DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.51810
SEÇÃO: ARTIGOS
Ventanias e o esperançar: currículo e avaliação na formação docente em tempos de ensino remoto emergencial
Tormentas y la esperanza: currículo y evaluación en la formación docente en tiempos de enseñanza remota de emergencia
Whirlwinds and hopefulness: curriculum and assessment in teacher education during times of emergency remote teaching
Shirlei Rezende Sales1, Bruna de Oliveira Gonçalves2
RESUMO
Este artigo analisa as adaptações no currículo e na avaliação da disciplina Teorias de Currículo ofertada em uma turma de graduação em Pedagogia e outra da pós-graduação em Educação, no contexto do ensino remoto emergencial, na Universidade Federal de Minas Gerais durante o primeiro ano da pandemia do coronavírus e suas ventanias. A análise crítico-reflexiva é feita a partir de um estudo qualitativo, exploratório e descritivo acerca do desenvolvimento do plano de curso adaptado para o ensino remoto. Foram retomados no artigo os processos institucionais que envolveram a autorização da continuidade das atividades formativas de maneira remota, a redefinição do planejamento pedagógico, a descrição e análise das escolhas metodológicas para o desenvolvimento do curso e de sua avaliação. Argumenta-se que em meio às inegáveis turbulentas ventanias provocadas pela pandemia, na Universidade, foi possível desenvolver coletivamente um curso de formação docente cujo currículo e avaliação precisaram ser repensados e adaptados. Assim, o compromisso coletivo com a vida e com a educação pública conduziu a elaboração das estratégias pedagógicas que mitigaram as fragilidades do ensino remoto. Inúmeras foram as lacunas rumo à equidade, entretanto, a soma de esforços possibilitou a estruturação de um curso adaptado assertivo, esperançando na formação docente.
Palavras-chave: pandemia; ensino remoto; currículo; avaliação.
RESUMEN
Este artículo analiza las adaptaciones en el currículo y la evaluación de la asignatura Teorías del Currículo ofrecida en una clase de pregrado en Pedagogía y otra de posgrado en Educación, en el contexto de la enseñanza remota de emergencia, en la Universidad Federal de Minas Gerais durante el primer año de la pandemia de coronavirus y sus torbellinos. El análisis crítico-reflexivo se basa en un estudio cualitativo, exploratorio y descriptivo sobre el desarrollo del plan de curso adaptado para la enseñanza remota. El artículo retoma los procesos institucionales que implicaron la autorización de la continuidad de las actividades formativas de manera remota, la redefinición de la planificación pedagógica, la descripción y análisis de las elecciones metodológicas para el desarrollo del curso y su evaluación. Se argumenta que en medio de los innegables torbellinos turbulentos provocados por la pandemia, en la Universidad, fue posible desarrollar colectivamente un curso de formación docente cuyo currículo y evaluación necesitaban ser repensados y adaptados. Así, el compromiso colectivo con la vida y la educación pública condujo a la elaboración de estrategias pedagógicas que mitigaron las fragilidades de la enseñanza remota. Hubo numerosas lagunas hacia la equidad; sin embargo, la suma de esfuerzos permitió la estructuración de un curso adaptado de manera asertiva, fomentando la esperanza en la formación docente.
Palabras clave: pandemia; enseñanza remota; currículo; evaluación.
ABSTRACT
This article analyzes the adaptations in the curriculum and assessment of the course Curriculum Theories offered to an undergraduate class in Pedagogy and a graduate class in Education at the Federal University of Minas Gerais during the first year of the coronavirus pandemic and its whirlwinds. The critical-reflexive analysis is based on a qualitative, exploratory, and descriptive study of the development of the course plan adapted for emergency remote teaching. The article revisits the institutional processes involved in authorizing the continuation of educational activities remotely, redefining pedagogical planning, describing and analyzing the methodological choices for course development and assessment. It is argued that amid the undeniable turbulent whirlwinds caused by the pandemic, it was possible to collectively develop a teacher education course whose curriculum and assessment needed to be rethought and adapted at the University. Thus, the collective commitment to life and public education led to the development of pedagogical strategies that mitigated the weaknesses of remote teaching. There were numerous gaps towards equity; however, the combination of efforts enabled the structuring of an assertively adapted course, fostering hope in teacher education.
Keywords: pandemic; remote teaching; curriculum; assessment.
INTRODUÇÃO
É a natureza roendo os bens do homem [e da mulher], divertindo-se em assustá-lo[a] no escuro, convocando velhos medos, modelando fantasmas novos. Deitamo-nos tão seguros de nossa estabilidade em um mundo a que presidiam a lei e a técnica, nutríamos tamanha confiança nos materiais de construção e na ordem dos elementos, e bastou que certa massa de ar se deslocasse de maneira abrupta para que nossa calma, nossa segurança e mesmo nossa vida se vissem ameaçadas por um obscuro e implacável inimigo, a que nos submetemos (Carlos Drummond de Andrade, p. 142, 1957).
Semelhante à descrição de Drummond, a contingência histórica trazida pela pandemia mundial da covid-19, doença causada pelo coronavírus, a partir de 2019, e as necessárias políticas de isolamento social, provocaram assustadoras turbulências em meio às suas avassaladoras ventanias. Os ventos sopraram sobre a humanidade trazendo doença, morte, medo, tristezas, incertezas e profundas angústias, bem como espalharam miséria e acentuaram as desigualdades.
Dentre as inúmeras consequências, as atividades presenciais nas universidades precisaram ser suspensas. Essa situação inédita trouxe inúmeros desafios para a educação, os quais seria impossível sequer listar. Alguns deles, mais imediatamente visíveis e nos limites deste artigo, referiam-se à necessidade de se criar alternativas para a continuidade dos trabalhos formativos. Com a proposição de novos formatos, o que estava em questão era a segurança de todas/os, em uma opção política de defesa da vida.
A experiência analisada neste trabalho diz respeito ao contexto do Ensino Remoto Emergencial (ERE) adotado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a partir da Resolução nº 02/2020, de 9 de julho de 2020, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE). O ERE ficou definido no documento como o “regime de ensino adotado temporariamente para desenvolver as atividades acadêmicas curriculares com mediação pedagógica assentada nas tecnologias digitais de informação e comunicação” (UFMG, 2020).
