DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52334
SEÇÃO ESPECIAL: DEMOCRACIA E ENSINO NA UNIVERSIDADE: 60 ANOS APÓS O GOLPE DE 1964
Docência
e resistência: aprendendo com estudantes indígenas no contexto
democrático universitário
Docencia
y resistencia: aprendiendo de los estudiantes indígenas en el
contexto democrático universitario
Teaching and resisting: learning with indigenous students into democratic university’s context
Bruna Donato Reche1, Thomas Luan Plandjug Nambla2
RESUMO
Este artigo trata de um relato de experiência docente na formação inicial de pedagogos indígenas Laklãnõ/Xokleng em uma Instituição Federal de Ensino Superior no interior do estado de Santa Catarina, entre 2018 e 2023. O objetivo é problematizar as relações sociais forjadas no tempo e espaço de cultura erudita, majoritariamente eurocêntrica, que é o da universidade, na formação de sujeitos, cujo objetivo maior é a qualificação para atuar em suas comunidades, escolas e centros culturais de tradição indígenas, ao passo de sua resistência em ocupá-los. Para isso, discute-se sobre conceitos de democracia, desobediência civil e resistência indígena como orientadores das práticas pedagógicas, além da pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani. Os resultados das práticas relatadas apontam que o conhecimento diagnóstico da realidade social e dos objetivos de formação dos discentes indígenas foi fundamental para a construção de práticas educativas ancoradas na intenção do fortalecimento de espaços formativos das comunidades indígenas, além do corpo discente indígena na instituição. Conclui-se que a permanência das minorias econômicas ainda é uma inconstante na universidade e que sua efetividade necessita do trabalho intercultural coletivo e institucional, de modo a fortalecer a democracia nacional e os direitos sociais a que ela proclama.
Palavras-chave: estudante indígena; ensino público; formação de professores; resistência indígena; redemocratização do ensino.
RESUMEN
Este artículo aborda un relato de la experiencia docente en la formación inicial de pedagogos indígenas Laklãnõ/Xokleng en una Institución Federal de Educación Superior en el interior del estado de Santa Catarina, entre 2018 y 2023. El objetivo es problematizar las relaciones sociales forjadas en el tiempo y espacio de la cultura erudita, mayoritariamente eurocéntrica, de la universidad, en la formación de sujetos, cuyo principal objetivo es la calificación para trabajar en sus comunidades, escuelas y centros culturales de tradición indígena y al mismo tiempo su resistencia a ocuparlos. Para esto, se discuten los conceptos de democracia, desobediencia civil y resistencia indígena como guías para las prácticas pedagógicas, además de la pedagogía histórico-crítica de Dermeval Saviani. Los resultados de las prácticas reportadas indican que el conocimiento diagnóstico de la realidad social y los objetivos formativos de los estudiantes indígenas fue fundamental para la construcción de prácticas educativas ancladas en la intención de fortalecer los espacios de formación de las comunidades indígenas, además del estudiantado indígena en la institución. Se concluye que la permanencia de las minorías económicas sigue siendo una inconsistencia en la universidad y que su efectividad requiere de un trabajo intercultural colectivo e institucional, a fin de fortalecer la democracia nacional y los derechos sociales que proclama.
Palabras clave: estudiante indígena; educación pública; formación de profesores; resistencia indígena; redemocratización del’ educación.
ABSTRACT
This article reports a teaching experience in the initial pedagogues training of indigenous Laklãnõ/Xokleng at a Higher Education Federal Institution into the state of Santa Catarina, between 2018 and 2023. The goal is to problematize the social relationships made in the time and space of university’s erudite culture, mostly eurocentric, related to people education’s whose main objective is qualification to work in their communities, schools and indigenous heritage centers and at the same time as their resistance to occupying them. To this end, the concepts of democracy, civil disobedience and indigenous resistance are discussed as guides for pedagogical practices, in addition to the theory historical-critical pedagogy from Dermeval Saviani. The results from the reported practices indicate that the social reality and the training objectives of indigenous students’ diagnostic knowledge were fundamental for the educational practices construction anchored to the intention of strengthening formative spaces in the indigenous communities, in addition to the indigenous student body at the educational institution. It is concluded that the permanence of economic minorities is still an inconsistency in the Brazilian university and its effectiveness requires collective and institutional intercultural work, in order to strengthen national democracy and the social rights it proclaims.
