estabilizando financeiramente no serviço público – quando eu nasci, ainda estavam trabalhando em empresas particulares. O meu pai é professor de História e a minha mãe se aposentou pelo Instituto Federal do Espírito Santo. Então eles tiveram uma influência na minha escolha pelo serviço público – em ser funcionária pública também.
Eu sempre tive abertura para escolher o curso que eu queria. Pude estudar fora, em Mariana, na Universidade Federal de Ouro Preto. Eu tive esse apoio, então, fui intérprete, depois gostei da docência e decidi trabalhar no ensino superior, já na graduação. Cresci rodeada de livros e, às vezes, meu pai era professor nas escolas em que eu estudava. Ele era professor de escola pública (rede municipal do Espírito Santo), então sempre tive a presença dos meus pais, uma educação bem focada mesmo, com apoio dentro de casa, e uma das maneiras do meu pai passar a educação para a gente era contando as histórias pela noite. Foram momentos de afetividade, intimidade e, também, acredito que um projeto educacional.
Meu pai queria fazer Literatura (Letras), mas depois acabou entrando em História e eu só descobri isso na noite em que ia me mudar para fazer faculdade em Mariana, ele foi me levar no dia em que me mudei. Tenho muitos livros em casa (na casa dos meus pais) e no meu doutorado achei importante registrar de alguma forma essa relação do meu pai com a contação de histórias, que foi tão presente na minha vida, na da minha irmã e, agora, na vida também do meu sobrinho afilhado.
Além disso, como transicionei enquanto fazia o doutorado, acaba sendo uma questão importante na minha tese quando luto contra essa neutralidade imposta ainda em alguns contextos acadêmicos. Com relação às minhas orientações, eu sempre fui tranquila, fui orientada majoritariamente por mulheres brancas feministas, então eu sempre tive esse espaço, por mais que socialmente a gente tenha muitas barreiras, eu tive muitos caminhos abertos em diversos contextos, além de caminhos fechados. Então é isso, a minha tese foi um momento de escrever sobre a minha transição e ver como isso me afetou enquanto pesquisadora, mas acho que a transição de gênero já havia começado no mestrado, eu só não tinha muita consciência dela assim, foi acontecendo, eu fui me permitindo e deixando ela acontecer.
Você acredita que existam algumas estratégias (pessoais, sociais e políticas) que te ajudaram a chegar até o ambiente acadêmico? Quais caminhos você indicaria para mulheres negras que têm essa vontade? Você poderia nos ajudar a construir essas rotas?
O meu caminho foi meio traçado pra isso. Desde quando eu era criança, estudar e fazer faculdade era o projeto da minha família pra mim e eu segui. Então, eu fiz o ensino fundamental em escola pública, mas o ensino médio em uma escola particular mais acessível, logo, fiz o terceiro ano junto com o pré-vestibular… Refletindo sobre a minha história, existem algumas coisas que eu gostaria de conversar com as pessoas que estão buscando uma trajetória acadêmica. Uma delas é o motivo pelo qual eu escolhi Letras e não um curso mais socialmente reconhecido. Eu queria fazer Letras para ser intérprete, e era até engraçado de ver que no período do pré-vestibular, quando eu falava que ia fazer Letras, não ouvia muita gente empolgada, mas quando falava que faria bacharelado em Tradução aí as pessoas achavam o máximo. Então, mesmo sendo preparada, eu fico pensando se o fato de eu ser uma pessoa negra não influenciou na minha decisão de escolher outros cursos, por mais que eu me encontre realizada na minha carreira, poderia ter tido uma história diferente.
Agora, para nós, pessoas negras, é importante o processo de aquilombamento para acessar a universidade. É indispensável buscar referências dentro dela, buscar projetos de extensão, oportunidades de sempre proporcionar o contato com a sociedade cada vez mais assim, pela extensão, principalmente. Eu tive a oportunidade de assistir a um evento acadêmico antes de entrar para a universidade e fez muita diferença, mas, antes disso, deixe-me falar um pouco mais do meu contexto familiar.
Meu pai tem pós-graduação e minha mãe também, ela já está aposentada e ele se aposentou agora de uma cadeira, está com uma cadeira para aposentar ainda. Então, eu tive algumas referências na minha família: uma prima da minha mãe que é professora universitária em uma faculdade particular de Vitória e uma tia formada em Letras – que já trabalhou com o ensino superior ou técnico, não me lembro ao certo. Embora eu, provavelmente, seja a primeira professora em uma universidade federal na minha família, tive essas referências.
Voltando ao evento que participei antes de entrar para a graduação… eu tive a oportunidade de assistir um evento de tradução na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), por conta da minha professora do curso de Inglês da extensão universitária da UFES chamado Centro de Línguas. Eu terminei meu curso de Inglês com dezoito anos, mas com dezessete eu tinha passado no vestibular na primeira vez que tentei.
O assunto nas aulas de Inglês era frequentemente o vestibular e quando eu falei que queria fazer Letras para ser intérprete, minha professora ficou empolgadíssima, eu falei que queria fazer Tradução, e ela falou que estava tendo um evento e eu fui assistir. Acho que era uma apresentação de comunicação, nem era de Inglês, mas de Espanhol, era uma crítica de traduções de Mafalda, e eu amei como que a tradução é trabalhada na academia – e isso me deu uma certeza do que eu queria fazer, do que eu queria ser.