Essa escrita consolida a oportunidade de sistematizarmos nossas experimentações curriculares, estando elas situadas num contexto bem específico: o do ensino superior público, com um dos recortes possíveis para dizer de nossas vivências diante dos desafios do primeiro ano de pandemia. Apesar de refletirmos sobre um tempo passado, findando, inclusive, a emergência global de covid-19 desde a declaração da Organização Mundial da Saúde em maio de 2023 (OMS [...], 2023), compreendemos que os aprendizados produzidos nesse período são perenes. As sistematizações desenvolvidas no texto potencialmente oportunizam a criação de práticas pedagógicas reflexivas, construídas coletivamente e negociadas como possíveis.
Argumentamos que em meio às inegáveis turbulentas ventanias provocadas pela pandemia de covid-19 na universidade, foi possível desenvolver coletivamente um curso de formação docente cujo currículo e avaliação precisaram ser repensados e adaptados ao formato remoto emergencial. O compromisso coletivo com a vida e com a educação pública de qualidade conduziu a elaboração das estratégias pedagógicas que mitigaram as fragilidades do ERE. “Em tempos de tantos medos e incertezas, a criação de currículos inventivos que façam transbordar a alegria e a esperança tornou-se uma necessidade, uma rota de fuga para escapar do pavor que nos assola nessa pandemia” (Sales; Evangelista, 2020, p. 868). Esse processo foi perpassado por reflexividade e autoavaliação, analisando criticamente as escolhas curriculares, flexibilizando-as a partir da escuta das/os envolvidas/os. Essa construção foi guiada pelo compromisso com a qualidade, a vida e a esperança.
Na primeira parte do texto, discorremos sobre a adoção do ERE na UFMG, passando ao registro sobre a reestruturação da disciplina Teorias de Currículo na graduação e na pós. Damos continuidade apresentando as propostas de curso redesenhadas e refletimos sobre o processo avaliativo. Por meio de uma tarefa respondida pelos/as discentes, ponderamos sobre as decisões curriculares, os desafios sentidos pela turma e por nós, e concluímos essa produção dizendo por qual educação somamos força.
Em meio a turbulentas ventanias, a adoção do Ensino Remoto Emergencial
O ERE, regime orientado na Universidade pela Resolução 02/2020 (UFMG, 2020), teve início a partir de 3 de agosto de 2020, dando sequência às atividades acadêmicas do primeiro semestre letivo do ano, cujas aulas foram interrompidas em função da pandemia da covid-19, a partir do dia 18 de março. Sobre essa interrupção, o “Comitê Permanente de Acompanhamento das Ações de Prevenção e Enfrentamento do Novo Coronavírus” criado na UFMG já monitorava a epidemiologia da covid-19 e articulava um plano de paralisação gradual das atividades presenciais. Suspendê-las foi a primeira e mais importante decisão visando equacionar tantas variáveis de uma realidade completamente adversa como essa. Precisávamos cuidar do direito à vida e era preciso oferecer efetivas condições para o distanciamento físico.
É importante destacar o impacto que a doença já havia gerado no país quando as aulas retomariam de maneira remota e emergencial: até 30 de junho, no Brasil, já havia 59.656 mortos em função da covid-19. O mês de julho bateria o recorde de 32.912 mortes, aproximando da triste marca dos 100.000 (Ministério da Saúde, 2020). É preciso registrar também que durante o período de suspensão das aulas, a Universidade continuou ativamente suas outras inúmeras frentes de atuação. Excetuando as aulas, a pós-graduação seguiu com muitas de suas atividades, bem como as de extensão que puderam ser adaptadas. Além disso, nesse período, esteve em curso uma enorme mobilização de docentes, técnicas/os e estudantes na produção de conhecimento, de insumos e equipamentos que ajudam no combate ao coronavírus, além do importante destaque à atuação dos Hospitais Universitários.
Com o passar do tempo, no entanto, as ameaças de ruptura de vínculo com a instituição educativa começaram a tensionar a convicção de que as aulas deveriam seguir suspensas e uma alternativa seria a realização das aulas na modalidade remota. É importante esclarecer que anteriormente à publicação da Resolução nº 02/2020, foram levantadas as estatísticas de condições de acesso digital da comunidade discente da instituição por meio de questionários on-line dirigidos à comunidade acadêmica. De acordo com a resolução que citamos, a Câmara de Graduação é que definiria as diretrizes gerais sobre a implementação do ERE e os Colegiados dos cursos dariam continuidade a esse planejamento sistemático, bem como fariam o acompanhamento de sua execução. A partir de então, com muito diálogo e responsabilidade social, foram feitas inúmeras ações coordenadas visando mitigar os impactos da adoção do ensino remoto, que em suas limitações não se configura de modo a atender todos os princípios da Educação a Distância (EaD), mas se apropria de alguns de seus instrumentos e práticas.
O que a Universidade teria, então, condições de viabilizar seria uma adaptação dos cursos presenciais ao modo remoto, em caráter excepcional, ou seja, o ERE, já que “quando as luzes do mundo se apagaram por causa do isolamento social, as telas garantiram que as relações fossem, de algum modo, reestabelecidas” (Sales; Evangelista, 2020, p. 871). O ensino remoto se caracterizou, portanto, como atividades de ensino e de aprendizagem mediadas pela tecnologia, mas que se articulam aos princípios da educação presencial, contando com ajustes e criações em função do meio a ser utilizado para a ocorrência das aulas, o digital.
Através da Portaria nº 343, de 17 de março de 2020, o Ministério da Educação (MEC) já autorizava a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durasse a pandemia da covid-19, para instituições de ensino superior integrantes do sistema federal de ensino (MEC, 2020). Apesar de todo esse trabalho desenvolvido na UFMG anterior à publicação de uma resolução para definir a adoção de um ensino remoto emergencial, isso também trouxe uma gama expressiva de questionamentos, especialmente no que se referia à qualidade da formação ofertada nesse nível de ensino. O caminho possível nos pareceu ser enfrentar esse desafio da formação não presencial, tentando ao máximo garantir a qualidade e a assertividade desse processo.