Keywords: indigenous student; public education; teacher training; indigenous resistance; education’s democracy.
INTRODUÇÃO
O ano de 1984 marcou um importante momento no Brasil, uma vez que os movimentos sociais e políticos em prol da redemocratização rumaram em favor do fim da ditadura político-militar nacional, que teve duração entre 1964 e 1985, e que, por sua vez, perdia suas forças em vista da reorganização global do capitalismo e da liberdade de fronteiras e de economias locais.
No bojo do fim da ditadura, a qual Saviani (2017, p. 5) chama de “militar-empresarial”, uma vez que ela articulou a economia nacional aos ditames internacionais e, por consequência, as discussões sociais com vistas à redemocratização do Brasil, uma nova Constituição Federal foi aprovada em 1988. Essa nova constituição afirmava que o Estado democrático seria o responsável por assegurar o desenvolvimento e o exercício dos direitos sociais e individuais, de soluções pacíficas das controvérsias, além da igualdade, da justiça, da segurança, da liberdade e do bem-estar em uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (Brasil, 1988). São quarenta anos, portanto, de discussões sobre a democratização da sociedade brasileira.
Entretanto, apesar de a letra manifestar a defesa da soberania nacional, da cidadania e da igualdade entre os brasileiros, sendo a favor dos direitos sociais, a lei pode ser interpretada a partir dos sentidos de neoliberalização desses direitos sociais como mercadorias em prol do capital estrangeiro. E é nessa contradição que se forja a educação escolar pública nacional, que, por um lado, é direito humano de socialização e humanização, via conhecimentos elaborados e, por outro lado, é mercadoria mantenedora do sistema econômico, via conhecimentos básicos ao seu próprio funcionamento.
É também nessa contradição que se manifestam, a partir da resistência, os direitos sociais das minorias econômicas brasileiras, como o direito à educação pública dos indígenas e dos povos originários a que apregoa a Constituição Federal e, por consequência, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996). Esses direitos são executados conforme a atuação constante dos grupos sociais que se articulam, via democracia, para o planejamento e a prática dos acessos e permanências institucionais e, desses, na valorização, formação, preservação e aperfeiçoamento dos saberes plurais.
Este artigo aponta que, apesar dos quarenta anos de soberania da República Democrática Brasileira, os direitos constitucionais se desenvolvem pari passu à ação consciente e determinada. Além disso, destaca que os valores democráticos precisam ser reclamados constantemente, ainda que pela desobediência civil (Saviani, 2017), para que as minorias econômicas tenham acesso aos meios de cultura elaborada e, com ela, forjem e elaborem saberes que fortaleçam grupos sociais como um todo.
No âmbito da pesquisa-ação, enquanto método de pesquisa que se utiliza da pesquisa científica para a transformação da própria prática (Tripp, 2005), este trabalho relata a experiência de uma professora formadora de pedagogos de uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) em sua relação com os discentes oriundos da comunidade indígena Laklãnõ/Xokleng, do interior do estado de Santa Catarina, no período de 2018 a 2023. Buscou-se problematizar as relações sociais desse espaço de cultura erudita, majoritariamente eurocêntrica, na formação de sujeitos, cujo objetivo maior é a qualificação para atuar em suas comunidades, escolas e centros culturais indígenas, com vistas ao seu fortalecimento, valorização e difusão de saberes ancestrais, em um contexto de resistência frente às contradições sociais e políticas da ocupação e permanência desses alunos no espaço público de formação universitária, no que caracteriza e especifica essa luta no interior do estado de Santa Catarina.
O contexto sócio-histórico deste artigo, portanto, reflete sobre as contradições permeadas pela ocupação, termo que, abstraído de Ferreira (2019), tem o sentido de tomar lugares públicos que são, por direito social de desenvolvimento humano, dos povos originários e das comunidades indígenas nos espaços tradicionais de educação e cultura e de seus desdobramentos, especificamente na formação de professores pedagogos em uma IFES.
Ao lembrar a década de 1970, quando as terras do povo Krenak, em Minas Gerais, foram tomadas por posseiros com a ajuda do Estado, ao passo da tortura e dos maus tratos com que este povo foi tratado desde então e que, a partir da resistência, Ailton Krenak tornou-se um dos pensadores mais importantes na atualidade, este artigo tem o termo resistência indígena como fundamental. Assim como na tese de Cappellari (2022), resistência indígena significa o ato que se trava contra a colonização dos costumes, crenças e regiões, contra a violência promovida por latifundiários, mineradores e madeireiros, contra o preconceito e a discriminação por ser indígena e contra o capitalismo que submete a natureza a interesses econômicos, conforme acontece o fortalecimento das vozes que criam entendimento, identificação e pertencimento sobre a vida.