Às vezes as portas estão fechadas, eu sei, mas precisamos derrubá-las. Obviamente a gente sabe que nem todo mundo vai ter acesso à internet, mas a universidade é muito mais acessível do que já foi. Existem muitos eventos on-line que ficam disponíveis no YouTube e no Instagram, por exemplo. É bom ir presencialmente também quando possível, ficar de olho na divulgação de eventos nos sites das universidades, buscar projetos de extensão porque, é isso, a universidade tá aí para ser ocupada, muitas vezes a gente não ocupa, a gente acha que nem pode ter acesso.
Eu lembro muito da minha experiência na UFSC em Floripa, quando a gente começou, projetos como o Prepara Ubuntu, que era um curso com foco em auxiliar na entrada e permanência de pessoas negras na universidade a partir também de uma filosofia afro-ancestral de pertencimento. Lembro que algumas pessoas negras relataram que não entravam na biblioteca da universidade, porque achavam que não podiam por causa do sistema de detecção de segurança da biblioteca, como se aquilo fosse um espaço limitado para quem está matriculado na universidade. Então é um sistema bem estruturado, uma coisa muito bem-feita ‘para que a gente ache que não pode acessar, por isso a gente precisa quebrar essas barreiras com o aquilombamento, é sempre a melhor opção, estarmos juntas e ver quem está lá dentro já. Temos que pensar nisso, a gente entende que não é só pesquisa que a gente tá fazendo, só lendo teoria, a gente precisa da prática. Sozinhos a gente não revoluciona nada.
Como você se sente sendo mulher, negra, trans e professora universitária dentro do ambiente acadêmico?
Eu não me coloco como mulher, eu não me vejo nessa categoria, coloco-me como pessoa trans feminina não binária, mas isso não me impede e não pode impedir as outras pessoas de ocuparem esse lugar como mulheres – até porque eu questiono a binaridade de gênero. Eu transito dentro de espaços da feminilidade, aí vai depender mais dos espaços do que de mim, não há muita diferença. Mas ao mesmo tempo quando você é professora numa universidade você tem um lugar de prestígio, então é mais fácil reivindicar o uso dos pronomes femininos dentro de uma universidade, porque se eu sou uma professora falando que os meus pronomes são ela/dela, a maioria das pessoas vai respeitar, porque é uma autoridade. Na rua já vai ser diferente, é mais comum passar por alguma situação de violência.
Mas ao mesmo tempo, também, eu uso da política de nome social, apesar de que tive dificuldades de acessá-la na UFBA, pois o sistema eletrônico não estava preparado para garantir este direito a uma professora trans. Foi difícil usar o nome social. Fiquei aproximadamente um ano sem poder usar meu nome social nos sistemas do meu trabalho, sem acesso a chamadas, não tendo meu nome divulgado junto das disciplinas que eu ministraria, por exemplo. Nos documentos redigidos por mãos humanas, a Feibriss já existia, como foi no caso das atas das reuniões e com colegas da área foi tranquilo também, mas quanto ao sistema eletrônico, por exemplo, não aparecia meu nome nas relações de disciplinas ofertadas, aparecia assim: “docente a ser contratado”, que foi a solução encontrada, pois o sistema puxaria do meu nome de registro ao invés do meu nome social.
É complicado também ser uma das poucas pessoas trans nesse espaço; temos que ocupá-lo e para isso precisamos de ações afirmativas. Ainda com relação ao impedimento do uso do nome social, o problema não foi não quererem alterar o meu nome, eu acredito, mas sim o sistema. Eu não sou retificada, então falavam “resolvemos”, aí o sistema puxava os dados do CPF e ia para o nome de registro, eu já falei com várias pessoas sobre isso e percebi que dentro do possível tentaram garantir o meu direito ao uso do nome social.
Além do mais, isso tudo ocorreu durante a pandemia, o que dificultou a situação, e eu entendo também que é isso, quem faz o sistema são pessoas. Mas o problema é que por lei os funcionários públicos podem utilizar nome social, e às vezes muitas pessoas falam “retifica o seu nome vai ser mais fácil para você”, mas essa não é a minha escolha no momento. A lei do nome social existe para funcionários públicos, ela está ali, e podemos usufruir dessa garantia. Então como assim o sistema não possibilita que eu acesse a um direito meu? Não é possível que uma funcionária pública não use o nome social, isso é ilegal, um crime. Precisamos falar na linguagem do sistema.
Você se sente valorizada tendo sua própria subjetividade dentro do ambiente acadêmico?
Valorização tem que vir da gente, se a gente ficar esperando a valorização vir de fora… mas eu me sinto sim, tenho pessoas dentro da universidade, colegas, alunos, que super me valorizam, minha área, minha trajetória, então eu tenho muito a agradecer. Não só as pessoas ali, mas as pessoas do movimento negro, do movimento de travestis e transsexuais no Brasil, como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) 5 . Inclusive sempre precisamos reconhecer e lembrar que muitas das que lutaram pelo que a gente tem hoje, são ativistas do movimento das prostitutas, da prostituição que deram a cara a tapa, além de não poder deixar de fora o movimento de homens trans, como é o caso do Ibrat 6 (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades). A gente traz no nosso livro, Transvivências Negras: entre afetos e aquilombamentos, contando histórias afro-diaspóricas (Oliveira et al., 2021), que os movimentos sociais de travestis e transexuais foram fundados e protagonizados por pessoas negras.