Além disso, outra questão a ser equacionada naquele momento dizia respeito às desigualdades econômicas entre estudantes. Com as recentes conquistas sociais, a universidade pública tem um acesso mais democratizado e muitas/os são as/os estudantes em situação de vulnerabilidade social. Para iniciar esse enfrentamento, foi criada pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) junto da Fundação Mendes Pimentel (Fump) a campanha de doação para a Bolsa Apadrinhamento Inclusão Digital, visando proporcionar a inclusão digital das/dos estudantes de baixa condição socioeconômica da UFMG. A Pró-reitoria de Pós-Graduação (PRPG) realizou também chamadas conjuntas para o empréstimo de notebooks para as/os estudantes da pós.
Os desafios foram, portanto, inúmeros e não se restringiram às questões financeiras. Muitas eram as pessoas residindo em locais em que a internet não tem alcance. Havia muitas outras impossibilitadas de se dedicarem aos estudos, notadamente as mulheres, em decorrência das persistentes desigualdades de gênero, por terem que cuidar das/os filhas/os e/ou de outras/os parentes durante a pandemia. Diante desse complexo cenário, o ERE na UFMG esteve regido pelos princípios da segurança, qualidade e equidade e os programas acima descritos contribuíram para a minimização das ventanias perversas, ou seja, os efeitos múltiplos das nefastas desigualdades econômicas e sociais que assolam o país e que foram intensificados com o advento da pandemia.
Na próxima seção, discorremos sobre a reestruturação da disciplina Teorias de Currículo, ofertada no curso de Pedagogia e na pós-graduação stricto sensu em Educação. Compreendemos que as propostas foram planejadas almejando a construção de currículos inventivos. A partir de Marlucy Paraíso (2016, p. 389), somamos força à defesa de “operar no campo do currículo com uma noção de resistência, como força inventiva que mobiliza e cria possíveis”. É nessa perspectiva que desenhamos as propostas curriculares abaixo desenvolvidas.
Reestruturação da disciplina Teorias de Currículo na graduação e na pós-graduação
Por meio da Resolução a que inicialmente nos referimos, as/os professoras/es da UFMG deveriam elaborar um plano de ensino a ser disponibilizado no ambiente virtual Moodle3 – o UFMGVirtual, cujo acesso já era possível a todas/os aquelas/es que possuíam matrícula na instituição. Desde o início do semestre letivo, março de 2020, já nos preparávamos para novas possibilidades quanto à continuidade das aulas, mas com a definição do retorno na modalidade ERE, intensificamos os estudos, as pesquisas, levantamos dados, buscamos informações, planejamos e arquitetamos soluções. Na UFMG, tudo foi feito de maneira bastante coletiva, nas inúmeras instâncias colegiadas, mas, também, nos departamentos, nas reuniões on-line, nos e-mails coletivos, nos grupos do aplicativo de mensagens Whatsapp etc.
Ressaltamos o suporte recebido por parte da Diretoria de Inovação e Metodologias de Ensino (GIZ) e da Diretoria de Educação a Distância e Educação Digital (DEDD), os quais, embora com equipes reduzidas de profissionais, atuam de modo bastante comprometido na Universidade. Nesse momento é que nós, autoras do texto, estabelecemos uma parceria profissional frutífera, com que, infelizmente, pelas limitações de pessoal, uma minoria do universo docente pode contar: a disciplina de Teorias de Currículo, ofertada para o 4º período do curso de Pedagogia e para o Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFMG, contou com a assessoria pedagógica da servidora técnica-administrativa em educação lotada na DEDD. Escrevemos este artigo em parceria, como produto dessa relação profissional que foi desenvolvida com muito respeito e ajuda mútua.
Iniciamos também nossos primeiros contatos com o Pacote Office 365, disponibilizado a toda a comunidade da Universidade, objetivando o domínio da ferramenta recomendada, mas não obrigatória, pela UFMG para as atividades síncronas4 — o Microsoft Teams5. Esclarecemos que o Moodle não comporta atividades síncronas tais como as demandadas pelo ERE. Nesse sentido é que o uso de uma outra ferramenta para as interações em tempo real se justifica.
Por meio do envio de mensagens no Moodle às turmas, o qual já acontecia frequentemente desde a suspensão das aulas presenciais, foi intensificada essa comunicação com busca de uma/um a uma/um das/os estudantes, solicitando que todas/os seguissem os tutoriais para acesso ao Microsoft Office 365 elaborados pela Diretoria de Tecnologia da Informação (DTI) e o Centro de Computação da UFMG (CECOM). Com muito esforço concomitante, mas com pouca centralidade das informações a nível institucional, nos reuníamos objetivando a apropriação dos recursos e funcionalidades da plataforma. É válido chamar atenção para o que a literatura científica tem pontuado: a formação de docentes para o uso pedagógico das tecnologias digitais de informação e comunicação não pode se limitar ao domínio instrumental dos recursos tecnológicos. No entanto, esse conhecimento é condição primeira de qualquer iniciativa dessa natureza (Costa, 2013).
Sobre o replanejamento, definimos estratégias curriculares e avaliativas mais bem adaptadas ao contexto que discutimos. Importante enfatizar que não se tratou aqui do esforço de transpor o planejamento do curso presencial ao remoto, mas o de reconstruí-lo com base nas premissas de um novo contexto. Foram criadas propostas diversas, sendo elas analisadas, discutidas, revisadas e reelaboradas quando necessário. Cabe ressaltar os dramas da exaustão docente, muito bem analisada por três autoras que problematizam essa categoria de análise na educação básica do Rio Grande do Sul durante a pandemia da covid-19, Karla Saraiva, Clarice Traversini e Kamila Lockmann. Ainda que estejamos discorrendo sobre outro nível da educação, a superior, corroboramos com a problematização feita pelas pesquisadoras. Elas definem a exaustão docente nesse período como “uma espécie de trabalho contínuo e de disponibilidade irrestrita”, “em regime 24/7” (Saraiva; Traversini; Lockmann, 2020, p. 13).