No que tange à resistência indígena dos Laklãnõ/Xokleng, esse conceito se caracteriza na luta contra a ocupação de suas terras originárias por outrem, contra o aculturamento e a demonização da própria existência, do exotismo e da caricatura e contra a dissolução dos laços culturais que promovem ideologias que minimizam, marginalizam, criminalizam e, consequentemente, despersonalizam a existência comunitária construída na relação simbiótica com a natureza.
O texto está dividido em cinco tópicos. O primeiro aponta o pressuposto da pedagogia histórico-crítica de fortalecimento dos valores democráticos na formação dos sujeitos e enquanto amparo teórico neste relato de experiência. O segundo enfatiza o acesso ao ensino superior público em uma IFES, no interior de Santa Catarina, de estudantes indígenas Laklãnõ/Xokleng enquanto minorias econômicas excluídas da história do desenvolvimento da sociedade nacional. O terceiro inicia o relato de experiência docente sobre práticas pedagógicas no momento anterior à pandemia e reflexões teóricas em torno dessas práticas. O quarto, com o retorno das atividades presenciais, pós-pandemia, relata a ênfase na arte e, dessa, a arte indígena como propulsora das práticas pedagógicas formativas dos acadêmicos de Pedagogia. Por fim, o quinto tópico apresenta os dilemas e as motivações de um discente indígena, mais a prática individualizada de acompanhamento e incentivo de seu processo formativo.
A DEMOCRACIA E A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NO FAZER DOCENTE UNIVERSITÁRIO
Ao retomar quarenta anos de história sobre democracia e educação, à época da ditadura militar-empresarial no país, as manifestações estudantis, entre os anos de 1970 e 1980, frequentemente ocorriam nas escolas e nas universidades brasileiras, sobretudo ao coincidirem com as mobilizações estudantis francesas que, do outro lado do Atlântico e sob outras perspectivas, visavam a revolução social por meio da revolução cultural (Saviani, 2005).
Esses debates ressoaram na discussão sobre a nova democracia brasileira que, para parte dos pesquisadores da educação à época, deveria ser inspirada na democracia histórico-dialética: “Não estamos falando sobre as coisas que pertencem ao século XIX, e que são ruins e efêmeras, mas sobre categorias que são eternas” (Engels, 1894, p. 3). Isso significa uma transformação das categorias históricas de democracia, um vir a ser a superação das contradições sociais e das instituições coagentes de determinadas práticas ou relações para, então, os âmbitos social e político fundirem-se no ato da existência comunitária em sua essência genérica. Considerando o ato político como uma atividade do povo e não como uma especificidade do Estado que, pela divisão do trabalho, divide a instituição democrática em poderes, Marx (2011) exprime a democracia como conteúdo resultante das potencialidades humanas decorrentes da atividade consciente, portanto, uma democracia resultante dos sentidos materiais e espirituais desenvolvidos em sociedade livre.
Com o fim da ditadura empresarial-militar brasileira e a aprovação da Constituição Federal em 1988, a discussão, a expansão e a consolidação de ideais pedagógicos influenciados, sobretudo, pelo materialismo histórico-dialético tomam corpo nas universidades brasileiras, contribuindo para pensar a educação como direito social – na superação de seu desvelamento como instrumento de formação do trabalhador – com vistas a uma sociedade mais igualitária e democrática em oposição ao totalitarismo, aos conflitos políticos e ao tolhimento dos direitos sociais findados.
Ao questionar-se sobre a possibilidade de uma pedagogia escolar que não fosse, apenas, crítica e consciente dos determinantes sociais, mas que também pudesse orientar para a transformação, por meio da ação pedagógica, Saviani (2005) aponta a pedagogia histórico-crítica como teoria pedagógica da educação inserida, mas em oposição, à sociedade capitalista, isto é, forjada dentro das contradições sociais do capitalismo, porém, tendo como função o pressuposto de sua superação radical na transformação dos pilares sociais privatizados em públicos, amplos e socializados, por meio da instrumentalização da classe trabalhadora.