Com relação às ações afirmativas, hoje a gente tem vários grupos que tem acesso a elas, mas tudo começou pelo movimento negro. Eu me sinto acolhida pelas ações afirmativas, sou professora cotista racial, isso é importante constar nos meus registros. Faço parte do coletivo Luiza Bairros, que é uma articulação de docentes, discentes e tequiniques administratives negres que luta pelas ações afirmativas na universidade, então acho que o meu acolhimento vem daí também – obviamente existem movimentos de não acolhimento, mas eu tenho focado nos de acolhimento.
Eu tenho de certa forma me sentindo acolhida, mesmo sabendo que com certeza poderia ser mais, principalmente com a questão de políticas afirmativas para pessoas trans, que precisa ser ampliada assim como para a população indígena e muitos outros grupos em todos os níveis, inclusive nos concursos públicos. Enfim, a gente tem caminhos para percorrer, eu percebo melhoras, mas também percebo que ainda tem entraves, não pode ficar apenas nas aparências, não pode ser um acolhimento que seja para mim, a Feibriss. Precisa ser um acolhimento para qualquer pessoa trans, para qualquer pessoa negra, então me sinto acolhida, mas não me iludo que esse acolhimento é suficiente – enquanto eu for uma das poucas nesse espaço eu ainda não vou estar sendo acolhida.
Você tinha comentado sobre as cotas, elas entrariam dentro das estratégias?
Nas estratégias com certeza, eu pensei nessa questão de se aquilombar, mas, sim, sobre essa questão de se informar sobre as cotas, ainda existem pessoas negras que não acham que devem usá-las. Então, trocar essa ideia, saber a história, acessar essas informações e informar “olha tem cotas na universidade”. No meu caso eu só acessei cotas no concurso. Na graduação e na pós-graduação não tinha ainda quando eu entrei. Começaram o programa de cotas na minha instituição quando eu já estava lá dentro fazendo a graduação, então eu só usei as ações afirmativas, política de cotas, no meu concurso. Inclusive, eu passei na vaga de cotista, então tem as cotas de entrada, mas precisamos também das ações afirmativas de permanência, então temos que saber não só pra gente, mas para ser uma luta de todo mundo, se cair sempre nas costas das mesmas pessoas a gente fica sobrecarregado.
Então é preciso que isso seja difundido, não só por pessoas negras, mas por todo mundo. As pessoas que são aliadas mesmo vão querer essa ampliação de pessoas negras na universidade. Algo importante para nossa permanência nas universidades é a garantia do ensino de História Negra e Indígena nas universidades conforme as leis 10.639/03 7 e 11.645/08 8 . Cobrar que essas leis sejam cumpridas também é uma estratégia. Precisamos conhecer as lutas que já foram ganhas para avançarmos! Precisamos cobrar “como assim não tem referenciais de autoria negra nem indígena nas disciplinas?”, “por que não temos autorias trans nas referências?”. Infelizmente ainda é comum ouvir frases como “tenho três anos de faculdade e não tive um referencial de pessoas trans, negras e indígenas”, precisamos gritar “como assim não temos professores indígenas ou negros na instituição?”, acho que isso entraria nas estratégias também. Estar ciente das leis, do que já foi conquistado e do porquê foi conquistado. O senso comum questiona o que a gente sabe, então precisamos nos informar, aprofundar e exigir as leis porque a gente tem muitas conquistas
Quais movimentos você acredita que te ajudam nas suas lutas diárias?
Estou mais conectada ao movimento de travesti e transsexuais e ao movimento negro, sem dúvida, são os meus alicerces, é onde eu busco trazer minha constituição. É importante ter consciência das ações dos movimentos sociais para entender até mesmo as reivindicações por trás das leis que já existem. Tenho trabalhado para garantir o cumprimento dessas leis nas minhas aulas, trazendo referenciais indígenas, em busca sempre de ampliar também. Quando a gente acha que já é inclusivo, precisa expandir ainda mais, por isso eu venho estudando para trazer mais conteúdos relacionados aos direitos humanos, a questões de ecologia, pois tudo isso já é lei. Mas a minha base vem dos movimentos feministas também, eu sou cria de feministas e muito de mim que é postura feminista, principalmente o movimento feminista negro hoje em dia e do transfeminismo. Acho que seria isso, movimento negro, feminismo negro e movimento de travestis e transsexuais, principalmente de pessoas negras.
Quais são suas maiores referências profissionais e pessoais? Quais pessoas te inspiram?