Aberturas ao inusitado e os novos ventos no planejamento curricular
Apesar de toda a perversidade de se vivenciar uma pandemia, objetivando fortalecer novos ventos consequentes das aberturas ao inusitado, um novo olhar, uma nova abordagem pedagógica e uma diferente perspectiva eram exigidas. O planejamento curricular articulou, assim, atividades síncronas e assíncronas para as turmas, e a principal mudança se referiu à nova concepção de espaço e de tempo. A modalidade remota exigiu um entendimento diferenciado da relação educativa em um espaço diferente, o ciberespaço, e numa lógica temporal absolutamente distinta. As métricas são outras e a carga horária precisou ser redimensionada.
Nesse processo, aprendemos que os momentos síncronos não devem exceder duas horas, com uma exposição de no máximo 40 minutos, seguida da participação atuante das turmas, isso exigiu de nós uma criteriosa seleção curricular. Para esses momentos síncronos, nos indagávamos: o que é fundamental que as turmas aprendam? Tudo nos parece importante e, de fato, é. No entanto, nesse momento, para as atividades em tempo real, devemos nos ater ao que é imprescindível, ao cerne da discussão. Essa é uma decisão política de expressiva relevância e deve ser ponderada com extrema responsabilidade, não se limitando ao ensino remoto emergencial, mas em toda decisão curricular, seja de cursos presenciais ou não.
Elaboramos, então, um planejamento de modo que as práticas curriculares síncronas intercalassem com atividades assíncronas, as quais deveriam explorar os mais diversificados recursos tecnológicos. Essa posição visou favorecer a aprendizagem pelas/os estudantes, que, como sabido, aprendem de formas diferenciadas, o que Claxton e Murrell (1987) nomeiam como “estilos de aprendizagem”.
Incentivou-se sobremaneira, nesse período, o desenvolvimento de atividades coletivas entre professoras/es da turma da graduação, articulando os conteúdos das diferentes disciplinas. Conseguimos integrar parte dos trabalhos formativos para as turmas do 4º período do curso de Pedagogia. Assim, incorporando todas as disciplinas e professoras/es do período, planejamos duas atividades avaliativas que seriam validadas por todas/os. Ambas as propostas foram postadas em um mural do coletivo das turmas no Padlet6. O direcionamento das atividades tomava o então tempo presente como objeto de reflexão.
Na primeira avaliação conjunta, foi proposta uma atividade que fomentava a reflexão sobre o cotidiano das existências em meio às ventanias da pandemia. Essa foi uma tarefa formativa individual e avaliativa, na qual cada estudante deveria narrar a si mesma/o tendo como fundamentação as provocações do texto Lavar as mãos, descolonizar o futuro, de Denise Sant’Anna (Sant’Anna, 2020). A narrativa deveria se inspirar ainda nos convites de Dona Rita no vídeo Esperança e Imaginação Política7 (Von Hunty, 2020). A proposta foi que essa narrativa também articulasse as possibilidades viáveis e as esperanças de transformação. Para orientar melhor a realização do exercício, além de sua descrição pormenorizada no Moodle, elaboramos um tutorial8 para que as/os estudantes se sentissem confortáveis e seguras/os quanto à postagem no mural digital. Foram aceitos os mais diversos tipos de produções e, como retorno para as turmas, sistematizando o trabalho avaliativo, as/os professoras/es produziram coletivamente um vídeo9. As produções das turmas, bem como a sistematização das/os professoras/es foram então postadas no Mural Nosso Esperançar10. Já na segunda tarefa avaliativa conjunta, foi proposta uma continuidade do trabalho reflexivo, agora especificamente voltado para os desafios dos processos de ensino e aprendizagem. Além disso, foi criado um outro espaço, um mural também disponibilizado no Moodle.
Na primeira atividade, foram produzidos inúmeros formatos de textos sobre o tempo presente como objeto de reflexão. Na segunda avaliação integrada, as/os alunas/os tiveram espaço de sistematizar por escrito as impressões sobre o ERE. Além das atividades avaliativas articuladas, logo no primeiro encontro síncrono, fizemos um acolhimento coletivo para as turmas, e ao final, realizamos uma atividade de encerramento, com a participação das/os oito professoras/es do 4º período.
Todas as demais atividades curriculares e avaliativas foram descritas e dispostas nas abas das aulas de maneira organizada no Moodle, contando, por vezes, com chamadas e explicações por meio de vídeos. As informações eram conferidas e reiteradas, com o objetivo de tornar clara a dinâmica do curso. Utilizamos, também, o Whatsapp como um suporte adicional, a fim de garantir a comunicação, mas orientávamos sempre as/os estudantes que buscassem as informações no UFMGVirtual, o Moodle institucional.
Para a turma da graduação, além das duas atividades avaliativas definidas e consideradas pelo coletivo das/os docentes, tivemos outros quatro momentos assíncronos de suma importância para o desenvolvimento do curso e de seus respectivos objetivos. Realizamos um fórum no Moodle, que se consolidou como um debate teórico entre as propostas curriculares de Dermeval Saviani e Paulo Freire, quando trabalhamos a vertente da teoria crítica no Brasil. Nessa atividade, as/os alunas/os representaram papeis, postando textos como se elas/eles fossem os próprios autores que referenciamos. Os tópicos para a conversa foram definidos por nós e a mediação constante por parte da docente elevou as potencialidades das discussões.
Como segundo exercício, propusemos a elaboração em grupo de um mapa conceitual do campo curricular, cujas palavras-chave foram definidas previamente para sistematizar os principais conceitos das teorias tradicionais, críticas e pós-críticas de currículo (Silva, 1999). Indicamos como terceira atividade, a elaboração de um manifesto da turma em repúdio à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), criado através do recurso Wiki11 do Moodle. Por fim, solicitamos uma análise individual de produções passadas de turmas de Teorias de Currículo dispostas no blog12 a partir da bibliografia sugerida pela professora.