Nesse sentido e no que tange à formação de professores, Saviani (2009) defende que a Pedagogia tem como fim desenvolver uma aguda consciência da realidade educacional, fundamentação e instrumentalização para a prática a partir das bases históricas, filosóficas, científicas, estéticas e tecnológicas com atenção e cuidado à não limitação do conhecimento da realidade, mas, a partir dela, a atuação para a transformação social mais ampla, que só é possível via postura reflexiva, para com a problemática educacional que a consciência filosófica representa. É essa teoria que embasa a prática docente relatada neste artigo e que orienta o entendimento sobre as contradições que interferem na docência e na formação de professores especificamente indígenas.
Assim, o próximo tópico trata de algumas dessas contradições, sobremaneira no que tange às condições de vida e de acesso ao ensino superior dos Laklano/Xokleng, no interior do estado de Santa Catarina, e às práticas pedagógicas construídas no tempo e espaço de uma IFES na formação de professores pedagogos indígenas.
ENTRAR, RESISTIR E SE FORMAR PROFESSOR LAKLÃNÕ/XOKLENG: UM ATO DEMOCRÁTICO DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL
No que se refere à formação inicial docente, as IFES devem garantir 20% das vagas a atender a demanda de professorado da educação básica. Além disso, elas devem ter como finalidade ministrar cursos de formação inicial e continuada, objetivando a capacitação, o aperfeiçoamento, a especialização e a atualização dos profissionais, em todos os níveis de escolaridade, nas áreas da educação profissional e tecnológica (Brasil, 2008a).
Na sequência, a Lei no 12.711/2012 (ou Lei de Cotas) dispôs que ao menos 25% das vagas em IFES devem ser destinadas para discentes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas e para pessoas com deficiência (Brasil, 2012). Essa lei visa a reparação histórica no âmbito socioeconômico, uma vez que esses públicos foram estigmatizados pela exclusão e invisibilidade ao longo do desenvolvimento da sociedade nacional, ao fortalecer a representatividade e a diversidade étnico-racial do povo brasileiro em todos os espaços e níveis profissionais que compõem o mercado de trabalho e as instituições sociais.
Entretanto, diferentemente das licenciaturas interculturais, em que os Projetos de Curso são pensados a partir das relações socioculturais interiores das comunidades originárias, o curso de Pedagogia desta IFES é aberto a toda a população brasileira, mas mantém seu currículo formatado às tradições europeias de formação, historicamente construídas na universidade brasileira.
Assim, quando no ano de 2016 a primeira turma ingressou no curso de Pedagogia desta IFES, estabelecida no interior do estado de Santa Catarina, sem utilizar a Lei de Cotas/2012, a maioria dos discentes originava-se de famílias descendentes de colonos alemães e italianos que ocuparam o território do Alto Vale do Itajaí no início do século XIX, usualmente denominada Alto Vale Europeu. O mesmo ocorreu com a turma do ano de 2017. Porém, em 2018 uma nova configuração se apresentou: dos 35 alunos ingressantes, quatro advinham das comunidades indígenas Laklãnõ/Xokleng, localizadas próximas à cidade de José Boiteux, a 47 quilômetros do campus.
Segundo esses estudantes, a busca pelo curso de Licenciatura em Pedagogia nessa instituição deveu-se, sobremaneira, por ser a mais próxima da comunidade e por ser pública e gratuita. Eles entraram na universidade a fim de qualificar-se para o trabalho educativo nas escolas indígenas locais, em contrapartida à histórica evangelização promovida por entidades religiosas desde o início da invasão portuguesa no que hoje se considera Brasil, enquanto processo civilizatório de inculcação da cultura europeia sobre os nativos.
A seguir, a Tabela 1 ilustra o quantitativo de discentes indígenas dessas comunidades ingressantes na Licenciatura em Pedagogia, com base nas matrículas realizadas via Lei de Cotas/2012, entre 2016 e 2023, de acordo com a Secretaria de Assuntos Acadêmicos do campus.
Tabela 1 – Entrada de discentes indígenas no curso de Pedagogia de uma IFES, com base no número de matrículas realizadas a partir da Lei de Cotas/2012.
|
Ano de Ingresso |
Total de discentes matriculados no curso de Pedagogia |
Número de discentes indígenas matriculados no curso de Pedagogia |
|
2016 |
35 |
0 |
|
2017 |
35 |
0 |
|
2018 |
35 |
4 |
|
2019 |
35 |
6 |
|
2020 |
35 |
0 |
|
2021 |
35 |
0 |
|
2022 |
35 |
1 |
|
2023 |
35 |
1 |
Fonte: Elaborada pelos autores pesquisadores.