Minhas maiores referências seriam a professora Denise Carrascosa, a fundadora do Traduzindo no Atlântico Negro 9 na UFBA, minha colega professora de literatura e tradutora. Denise coordena o projeto de extensão Corpos Indóceis e Mentes Livres: trabalho de produção de oficinas de escrita literária no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito na Bahia. Megg Rayara Gomes de Oliveira, professora da UFPR, esteve na minha banca, foi a primeira palestra que tive com uma professora trans negra. Eu a convidei para minha banca… Assim como Tiganá Santana esteve na minha banca também. Foi a primeira vez que vi um doutor em Tradução abrindo o semestre do Programa de Estudos em Tradução. Ele falou que se interessou pela minha tese e eu convidei para minha banca. E todas as pessoas que passaram pelo Atlântico Negro são todas referências para mim.
Ai que difícil… medo de esquecer alguém! Nana Martins e Jeff Santana que são as minhas amigas do Sarau Vozes Negras de poéticas pedagógicas interseccionais, majoritariamente ocupado por pessoas LGBTQIAPN+. Eu e Jeff como pessoas trans femininas. Jess Oliveira que é sapatão preta. Luck Yemonja Banke e muita gente…
Enfim, todas as pessoas trans que eu possa conviver, trocar um olhar, uma palavra, para além das referências acadêmicas, são minhas referências também. Os afetos são importantes.
E em relação à sua família, teria alguém?
Sim, meu pai e minha mãe, sem dúvida. Meu pai foi, e é, uma pessoa de esquerda, do Espírito Santo, que dentro de uma família totalmente de direita, me criou desde sempre com esse referencial, dentro das lutas sociais, e eu pude ampliar o que aprendi com ele. Percebo que no meu passado, desde o momento em que eu fiquei sabendo da existência das cotas eu fui a favor, ao meu entorno eu escutava as pessoas quase sempre sendo contra, mas eu não entendia muita coisa e não discutia muito na época, pois sentia tanto o contexto familiar, quanto o educacional pouco favorável.
Mas eu tive um professor negro chamado Roberto Carlos, eu não lembro muito dos debates, mas eu lembro de uma coisa que ele falou sobre as cotas. Ele disse algo como “é engraçado que na hora de nos discriminar vocês sabem muito bem quem é negro, mas na hora das cotas, vem com esse discurso que não dá para saber quem é negro no Brasil”. Isso me marcou e foi o primeiro argumento a favor das cotas que eu me lembro. Eu tive professores negros muito importantes, Roberto Carlos, Junior Bola, eu tive uma professora de Inglês negra, Josirene, no ensino médio (não lembro o sobrenome das pessoas, Junior Bola usa esse nome mesmo). Enfim, desde então eu comecei a ter mais argumentos a favor das cotas e fui ampliando essas reflexões, entendendo que esse era o caminho mesmo. A galera vinha com argumentos contra as cotas, ficava horas soltando argumentos racistas, que hoje eu nomeio como racista, e eu pensava: gente, nada disso justifica não ter cotas, não faz sentido.
Mas a pergunta era sobre a minha família. O meu pai sempre foi essa grande referência de professor, em casa trabalhando muito com as pautas, muito dedicado sempre e ensinou a dedicação aos estudos. E também foi bom ter uma professora universitária na família, o nome dela é Elvira, atua na área de comunicação, além disso ela é uma pessoa na minha família que falava inglês, talvez a primeira, uma das poucas. Aí vem os meus primos, que foram estudando depois, alguns, não todos, mas era uma referência. Eu ia na casa de Elvira às vezes quando eu não estava entendendo as tarefas de Inglês, e quando eu passei na faculdade ela me deu um dicionário que eu uso até hoje, o dicionário monolíngue, inglês-inglês, ela falou “você vai precisar disso na faculdade”, e até hoje eu sempre pergunto para os meus alunos “vocês usaram o dicionário monolíngue?, porque isso aqui que vocês estão usando é inglês traduzido literalmente e geralmente não funciona”, fazendo críticas, obviamente, ao inglês padrão, mas é um caminho importante para se aprofundar nos estudos de um idioma estrangeiro.
E minha mãe também, por mais que ela não seja da área da educação, (se bem que ela começou a faculdade de Pedagogia), ela me passou tudo o que sabia. Minha mãe ficou se preparando para concursos, estudava muito comigo, me ensinou muita coisa também sobre como estudar, segurando as pontas, eu fui estudar fora, mas para eu estudar fora minha família teve que abrir mão de muitas coisas. Tinham condições de me manter, mas tiveram uma vida muito mais simples do que poderiam ter, e escolheram me sustentar em outro estado, embora eu tenha conseguido bolsas desde cedo, porque eu não me sentia confortável com isso, eu sabia que não era tranquilo para eles, e nunca foi.
Existe alguma situação que marcou a sua carreira profissional?
Ver uma palestra da Megg Rayara Gomes de Oliveira foi um momento marcante. Uma travesti preta dando uma palestra em um evento chamado Ser Negra, no interior de Santa Catarina, foi marcante. Algo que também marcou foi a disciplina que a gente fez juntas, certo Maylla? A disciplina de Crítica Feminista e as Geografias do Poder, ministrada pela professora Dra. Simone Pereira Schmidt, que se tornou minha coorientadora no doutorado depois – e essa minha orientação começou enquanto eu estava nessa disciplina. Foi a primeira vez para todas nós vivenciarmos uma sala de aula de pós-graduação com tantas pessoas negras (eram sei lá, seis, sete pessoas, que não parece, mas eram muitas). Geralmente, a gente sempre estava sozinha, ou com poucas outras pessoas negras na mesma sala, mas nessa disciplina eram pessoas negras que se posicionavam, se tinha algum silenciamento a gente se posicionava, e depois a gente ia para o bar para terminar nosso debate porque a sala de aula não dava conta das nossas demandas – a gente nunca teve aquilo, então isso foi marcante na minha trajetória e na de mais gente também.