Cinco outros momentos aconteceram de forma síncrona (acolhimento; aula das teorias tradicionais; aula das teorias críticas; aula das teorias pós-críticas; aula extra com um convidado internacional), sendo um deles – a aula de acolhimento – organizada com todas/os as/os professoras/es do 4º período, conforme descrevemos acima. Objetivando garantir o maior acesso, tínhamos o compromisso de que todas essas atividades síncronas seriam gravadas e disponibilizadas para visualização posterior, especialmente para quem não conseguiu participar no momento em que elas ocorreram. Isso nos apresentou um desafio adicional relativo aos direitos de imagem e propriedade intelectual. Nesse caso, a UFMG elaborou um documento com uma “Advertência legal”13 lembrando o que é prescrito na Lei de Direitos Autorais e deu amplo conhecimento à comunidade. Outros problemas de ordem tecnológica foram enfrentados, especialmente quanto ao uso do Teams.
Para a turma da pós-graduação, como atividades assíncronas, também realizamos o fórum com a discussão das teorias curriculares de Paulo Freire e Dermeval Saviani, em que cada aluna/o deveria postar no fórum argumentando como se fosse o autor escolhido. Propusemos também a elaboração do mapa conceitual do campo curricular, tarefa que foi realizada em grupo. Como terceira proposta assíncrona, reservamos fóruns para o planejamento de um trabalho em três grandes agrupamentos: organizados através da ferramenta “escolha” do Moodle, as/os estudantes marcaram a opção de acordo com o interesse individual e definiram como seria a apresentação de cada um sobre os estudos curriculares brasileiros, sendo que cada grupo poderia escolher a forma como tratar a temática. Por fim, como última proposta avaliativa para o fechamento do 2020/1, as/os estudantes elaboraram textos acadêmicos individuais relacionando a bibliografia do curso à proposta de pesquisa que desenvolvem ou que desejariam desenvolver. A professora analisou cada uma das produções e concedeu a devolutiva dos textos de maneira individualizada.
Como atividades síncronas para a turma da pós, abrimos o semestre letivo com uma dinâmica de acolhimento utilizando Mentimeter14, para que as/os estudantes compartilhassem angústias e estratégias em relação à pandemia vivenciada. Disponibilizamos, após o encontro, as nuvens criadas no ambiente virtual de aprendizagem.
Atendendo as orientações de articular as atividades e disciplinas, com o objetivo de pluralizar os olhares e fomentar as discussões, algumas aulas síncronas foram desenvolvidas de modo articulado entre as turmas da graduação e da pós-graduação. Respondendo à questão orientadora “o que é fundamental que as turmas aprendam?”, foram organizadas aulas síncronas sobre teorias tradicionais, teorias críticas e teorias pós-críticas para ambas as turmas e em momentos conjuntos.
Uma outra atividade formativa para as turmas foi a palestra do Dr. Leonardus Sodibyo, pesquisador na University of Illinois, nos EUA. O tema proferido foi sobre o currículo da Indonésia, país de origem do pesquisador. O evento contou com tradução simultânea e transmissão pelo canal do Youtube15. Esse momento síncrono foi de grande prestígio para as/os alunas/os e todas/os aquelas/es que se inscreveram para direito à fala, tiveram os seus questionamentos respondidos pelo professor convidado naquela manhã.
Por fim, é importante pontuar que tal como preconizam Pereira et al. (2020), nos valemos da prática denominada pelas/os autoras/es como “aquecimento”, ou seja, a cada encontro síncrono, retomávamos os conteúdos e as atividades anteriores, tanto síncronas, quanto assíncronas, articulando os trabalhos desenvolvidos. Isso favoreceu a compreensão das teorias estudadas e possibilitou que as/os alunas/os se sentissem motivadas/os e convidadas/os à participação efetiva durante a aula.
Nada cai no mesmo lugar: reflexões sobre o processo avaliativo no contexto do ERE
Se a avaliação já é um aspecto do planejamento pedagógico por vezes mal compreendida, avaliar no ensino remoto emergencial pode suscitar ainda mais problemas. Conforme argumenta Cipriano Luckesi (2002), é preciso que nós, educadoras/es, adquiramos a habilidade de avaliar a aprendizagem e não a de examiná-la. Isso implica, ainda segundo o autor, entender que o ato de examinar tem como características a classificação e a seletividade da/o estudante. Ao contrário, avaliar tem o sentido de diagnóstico e inclusão das/os educandas/os.
Para que aprendamos a avaliar, Luckesi (2002) propõe três considerações. A primeira, diz respeito à disposição de que nós, educadoras/es, estejamos abertas/os a esse aprendizado. A segunda delas, podemos aprender sobre avaliação da aprendizagem observando se estamos satisfeitas/os (ou não) com os resultados de aprendizagem de nossas/os educandas/os decorrentes de nossa ação pedagógica. Por fim, como terceiro e último ponto, o autor reforça o quanto o que já foi escrito sobre avaliação pode ser um bom aliado nesse percurso. Estudar o que já foi sistematizado seria, assim, uma frente importante no aprender a avaliar.
Tomando como ponto de partida essas ideias, refletimos sobre a avaliação no contexto do ERE. Ione Rodrigues (2020) aponta barreiras para a realização da avaliação de aprendizagem frente às exigências dos tempos pandêmicos. Destacamos a possível “migração inadequada dos modelos de avaliação entendidos como exames para o ensino remoto” e a “lacuna tecnológica, que varia desde a falta de acesso à tecnologia e conectividade até a lacuna das habilidades digitais de professores e estudantes e a falta de apoio das autoridades político-acadêmicas” (Rodrigues, 2020, p. 47).
Entendemos que a avaliação do processo de aprendizagem deve ser planejada tendo como referência a mesma questão que orienta a seleção dos conteúdos para as aulas síncronas: o que é fundamental que as turmas aprendam? Ao responder essa pergunta, as atividades avaliativas das disciplinas foram planejadas de modo tal que pudessem evidenciar que houve, por parte das/os alunas/os, a aprendizagem daqueles conteúdos primordiais.