Ao observar os dados dessa tabela, é possível perceber que a diversidade étnico-racial do público-alvo foi se construindo após os dois primeiros anos de existência do curso, paralelamente ao contexto político-social em que vivia o país desde o impeachment do governo de Dilma Roussef, em 2016, a ascensão de Michel Temer como presidente e a eleição de Jair Messias Bolsonaro, em 2018.
Para a época, um conceito se tornou fundamental, o da desobediência civil (Saviani, 2017), enquanto ação de respeito pela ordem democrática quando dos assaltos de governantes aos direitos sociais de vida e de educação dos brasileiros e dos povos originários em face da Constituição Federal de 1988, que assegura o exercício dos direitos culturais indígenas, bem como o reconhecimento dos indígenas, no que cabe a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (Brasil, 1988).
Os Xokleng originariamente ocupavam as áreas do litoral e do planalto catarinense, mas com o processo de imigração europeia no estado, foram vítimas de êxodo como fuga dos assassinatos em massa. Atualmente, habitam a região entre cidades de Ibirama e José Boiteux, Vitor Meireles e Itaiópolis, oficializada em Terras Indígenas no ano de 1965 (Santa Catarina, 2018).
Mais especificamente, a história dos Laklãnõ/Xokleng no estado de Santa Catarina tem como registro três momentos decisivos à redução e ao enfraquecimento que hoje os fazem povos de resistência: a chegada arbitrária dos colonos alemães e italianos, a partir do século XIX; o movimento de pacificação entre não-indígenas e indígenas Laklãnõ/Xokleng com o auxílio dos Kaingang provenientes do Paraná, no início do século XX; e a construção da Barragem Norte do Rio Itajaí do Norte, no início dos anos de 1970, na área de proteção indígena em José Boiteux (Bento; Theis; Oliveira, 2018). Todos esses momentos, segundo os autores, foram permeados de violência e silenciamento das comunidades nativas.
Bento, Theis e Oliveira (2018, p. 2) explicam que a colonização alemã no interior do estado foi pautada pela liberação das terras ocupadas pelos indígenas sob a forma de extermínio por bugreiros – caçadores de bugres, termo pejorativo relacionado aos indígenas na época – que eram homens contratados pelos colonizadores para dizimarem os nativos. Para os autores, “[...] Esta ocupação transformou o território em propriedades privadas e confinou os indígenas a espaços cada vez mais reduzidos. Sua liberdade de circulação pela região e suas práticas culturais foram reduzidas com a justificativa de que era necessário civilizá-los” (Bento; Theis; Oliveira, 2018, p. 2).
Cabe lembrar o sentido de pacificação que, como a conversão religiosa e o êxodo das áreas originárias, é identificada como a única possibilidade de os nativos existirem para os colonizadores (Cappellari, 2022). Assim, esses conflitos camuflaram-se sob a trégua da pacificação, iniciada no ano de 1914 pelo Serviço de Proteção aos Índios, que confinou os indígenas em lugares demarcados e permitiu a expansão territorial e cultural dos colonizadores, ao passo do estranhamento daquelas pessoas em seu próprio território.
Então, cercados ao redor das cidades de Ibirama, foram ao embate novamente em 1970, diante da construção da Barragem Norte do Rio Hercílio que desemboca no Rio Itajaí-Açu, constantemente tomado pelas cheias provenientes das chuvas e inundações da região, e diante da abertura de estradas dentro da reserva. Devido à barragem, foram mais de 900 hectares de terras agricultáveis inundadas e, por conta das estradas, intensificaram-se a exploração ilegal de madeira em áreas remanescentes e os conflitos sobre a posse legal da área (Santa Catarina, 2018).
Desde esse marco na história da comunidade, é constante a necessidade de embate com fazendeiros locais. Especificamente o ano de 2023 foi de intensa disputa pela permanência dos Xokleng em suas terras, quando da tramitação judicial em segunda instância do Governo do Estado de Santa Catarina na requisição das terras habitadas pelos Xokleng, no Supremo Tribunal Federal. O resultado serviu de base ao Projeto de Lei no 2903/2023, o Marco Temporal, referente ao reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas no limite das terras nacionais. A tese jurídica do Marco Temporal – que afirmava o direito dos indígenas brasileiros permanecerem exclusivamente em terras ocupadas e/ou disputadas até cinco de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal vigente – foi derrubada por nove votos contra dois entre os Ministros, em 21 de setembro, para além de um intenso bastidor de manifestações indígenas ao redor do país (Senado Federal, 2023).