Fundar o Sarau Vozes Negras, é algo que não posso deixar de mencionar. Eu sempre gostei muito de artes, e Artes Visuais era o curso que eu mais queria fazer, mas nunca fiz. Na minha experiência com o Sarau conheci muito da literatura negra, literatura de autoria negra brasileira ali. Nós performávamos e nos posicionamos dentro da universidade e nas ruas de Florianópolis, declamando e ouvindo poesia. Uma coisa legal do Sarau era que independentemente do tempo que a gente tinha de performance, se era 1 hora ou 15 minutos, a gente sempre abria o microfone pra ouvir quem quisesse se manifestar também, era uma maneira de ocupar os espaços. Mudar para Floripa marcou muito minha carreira, todas as dificuldades de estar num estado do Sul sendo uma pessoa negra, também foi o lugar de muito aquilombamento, foi onde eu vivi minha transição de gênero.
Agora, em Salvador, algo que marcou a minha carreira profissional foi ser uma das organizadoras do segundo volume do livro Traduzindo no Atlântico Negro: Dinâmicas Exusíacas em Rotas de Fuga e Performances da ReLigação AfroAncestral, produzido a partir do grupo de pesquisa Traduzindo no Atlântico Negro, coordenado pela professora Denise Carrascosa. O primeiro volume foi uma referência pra mim, um respiro, um encontro precioso! Perceber que tinham pessoas negras incríveis pensando em tradução negra, esse projeto incrível, e está sendo gratificante fazer parte desse segundo volume, como pessoa trans negra. Sei que vai ter gente olhando para meu nome na capa e pensando que também pode chegar a um doutorado, a um concurso público. E eu adoro pesquisar e falar sobre tradução de histórias contadas, dessa imersão que estou fazendo nas pesquisas de materiais de contadores de histórias.
Um marco também foi conhecer a Jess Oliveira, sua pesquisa e seu trabalho como tradutora. Na época ela estava escrevendo a sua dissertação, May Ayim e a Tradução de Poesia Afrodaspórica de Língua Alemã, inclusive foi ela quem me apresentou a tese de Tatiana Nascimento, Letramento e tradução no espelho de Oxum: teoria lésbica negra em auto/re/conhecimentos 10 , sobre tradução de mulheres negras lésbicas, que é uma referência obrigatória para o grupo de pesquisa que eu coordeno na UFBA, Corsciência. Acho que é isso que eu me lembro agora. Deixe-me pensar, o que mais me marcou…
Sem dúvida ir ao Congresso de Pesquisadores Negres 11 (Copene). Lá eu sentia que tinha mais liberdade e espaço para dialogar e expandir os meus conhecimentos e viver realmente uma realidade inter-transdisciplinar. Lembro do Copene nacional, em Uberlândia, da fala da professora Anna M. Canavarro Benite. Como é bom estar numa abertura de um evento e ouvir uma professora de Química negra e você conseguir dialogar com ela, isso é incrível. Fico assim: mas, gente, é assim que a universidade tinha que ser sempre, a gente fica muitas vezes ainda nesse projeto colonial de universidade, separadinho nas caixinhas dos cursos.
Enfim, eu acho que são alguns dos momentos que marcaram a minha carreira… e passar na UFBA, claro, passar em um concurso público para a Universidade Federal da Bahia. Eu tinha vontade de vir morar aqui, foi o primeiro e único concurso federal que eu passei, quando eu estava no doutorado ainda, sem perspectiva, tinha transicionado e pensando “tá e agora, procurar emprego não vai ser a mesma coisa”, então meu primeiro plano foi concurso público federal mesmo, e eu consegui.
Em relação ao futuro, vamos pensar em afrofuturismos, o que você tem a vislumbrar, quais são os seus próximos projetos, ou metas que vão, inclusive, convergir questões pessoais e profissionais, além de militância, ao mesmo tempo?
Meu projeto é me envolver mais com a extensão. Eu não consegui definir bem ainda qual caminho eu quero seguir na extensão universitária, mas quero retomar a contação de histórias que está parada na minha vida. Já tenho um projeto de pesquisa na UFBA sobre tradução e contação de histórias, mas eu quero retomar a minha performance de contadora. Não estou tendo muito tempo para isso.
A gente está passando por uma reforma curricular na UFBA, então a proposta é trabalhar nas ementas dessas novas disciplinas que estamos propondo. Estamos propondo aqui muitas disciplinas já atualizadas de acordo com as exigências do MEC (Ministério da Educação) em relação ao ensino de cultura e história negra indígena. Dentre as disciplinas, tem uma de literatura de autoria LGBTQIAPN+, por exemplo, então tenho bastante que trabalhar nessas ementas e nesses referenciais, porque eu também não tenho grande repertório de literatura de autoria LGBTQIAPN+ ainda, e estou buscando principalmente literatura de autoria transvestigênere já há alguns anos.