Na turma da graduação, destinamos pontuação às duas atividades publicadas no mural virtual e igualmente validadas por todas/os as/os demais professoras/es do 4º período (20 pontos a primeira e 10 a segunda); ao mapa conceitual das teorias de currículo realizadas em grupo (40 pontos); à análise das produções no blog (30 pontos), conforme explicamos anteriormente. Na turma da pós-graduação, no entanto, foram pontuados os seguintes exercícios: elaboração conjunta do mapa conceitual das teorias de currículo, atividade em grupo cujo modelo de apresentação foi definido pelas/os próprias/os componentes e, por fim, escrita do texto acadêmico. A distribuição de pontos foi equilibrada entre as tarefas: as duas primeiras valendo 30 pontos e a última 40 pontos.
Como última atividade e comum às turmas, além de um momento síncrono para compartilharmos poesias, músicas, depoimentos e impressões do período que se passou, disponibilizamos uma tarefa no ambiente virtual para que as/os alunas/os avaliassem: três aspectos assertivos no desenvolvimento da disciplina; três aspectos que poderiam ser melhorados ou corrigidos; quais efeitos a disciplina produziu em relação ao desejo pelo exercício docente. Recebemos 18 avaliações da disciplina na turma da graduação, que possuía 37 estudantes matriculadas/os, e tivemos 13 retornos, de um total de 27, na turma da pós-graduação. Entendemos que essa devolutiva, algo próximo a 50%, aconteceu em função da sobrecarga comum ao encerramento do semestre letivo e que também atinge o corpo discente. Soma-se a isso o fato de que essa atividade não seria pontuada. Apesar de não ser avaliada com nota, talvez seja esse o nosso melhor instrumento para reflexão e replanejamento da disciplina de Teorias de Currículo, cujas lições ultrapassam a oferta 2020/1 e a temática que se centra.
Como cai no coração: a avaliação do curso segundo as/os discentes
A partir da leitura minuciosa das 31 avaliações preenchidas pelas/os estudantes, elaboramos o próximo item considerando a recorrência de excertos destacados e/ou a relevância das contribuições para a nossa prática formativa. Analisamos conjuntamente os trechos e refletimos sobre as nossas escolhas curriculares e pedagógicas por meio do instrumento de avaliação utilizado nas turmas de Teorias de Currículo.
Graduação
As/os estudantes da graduação destacaram fortemente como acertada a organização do Moodle, bem como a descrição pormenorizada das atividades ali contidas. Consideramos que a facilidade na localização das informações do curso é um ponto crucial no acolhimento efetivo das/os discentes, que já é tão importante no curso presencial, mas que no remoto torna-se condição primária. Embora tenhamos organizado vários momentos ao longo do curso para esclarecimentos gerais, as informações descritas no ambiente virtual eram fundamentais. Esse trabalho meticuloso de composição do ambiente virtual, contando inclusive com uma identidade visual especificamente desenvolvida para a disciplina, foi destacado pelas/os alunas/os como um aspecto importante para o sucesso da formação desenvolvida. Segundo uma delas, da forma cuidadosa como o ambiente virtual foi planejado, não havia “brecha” para que as/os alunas/os não visualizassem alguma atividade. Ressaltaram bastante nossa disponibilidade e consideraram que a parceria estabelecida por nós duas ajudou a “amenizar as inseguranças coletivas”, como observou uma estudante.
As/os alunas/os elogiaram a didática da professora; o prazo estendido das atividades; a distribuição equilibrada dos pontos; a dinâmica estabelecida revezando aulas síncronas – e sua pontualidade, e assíncronas; o uso de diferentes plataformas, recursos e ferramentas; aulas e atividades conjuntas; a escolha da bibliografia, a aula especial com o convidado internacional. Um aluno comentou que os textos indicados foram “um dos mais interessantes até agora na Pedagogia”.
Tudo isso muito nos animou. O reconhecimento de que nosso trabalho pedagógico foi assertivo a partir da “consideração da individualidade de cada aluno”, “o respeito às dificuldades”, “o contato cuidadoso”, “abertura ao diálogo”16 fortaleceu nosso desejo de nos dedicarmos à educação, ainda que, naquele ano, passávamos por um período extremamente complexo e perturbador. Num contexto atípico como foi o 2020/1, entendemos que essa preocupação com a aprendizagem por meio da escuta de cada aluna/o era nosso compromisso primeiro.
Quanto aos desafios, as/os estudantes comentaram que as aulas conjuntas com a turma da pós as/os inibiu, uma vez que a turma da graduação supõe que essas/es outras/os alunas/os estão em patamares distintos quanto à caminhada formativa, e, muito em função dessa organização, indicaram como um transtorno que algumas aulas síncronas tenham sido agendadas fora do horário destinado à disciplina. Ao que parece, os propósitos de articulação de diferentes experiências entre as/os estudantes da graduação e da pós não foram suficientemente esclarecidos por nós e precisam de um debate mais consistente em edições futuras.
Houve, também, aluna/o expressando insatisfação quanto ao número de atividades (seriam muitas), tem aquela/e que não considerou que o mapa conceitual é uma ferramenta efetiva para organização do pensamento e algumas/alguns tiveram dificuldade em se reunir virtualmente nos grupos de trabalho. Além desses comentários, uma estudante disse que ela entendia ser preciso um aprofundamento de temáticas contempladas na disciplina. Como o conteúdo da disciplina é extenso e denso, ao final do curso em suas edições presenciais costuma-se ouvir das turmas avaliação semelhante e um desejo de continuidade, com uma extensão da carga horária, a fim de oportunizar mais momentos de aprendizagem teórica. Entendemos que com as adaptações e limitações impostas pelo ERE isso pareceu ainda mais necessário para essa aluna.
Destacamos, por fim, o depoimento da estudante que evidenciou o esforço do planejamento mais bem adaptado ao contexto do ensino remoto emergencial, não se tratando, portanto, de uma mera transposição do planejamento quando pensado para aulas presenciais.