Atualmente, são 878 famílias nas áreas em comum dos Laklãnõ/Xokleng, mais de 2 mil pessoas em um espaço de 14 mil hectares. Dentro da área, há duas escolas de educação básica, cujos professores são contratados pela Secretaria de Estado de Educação (Santa Catarina, 2018).
De posse das informações históricas apresentadas, ao receber esses alunos em sua sala, no contexto pré-pandêmico, a professora preocupava-se com as ementas curriculares a serem desenvolvidas com esses discentes. Afinal, as áreas afins à educação, como Antropologia, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia, bem como as de metodologia do ensino priorizam, majoritariamente, a discussão de autores europeus. E, institucionalmente, não há prerrogativa de que os discentes indígenas sejam convidados a pensar o currículo formativo.
Decorrente disso, a preocupação com o tipo de ensino que não provocasse, via currículo oficial e oculto, mais uma vez, uma imposição do pensamento eurocêntrico na prática docente em desenvolvimento e, mesmo, uma inculcação ideológica em relação aos níveis de conhecimento elaborado de que, enquanto sujeitos, por sua vez, têm por direito a aprendizagem.
O próximo tópico trata especificamente da relação pedagógica desenvolvida pela docente a partir da caracterização desses alunos e seus processos formativos.
FORMAR PROFESSORES INDÍGENAS: UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA DEMOCRÁTICA EM CONSTRUÇÃO
A partir de uma conversa diagnóstica, compreendeu-se que a motivação destes alunos com o curso de Licenciatura em Pedagogia é a qualificação pedagógica e docente para atuação em escolas dentro das comunidades e centros de fomento e promoção das culturas indígenas, portanto, uma formação que articule os saberes ancestrais e os saberes acadêmicos.
O currículo institucional é padronizado, conforme ementas, para todos os discentes. Assim, a docente tomou por ação, na liberdade didático-pedagógica de organização disciplinar, articular os objetivos profissionais desses acadêmicos a partir dos tópicos ementários.
De acordo com Melià (1999, p. 13), a ação pedagógica comum às comunidades indígenas permeia a língua, a economia e o parentesco e, desses, “[...] a língua é o mais amplo e complexo. O modo como se vive esse sistema de relações caracteriza cada um dos povos indígenas. O modo como se transmite para seus membros, especialmente para os mais jovens, isso é a ação pedagógica”. Em espaços não-indígenas, esses elementos podem permear o senso comum e o folclore se não aprofundados, bem como se não se apresentarem efetivamente como campos de construção da resistência crítica e fundamentada na coletividade e para a comunidade.
No mesmo sentido, Silva e Costa (2018) apontam que o indígena idealizado está frequentemente presente na vida escolar, sob efeito não objetivado pela Lei no 11.645/2008 (Brasil, 2008b), que obriga o estudo da história e das culturas indígena e afro-brasileira na educação básica, ou seja, o indígena real ainda é retratado para o não-indígena como alguém do passado, aculturado e absorvido pela vida citadina.
Ciente de que o trabalho docente é, por vezes, individualizado, a alternativa encontrada foi convidar lideranças da comunidade para rodas de conversa com toda a turma dentro da disciplina, estudar autores indígenas dispostos a escreverem suas narrativas educativas e antropológicas, bem como buscar referencial teórico em pesquisas de pós-graduação atreladas às comunidades indígenas, de modo a discutir em sala de aula sobre a diversidade social, cultural e política, como também histórico-econômica, como forma de dinamizar as relações sociais construídas nesse espaço tradicional e – por estar inserido no Alto Vale do Itajaí – culturalmente europeizado.
Essa prática foi fundamentada no próprio movimento de observação da valorização das vozes economicamente minoritárias a fim do entendimento da história e da sociedade brasileira e, em particular, aprender suas histórias nas próprias narrativas de quem as vive. Ribeiro (2017) contribui ao desconstruir o lugar de fala que hierarquiza o poder sob a desigualdade, pobreza, racismo e sexismo, como exemplos, e propõe a multiplicidade das vozes como força motriz de desregulamentação do discurso autorizado e único do europeu como universal.