Durante o mestrado e o doutorado tinha aquele foco na tese, mas no Sarau a gente sempre tinha pessoas trans declamando poesia, então tinha essa organicidade, desse contato que acontecia nos nossos encontros, rolês e atividades, mas como eu trabalho com a língua inglesa, então eu estou mais focada em pesquisas textos nessa língua. Eu tenho alguns referenciais já de obras literárias e de demais linguagens artísticas que usei nas minhas aulas na UFBA, mas para montar uma disciplina eu preciso de um repertório maior, que talvez eu tenha, mas que eu preciso me organizar melhor, ver o que eu tenho e o que me falta para propor uma ementa significativa, que contemple nosso passado e presente. Mas essa é apenas uma das disciplinas que preciso criar.
Atualmente, nosso currículo tem muitas disciplinas com uma ementa tradicional, dentro da literatura, por exemplo, tem o romance de língua inglesa, a poesia de língua inglesa, o conto de língua inglesa, o teatro da língua inglesa, só que eu e muites outres docentes da UFBA trazem um conteúdo mais diversificado – eu trabalho com literatura nigeriana de autoria negra, por exemplo. A gente pega esse currículo mais tradicional e vai modificando, mas fica por conta de cada docente que se engaja, a gente está estruturando isso para que seja algo institucionalizado, e não somente termos as nossas ações individuais.
Esse ano, na área de Letras na UFBA, foi criada uma nova área chamada NetIndiAfro que trabalha questões negras e indígenas. Essa área acaba tendo também esse papel importante de reivindicar o cumprimento das leis 10.639 e 11.645, por exemplo, e eu faço parte dessa área, então tem o projeto de dedicação a isso também. Vamos organizar eventos e muito mais. Estamos apenas começando. Acho que é isso, não vou falar mais para não me comprometer.
Você já fala bastante sobre a arte, é vibrante, autêntica e eu queria entender um pouco melhor da sua trajetória em relação à corporeidade. Sei que você é reikiana12, também está ligada a outras perspectivas, e outros discursos anticoloniais nesse sentido, mas como é que você tem trabalhado o seu corpo, a corporeidade? O que você faz para além da universidade?
Eu faço yoga, vou continuar, e eu sou reikiana também. No momento eu meio que faço com os projetos da minha mestra, Marisilda Brochado – ela tem dentro do Reiki um movimento do axé Reiki. Eu fazia muita coisa em Florianópolis em relação ao Reiki, atualmente eu faço mais à distância, acabo não divulgando muito, mas eu tento colocar isso na prática do meu dia a dia.
Por exemplo, converso muito com a minha terapeuta sobre a sala de aula como um espaço de cura e isso é muito forte para mim. Certo dia eu estava dando uma aula falando sobre a colonização da Nigéria (e eu estou num contexto agora que a maioria das pessoas, dos estudantes das minhas turmas são negros), então falando sobre a colonização, passando o slide e então algum aluno fala “isso é muito triste né” e aí está, isso não é só um conteúdo. Vamos lá, vamos trocar ideias sobre como é estudar isso, e aí a gente vai trazendo as nossas questões. Por que a gente tem que ficar revivendo isso? Para avançar, precisamos conhecer a nossa história.
Falar das políticas de ações afirmativas é sempre doloroso, mas necessário e urgente, dei esse exemplo na sala de aula. O que a gente conseguiu, por exemplo, para a comunidade transvestigênere foi com base em dados como o de que o Brasil é o país que mais mata pessoas tranvestigêneres no mundo, e a esmagadora maioria desses assassinatos são de mulheres trans e travestis negras, então, infelizmente, é uma questão que não vai deixar de existir se a gente não encarar, a gente precisa lidar com os nossos traumas e eu tento usar esse meu lado reikiana nesse momento.
Usar essa sensibilidade, de ser mais sensível às pessoas e escutar muito. A sala também é lugar para a gente falar quando a gente tá sentindo algo com relação à matéria, à vida, às obras que estudamos. Então os alunes vão falar de experiências de racismo que passam no trabalho, que percebem nos textos que a gente trabalha, ou que veem nas redes sociais, na universidade, de misoginia, de LGBTQIAPN+ fobia. Então é um espaço que eu tento criar, um ambiente confortável para que as pessoas se lembrem e se manifestem.
A universidade é um lugar que nos foi negado por muito tempo, e as questões de raça, gênero e classe frequentemente eram, e são, vistas como uma fuga de assuntos importantes, então como os temas e obras que eu trabalho sempre trazem questões muito profundas de violência, como disciplina de Leitura de Produções Artísticas que estudamos as instituições de obras de arte saqueadas do continente africano, eu, mais do que fazer algo para fora da sala de aula eu tenho trazido para dentro da sala esse conhecimento, essas práticas terapêuticas.