“O ensino remoto emergencial tem suas especificidades e é bem diferente da aula presencial. No entanto, alguns professores não compreenderam essas diferenças e o ERE seguiu nos mesmos moldes da aula presencial: leitura prévia de um texto e discussão em sala. Na disciplina de Teorias de Currículo, senti que houve um forte investimento em buscar novas metodologias para o “ensino a distância”. Me surpreendi com as metodologias exploradas, algumas inclusive sendo impossíveis ou difíceis de serem utilizadas na modalidade presencial, como as atividades coletivas, a construção de textos coletivos e a conversa com o convidado internacional” (depoimento de uma estudante matriculada na disciplina Teorias de Currículo, no 4º período da graduação em Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais).
Pós- graduação
Diferentemente da turma de graduação, na pós, as/os alunas/os destacaram o quanto as aulas coletivas com a turma da graduação foram provocativas. Igualmente, elas/es elogiaram inúmeros aspectos: a organização e a centralidade do Moodle; as atividades, que foram criativas e estimulantes, com reforço do quanto as aulas assíncronas foram bem diversificadas; a duração das aulas síncronas, com exposição curta e troca de conhecimentos posterior; a gravação dos momentos síncronos e o zelo na sua disponibilização; o planejamento adaptado para “aulas on-line”, segundo uma estudante, e o uso do livro Documentos de Identidade, de Tadeu Tomaz Silva, como proposta de organização do curso. Houve quem elogiou a atividade avaliativa da construção do mapa conceitual, considerando-a uma organização potente do pensamento e houve quem ponderou sobre a dificuldade de executá-la. Essa multiplicidade de percepções reforça em nós a certeza de que é preciso diversificar as práticas formativas e avaliativas, a fim de alcançar a pluralidade de sujeitos.
Como aspectos a se melhorar, um aluno indicou que a própria construção da avaliação do curso que realizava naquele momento poderia ter sido construída por meio de um formulário eletrônico a fim de facilitar sua resposta. Concordamos com o estudante e passamos a adotar a ferramenta por ele proposta no semestre seguinte. Outra crítica comum foi em relação aos problemas técnicos que tivemos durante o uso do Teams, a plataforma que utilizamos para as atividades síncronas do curso.
Houve aquelas/es que indicaram, também, a dificuldade de se trabalhar em grupo, especialmente sem os momentos presenciais. A recorrência desse apontamento nas duas turmas indica que esse é um desafio ainda mais percebido durante o ERE. Também teve quem pontuou o volume expressivo de textos e de trabalhos, um aluno disse que três atividades, num contexto de ERE, foi um número acima do que ele considera indicado. Esse é um dilema que requer muita reflexão, já que a Universidade determina que uma atividade avaliativa pode ter no máximo 40 pontos, o que implica em ter no mínimo três atividades pontuadas.
Também na turma da pós, nos pareceu que foi de importância maior no desenvolvimento do semestre letivo a escuta e o diálogo com as/os estudantes. Os aspectos emocionais, ligados à saúde mental, precisaram ser cuidadosamente considerados em meio aos inúmeros desafios impostos pela pandemia. Destacamos, então, o depoimento de uma aluna:
“O apoio e assistência foram de enorme importância, principalmente, para mim, porque teve um momento no meio do semestre, que eu simplesmente me desliguei de tudo. Estava passando por uns problemas familiares e, sem poder ajudar, fiquei totalmente desestabilizada. Então, os avisos me ajudaram muito a não me perder totalmente na disciplina. Adorei os trabalhos em grupo também. Não sei como foi nos outros grupos, mas no meu, a gente conversou muito, se reuniu virtualmente, compartilhamos várias coisas e o mais importante, todo mundo se dedicou e fez sua parte para que pudéssemos entregar trabalhos de qualidade. Apesar da distância, fomos um grupo muito unido e acolhedor uns com os outros” (depoimento de uma estudante matriculada no Mestrado em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, dizendo sobre a disciplina de Teorias de Currículo, ofertada no 2020/1, no contexto do ensino remoto emergencial).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
as mudanças mais bonitas
não vêm com calma e sossego
são uma ventania incontrolável
jogando tudo pra cima
nada cai no mesmo lugar
nem as coisas
nem o coração
nem você
o tempo fechado nos abre
(Ryane Leão)
Em tempos de pandemia, com tantos sofrimentos, durezas, tristezas, perdas, dores, lutos e absurdos; respirar e seguir não foi fácil. Para isso, um caminho possível foi procurar perceber que em meio a inúmeros desafios, feitos interessantes foram surgindo: a experiência do ERE foi uma delas. É preciso reconhecer que toda a violência e as ventanias vivenciadas nos abriram para experimentar outras práticas formativas. Foram períodos intensos e angustiantes, mas que nos oportunizaram inéditas aprendizagens. Tempos que nos deslocaram e recolocaram, tocaram nosso coração com outro compasso e transformaram nossos currículos, nossas avaliações e a nossa formação docente.
Para seguir adiante, são necessários corações corajosos sempre, transbordantes em esperanças, no sentido freiriano. Nos tempos tempestuosos vivenciados, a convocatória de nosso patrono é ainda mais necessária. Esperançar na formação docente foi nosso mantra em todo o processo vivido e aqui sistematizado: aliadas, de mãos dadas, trabalhando, formando e aprendendo.
Igualmente, consideramos ser preciso avaliar todas as situações enfrentadas com extrema responsabilidade. A falta de adequados recursos financeiros, bem como de uma equipe de suporte em número correspondente ao imenso desafio do ERE, dificultou sobremaneira os trabalhos, e as inúmeras falhas e inconsistências nos sistemas e nas plataformas digitais trouxeram uma sobrecarga adicional ao já exaustivo trabalho docente. No entanto, reiteramos que o processo desenvolvido no primeiro semestre letivo de 2020, com a experiência inédita do ensino remoto emergencial, apesar das inúmeras dificuldades, foi realizado com grande comprometimento, responsabilidade e respeito à vida.