Gonzalez (1988) explica que a colonização do Brasil teve como referencial teórico as classificações raciais do evolucionismo positivista e a justificativa da superioridade do modelo ariano em relação ao exotismo e selvageria dos povos nativos, reforçados na produção acadêmica ocidental até recentemente, mas que, “[...] em face da resistência dos colonizados, a violência assumirá novos contornos, mais sofisticados: chegando, às vezes, a não parecer violência, mas ‘verdadeira superioridade’” (Gonzalez, 1988, p. 71).
Uma vez que a universidade é tomada por esses saberes eruditos e conhecimentos universais e o papel docente pode implicar na perpetuação dessa ideologia, a escolha do debate sobre vieses não-europeus, mais nacionais e, sobremaneira, locais, diz respeito à necessidade de desconstrução desse lugar geográfico e cultural nacional tomado por sombras de um passado sangrento.
Uma alternativa foi adequar os trabalhos extraclasse, de modo a instigar a coleta de dados relativos à realidade da comunidade indígena e reflexões pedagógicas em torno da cidadania e da educação nesses espaços. Há de se apontar que, por muitas vezes, os trabalhos foram elaborados em folhas de papel pardo escritas a lápis, em um português semialfabetizado.
Sobre isso, algumas reflexões. A primeira preocupação foi a manutenção da língua como organismo vivo que diz respeito às formas de comunicação de um povo em sua relação com o meio. No âmbito das línguas nativas no território brasileiro, Seki (2000, p. 234-235) explica que
[...] as línguas indígenas são organizadas segundo princípios gerais comuns e constituem manifestações da capacidade humana da linguagem. Cada uma constitui um sistema complexo, com um conjunto específico de sons, categorias e regras de estruturação, sendo perfeitamente adequada para cumprir as funções de comunicação, expressão e transmissão.
A língua Tupi, por exemplo, era popular à época da chegada dos primeiros portugueses ao território nacional e a mais difundida até o século XVI, até a oficialização da língua Portuguesa em 1757 pela Coroa (Dunck-Cintra; Barretos; Nazário, 2016). Devido ao processo de isolamento das comunidades Laklãnõ/Xokleng, ao longo das investidas dos colonos, os Xokleng mantiveram a língua Xokleng, da família Jê e de tronco Macro Jê. Assim, por possuírem interações linguísticas próprias e o Português ser sua segunda língua, havia a preocupação pelo não enfraquecimento do idioma próprio dentro do contexto histórico de exclusão da diversidade a que constantemente passavam3.
Nesse sentido, refletia-se constantemente sobre o que era mais importante pedagogicamente, a formatação de um trabalho baseado na Associação Brasileira de Normas Técnicas e em um português culto ou o conteúdo do texto, afinal, como refletem Dunck-Cintra, Barretos e Nazário (2016, p. 135), “[...] os governantes e uma elite brasileira em formação reproduziram o ideal de uma nação com uma língua europeia em nossas terras, em detrimento da diversidade linguística brasileira”. Assim, questionava-se sobre os elementos de conteúdo dos textos e sobre a responsabilidade docente frente ao aprofundamento reflexivo e arguição desses acadêmicos cuja crítica estivesse presente na estrutura escrita, apesar de truncada pelos idiomas.
Sobre isso, há de se destacar que o trabalho interdisciplinar poderia potencializar os objetivos pedagógicos, ao passo da atenção com o rigor, com a norma e o senso crítico, mas que não foi realizado porque cada professor tomou o processo formativo dos alunos com base em suas próprias concepções de o quê e para quê a formação docente.
Com exceção dos cursos interculturais que, presentes em algumas IFES, preveem a interculturalidade, a interdisciplinaridade e a interrelação das comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, essas são tratativas que se particularizam na relação docente-discente. Isso porque tais cursos estão na ponta de uma política de estado importante, porém recente em ações efetivas, uma vez que a preocupação central, que é a interculturalidade, esbarra em um currículo oficial fundamentado em um tempo e espaço importados da Europa, como explicam Buffa e Almeida Pinto (2016).
Como observado na Tabela 1, o ingresso de alunos indígenas alcançou pico no ano de 2019. Entretanto, no mesmo ano, a maioria desses discentes desistiram de frequentar o curso, cujas justificativas somavam-se, respectivamente, à dificuldade de transporte entre a comunidade e a instituição, às dificuldades no âmbito das atividades extraclasse, ao acesso às Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) e, o mais preocupante, à falta de pertencimento e relação social com os demais acadêmicos.