Agora, eu tenho alunes trans nas minhas disciplinas, então eu trabalhei com um documentário chamado Revelação, que vai mostrar a representatividade no cinema, na televisão e em plataformas de streaming nos Estados Unidos, de personagens, atrizes e atores transsexuais. É muito triste assim, é muita violência que a gente vê, e no final eu tive o cuidado de ir até as pessoas trans e perguntar se estavam bem, porque mesmo o documentário terminando com uma esperança, com um contexto mais atual, é muita coisa. Relembrar os meus processos, e revivê-los, e abordar isso além do conteúdo, eu preciso acolher também essas dores. Por um lado, estou ali mostrando para as pessoas como serem mais inclusivas, e por outro lado trazendo materiais para que as pessoas possam dialogar com os seus iguais, então isso vai demandar uma interlocução. É algo que precisa ser dividido, partilhado, do âmbito coletivo, próximo da ancestralidade negra mesmo, de roda, de aprender pelo coletivo. Eu tento trazer isso para as aulas e criar oportunidade para que as pessoas também tragam, mas é um pouco difícil, esse lugar de professora não é muito bem estabelecido. É difícil para as pessoas e é difícil para mim também.
Às vezes eu me vejo pensando, até que ponto eu consigo lidar com essas emoções na sala de aula, mas daí eu penso “eu sei o que eu estou fazendo, então é esse processo que eu estou vivendo, que eu vejo que faz sentido”. Comecei a ter vontade de fazer Psicologia até, porque a gente tem muitos traumas e a literatura escancara eles, e por isso às vezes eu acho que preciso estar mais preparada, mas mesmo eu tendo as minhas limitações, eu consigo usar o que eu já sei. Obviamente eu não tenho a responsabilidade de uma pessoa da área da Psicologia, mas eu tenho ali os meus caminhos e alguns cuidados que eu posso ter, alguns processos de simplesmente me colocar nesse lugar de escuta, já é uma forma.
Mas eu acabei falando praticamente só da universidade. E a pergunta era sobre além da universidade (risos), acho que estou pensando demais em trabalho! Mas como eu disse, estou fazendo Yoga com uma professora negra que também é fisioterapeuta, a Brisa, e está sendo a primeira vez que eu faço yoga semanalmente por um bom tempo. Faço também funcional com o Yogor, eles são um casal, e os conheci num projeto chamado Somar em que a gente fazia yoga, funcional e massagem ao ar livre – eu me encantei com a proposta e com o trabalho deles – e este ano estou me dedicando a essas atividades, e me sinto muito bem.
Além disso, eu sou vegana e amo ir às feiras livres, conversar sobre alimentação, chás e cuidados, priorizo comprar produtos de agricultura familiar, de projetos sociais – isso me faz bem. Comprar meu alimento ao ar livre de fontes que fazem mais sentido. Quero me dedicar mais à alimentação viva que é uma delícia e me faz muito bem. Além disso, faço psicoterapia também com uma terapeuta negra, a Gieri, ela tem uma marca chamada Aláfia e eu já faço a terapia com ela e encomendo meus fitoterápicos com ela, sempre que posso e consigo – eu evito ir a farmácias convencionais. Tenho buscado cuidados com pessoas negras e está fazendo muito mais sentido.
Também viajo sempre que posso. Viajar é bom, principalmente para ver minha namorada que mora em outra cidade, acho que o amor também cabe nessa pergunta. Estamos namorando faz dois anos e tem sido muito bom me dedicar a amar e ser amada pela Ury, que é uma travesti preta de Salvador, mas que não mora mais aqui, mora na minha cidade natal, Vitória (ES). Nossa relação é uma prática anticolonial diária e um movimento que fazemos juntas nos fortalecendo e nos cuidando, nos amando, nos inspirando. Meu primeiro poema publicado foi dedicado a ela e está no livro Transvivências Negras: entre afetos e aquilombamentos, contando histórias afro-diaspóricas.
Queria dizer que estou escrevendo poesia e criando arte, mas não tenho tido tempo, mas espero ter – é algo que me faz bem e é necessário. Busco também estar em eventos transcentrades sempre que posso, é essencial para minha existência conviver com outras pessoas transvestigêneres, principalmente negras. Acho que agora consegui responder à pergunta, mesmo fugindo dela por alguns minutos.
Então acho que é isso, queria muito agradecer por todas as suas falas, por tudo o que você trouxe para a gente aqui hoje. É muito enriquecedor poder te ouvir e aprender tanta coisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta central da presente entrevista foi compreender a intensa trajetória acadêmica de Feibriss Cassilhas, bem como mapear as estratégias de resistência e de luta que possibilitaram adentrar o espaço da universidade enquanto docente. Este texto nasceu da necessidade de falar sobre a importância da existência de professoras universitárias negras e trans nas universidades do Brasil, considerando que essa sociedade tem altos índices de violência contra pessoas trans (GGB, 2017; Jesus, 2013) e contra pessoas negras (Almeida, 2019; Mbembe, 2020).