Todos os planejamentos, bem como todas as ações, foram tomados tendo como objetivo central priorizar a maior inclusão possível do corpo discente, tanto no sentido de matrícula, quanto na permanência segura e saudável de nossas/os estudantes. Nas disciplinas em que estivemos envolvidas diretamente, avaliamos que o planejamento foi feito considerando as prováveis limitações advindas do acesso e domínio tecnológico de nossas alunas/os e foi permanentemente flexibilizado em função das demandas pessoais, reflexo do período pandêmico. Destacamos que houve um considerável esforço em fazer uso de distintos recursos, ferramentas e plataformas, no sentido de tornar o processo de ensino e aprendizagem atrativo e mais adequado à educação remota.
Destacamos, adicionalmente, a relevância do questionamento que orientou a seleção dos conteúdos para as aulas síncronas e posteriormente a avaliação, a saber: “o que é fundamental que as turmas aprendam?”. Compreendemos que essa estratégia tornou o planejamento pedagógico exequível, reflexivo e politicamente orientado, sendo essas características importantes para o desenvolvimento de diferentes propostas de ensino e de aprendizagem, em contextos diversos.
Como pontos para atenção, destacamos a necessidade de suporte institucional mais centralizado e voltado também para a preparação das/os professoras/es no uso de recursos e ferramentas cuja utilização é condição no ERE. Inúmeros esforços foram feitos nesse sentido, mas, pensando na permanência da modalidade de educação remota emergencial que perdurou durante a pandemia, seria importante centralizar essas iniciativas e ampliar a capacidade de suporte institucional.
Por fim, é preciso reiterar nossa contundente defesa da educação pública como um direito de todas/os. Diante de tantas tragédias impostas pela covid-19, a garantia do financiamento adequado da educação, a fim de viabilizar o desenvolvimento dos trabalhos formativos, era uma necessidade latente. Para isso, desde aquele ano, reivindicamos que o Plano Nacional de Educação, Lei 13.005, 25 de junho de 2014 (Brasil, 2014), seja cumprido e que seja revogada a Ementa Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, a qual congela por 20 anos os investimentos em saúde e educação. Essas são algumas das lutas necessárias às quais nos juntamos desde outrora, de modo comprometido e esperançoso, no sentido freiriano do termo.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Estabelece o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 26 jun. 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso em: 06 set. 2024
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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Painel Coronavírus Brasil, 2020. Disponível em: https://covid.saude.gov.br. Acesso em: 06 set. 2024.
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e imaginação política. Youtube, 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=iqI7ZHVniSg&list=PL71U4jKxR54IxlJoBK1ONBRi07NOCt94Z&index=5.
Acesso em: 6 set. 2024.
Shirlei Rezende Sales
Pós doutora pela University of Illinois, USA. Professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFMG. Doutora em Educação pela mesma universidade. Coordenadora da linha de pesquisa Currículos, culturas e diferença. Membro dos seguintes grupos de pesquisa: EM Debate: Grupo de Pesquisas e Estudos sobre o Ensino Médio; Observatório da Juventude da UFMG; Ensino Médio em Pesquisa (EMPesquisa).
shirlei.sales@hotmail.com
Bruna de Oliveira Gonçalves
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFMG. Mestra em Educação Tecnológica (CEFET-MG). Pedagoga na Diretoria de Educação a Distância e Educação Digital (DEDD/UFMG). Membro dos seguintes grupos de pesquisa: EM Debate: Grupo de Pesquisas e Estudos sobre o Ensino Médio (UFMG); Observatório da Juventude da UFMG; Formação e Qualificação Profissional (FORQUAP/CEFET-MG).
brunadogoncalves@gmail.com
Como citar este documento – ABNT SALES, Shirlei; GONÇALVES, Bruna de Oliveira. Ventanias e o esperançar: currículo e avaliação na formação docente em tempos de ensino remoto emergencial. Revista Docência do Ensino Superior, Belo Horizonte, v. 14, e051810, p. 1-20, 2024. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.51810 . |
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1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG,
Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4446-9508.
E-mail: shirlei.sales@hotmail.com
2
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG,
Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-6787-1914.
E-mail: brunadogoncalves@gmail.com
Recebido em: 02/04/2024 Aprovado em: 13/08/2024 Publicado em: 12/11/2024
3 Sigla em inglês para Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment – Ambiente de aprendizado modular orientado ao objeto. É um tipo de plataforma on-line e gratuita destinado a processos de ensino e aprendizagem.
4 Comunicação em tempo real.
5 Ferramenta desenvolvida para facilitar a comunicação e promover a colaboração entre pessoas e/ou equipes de uma empresa. Lançada em 2016, foi adotada no período de Ensino Remoto Emergencial por muitas Universidades, tanto para o desenvolvimento de atividades síncronas quanto assíncronas.
6 Mural coletivo construído no ciberespaço. Disponível em: https://padlet.com/ . Acesso em: 12 nov. 2024.
7 Esperança e imaginação política. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iqI7ZHVniSg&list=PL71U4jKxR54IxlJoBK1ONBRi07NOCt94Z&index=5. Acesso em: 28 fev. 2024.
8 Disponível em: https://youtu.be/azt9TblABx4. Acesso em: 17 jul. 2024.
9 Disponível em: https://youtu.be/X6VeiuhAbWI. Acesso em: 17 jul. 2024.
10 Disponível em: https://padlet.com/brunadogoncalves/902iql0e9zdmgnn9. Acesso em: 17 jul. 2024.
11 Módulo de atividades que permite aos usuários adicionarem e editarem uma coleção de páginas web.
12 Site pessoal ou profissional organizado como uma espécie de diário visando a um determinado fim.
Disponível em: www.professorashirleisales.wordpress.com. Acesso em: 17 jul. 2024.
13 O documento está disponível no site https://www2.ufmg.br/prograd/prograd/Pro-Reitoria-de-Graduacao/Publicacoes/Ensino-Remoto-Emergencial.
14 Site utilizado para nuvens de palavras. Disponível em: https://www.mentimeter.com/pt-BR.
15 Plataforma de compartilhamento de vídeos criada em 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D3eC3eK-qFI&t=1822s.
16 Neste tópico do artigo traremos entre aspas trechos literais das avaliações que as/os alunas/os realizaram a respeito do desenvolvimento do curso.
Rev.
Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 14, e051810, 2024