As consequências estruturais e dinâmicas da intersecção entre dois ou mais eixos de subordinação (Crenshaw, 2002) dificultam o acesso de pessoas trans e negras a espaços de poder, como a cargos docentes nas universidades. Diante desta difícil realidade, esta entrevista é relevante, pois focaliza a construção de estratégias que possam contribuir no combate à transfobia, ao racismo e ao machismo em perspectiva interseccional. É fundamental reconhecer a interseccionalidade como ferramenta analítica que busca promover justiça social, mas também é imprescindível que pessoas que estejam localizadas nos entrecruzamentos da subalternidade possam acessar espaços de poder para que, assim, a universidade possa ser mais diversa e pluriversal.
O acesso de pessoas negras na esfera do ensino superior auxilia na ruptura de estereótipos racistas presentes no imaginário social, e na ruptura com o epistemicídio (Carneiro, 2005) enquanto paradigma que desvaloriza conhecimentos que não são ocidentais. O racismo impôs uma lógica de que a pessoa negra não teria capacidade intelectual para ocupar espaços que exigissem raciocínio. Nesse sentido, torna-se ainda mais desafiadora a construção de uma carreira universitária de docentes negras e trans, pois há barreiras complexas do racismo e da transfobia atuando na realidade social dessas profissionais.
A partir dos relatos de Feibriss, podemos perceber o quanto é válido que outras professoras negras trans consigam acessar as salas de aula como professoras universitárias, haja visto que este movimento poderia fortalecer o debate decolonial e interseccional na esfera da ciência. Mesmo que tais práticas políticas ainda sejam pouco visíveis no cenário acadêmico brasileiro, algumas pesquisas sobre essa temática apontam que a construção de uma sociedade plural com identidades diversificadas pode ser fortalecida com pessoas negras construindo conhecimento no âmbito científico (Crisostomo; Reigota, 2010; Oliveira, 2004).
Em última análise, procuramos mostrar algumas nuances das desigualdades estruturais na sociedade brasileira a partir das barreiras no acesso de pessoas trans e negras a cargos de docentes na universidade. Nesse sentido, a entrevista com Feibriss pode incentivar novas oportunidades, pois suas contribuições profissionais e pessoais servem como estímulo para mulheres negras, população LGBTQIAPN+, e pessoas historicamente subalternizadas pelo sistema colonial. Nesse sentido, esta potente entrevista é capaz de levar esperança com a divulgação de caminhos, a fim de que outras pessoas negras possam chegar e permanecer no ambiente acadêmico.
REFERÊNCIAS
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Maylla Monnik Rodrigues de Sousa Chaveiro
Pós-doutoranda pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra e Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Psicóloga Clínica e Supervisora.
Feibriss Henrique Meneghelli Cassilhas
Doutora e mestra em Estudos da Tradução pelo programa de pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET) na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É professora Adjunta pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) na área de Letras Inglês.
Bruna Lopes Couto
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Como citar este documento – ABNT CHAVEIRO, Maylla Monnik Rodrigues de Sousa ; CASSILHAS, Feibriss Henrique Meneghelli ; COUTO, Bruna Lopes . Professora universitária negra e trans: entrevista com Feibriss Cassilhas. Revista Docência do Ensino Superior , Belo Horizonte, v. 14, e045980, p. 1-22, 2024. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.46953 . |
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1 Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, MS, Brasil .
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-7581-105X . E-mail: maylla.chaveiro@gmail.com
2 Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-3332-4808 . E-mail: feibriss@ufba.br
3 Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0009-0005-5156-1443 . E-mail: D202020851@uftm.edu.br
4 Evento cultural que celebra a expressão artística de pessoas negras, oferecendo um espaço para compartilhar poesia, música, dança e outras formas de manifestação cultural, promovendo a valorização da diversidade e da identidade afrodescendente.
5 A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) é uma organização que atua na defesa dos direitos e na promoção da cidadania de pessoas travestis e transexuais no Brasil, buscando garantir acesso a políticas públicas, combater a discriminação e promover a igualdade de gênero.
6 O Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) é uma organização dedicada à promoção dos direitos, saúde e bem-estar de pessoas transmasculinas no Brasil, oferecendo suporte, advocacia e recursos educacionais para essa comunidade.
7 Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
8 Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008 altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Indígena".
9 Traduzindo no Atlântico é um grupo de pesquisa que agrega pesquisadoras/es de diversos lugares do Brasil, Nigéria, África do Sul, Estados Unidos e Europa, no sentido de desenvolver cartografias afrodiaspóricas de tecnologias de tradução literária em sentido multidimensional e interartístico.
10 SANTOS, Tatiana Nascimento. Letramento e tradução no espelho de Oxum: teoria lésbica negra em auto/re/conhecimentos. 2014. 185 f. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/128822/331961.pdf?sequence=1 .
11 O Congresso de Pesquisadores Negras/es/os (Copene) é um evento acadêmico e cultural que reúne pesquisadores negros para discutir questões relevantes para a comunidade afrodescendente, promovendo a troca de conhecimentos e fortalecendo a produção científica nesse contexto.
12 Reikiana é a pessoa que aplica o Reiki, uma terapia alternativa em que a terapeuta coloca as mãos sobre o corpo para canalizar energia vital do universo, de forma a equilibrar os centros energéticos (chakras) do organismo e melhorar o bem-estar físico e mental.
Rev.
Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 14, e046953, 2024
Recebido em: 26/09/2023 Aprovado em: 15/04/2024 Publicado em: 04/06/2024