Então, em 2020, a pandemia pela covid-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde e o ensino remoto foi medida emergencial para a continuidade da progressão dos anos letivos da educação nacional, sobremaneira, via TDICs.
Sem deixar de considerar as fragilidades todas daquele momento tão nocivo à saúde mental e que, no entanto, não são foco deste artigo, o próximo tópico aborda a formação docente indígena pós-pandemia, a partir das reflexões da própria docente em convívio com os discentes como uma prática pedagógica de fortalecimento da concepção democrática de ensino superior público.
FORMAR PROFESSORES INDÍGENAS PARA O BRASIL PÓS-PANDEMIA E O FORTALECIMENTO DO SUJEITO DISCENTE
Com a pandemia, as atividades letivas de 2020 e em parte de 2021 foram realizadas via TDICs, mas com exponencial trancamento de matrículas. No ano de 2023, com a normalização das atividades presenciais, a maioria dos alunos reabriu a matrícula em aulas presenciais. Entretanto, somente um discente indígena da turma de 2019 e uma discente indígena ingressante no primeiro ano permaneceram no curso de Pedagogia.
Desse período em diante, a professora tem refletido sobre o espaço da IFES como resistência em dois sentidos: resistência ao diferente e ao que incomoda quando a arquitetura, a ideologia e a subjetividade são produzidas para um grupo socioeconômico específico e a resistência na ocupação e na legitimação desse mesmo espaço no fortalecimento das diversas culturas que caracterizam a heterogeneidade dos povos brasileiros.
Como contribuem Silva e Costa (2018), os povos nativos são involuntariamente inseridos no processo político-econômico da globalização, absorvem elementos da cultura material e imaterial de outros povos e se transformam à sua maneira, sem que isso os descaracterize como indígenas. Para os autores, mais importante do que se perguntar o que fazer com os discentes indígenas, é fortalecer o pensamento desses sujeitos sobre o que eles são capazes de fazer com tudo o que advém do contato com os não-indígenas.
Ao entender a arte como manifestação intrínseca humana, que emerge do trabalho material e imaterial sociabilizados, a professora acredita que a arte é o cerne do processo formativo nos cursos de licenciatura, sobremaneira no curso de Pedagogia. Assim, tem como princípio pedagógico a arte como propulsora das potencialidades criativas e reflexivas para fomentar a construção de uma sociedade plural e igualitária em condições de acesso aos bens culturais e artísticos e livre do domínio do capital. Não a arte como uma linguagem ou metodologia, mas como obra e trabalho humano em si.
Logo, o estudo sobre manifestações culturais e artísticas foi o caminho seguido pela professora, como os trabalhos do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Figura 1), além dos artistas Daiara Tukano, Jaider Esbell e Bu’ú Kennedy e seus contextos.
Figura 1 – Pintura Yube Inu Yube Shanu [Mito do surgimento da bebida sagrada Nixe Pae], Movimento dos artistas Huni Kuin (MAHKU), 2020.
Fonte: Museu de Arte Moderna de São Paulo (MASP, 2023).
Por meio da imagem, é possível observar representações de cenas do cotidiano da vida dos Huni Kuin, o que, em sala de aula, provocou um intenso debate sobre as figuras, sobremaneira as que representam interações com animais e outros modos de relação com a natureza. Dessa forma, a professora pôde observar com mais criticidade as relações sociais que se estabelecem, via reflexões, entre discentes não-indígenas e indígenas, bem como entre docente e discentes, mediadas pelas obras de arte.
Como marco de sua formação, ela lembra o papel docente no ato de ampliação das visões de mundo dos estudantes e com eles as suas próprias visões que se alargam quando se compreende, sob outras formas, complexas ou populares, rigorosas ou literárias, que a leitura do mundo precede a leitura da palavra erudita da sala de aula universitária e que “[...] o ato de estudar, enquanto ato curioso do sujeito diante do mundo, é expressão da forma de estar sendo dos seres humanos, como seres sociais, históricos, seres fazedores, transformadores, que não apenas sabem mas sabem que sabem” (Freire, 1989, p. 34).
A partir desse momento, a docente esteve mais próxima dos acadêmicos indígenas e, nesse sentido, acompanhou o percurso formativo de um deles, o qual o tópico seguinte trata de relatar.
SER INDÍGENA NA UNIVERSIDADE: OCUPAR E RESISTIR
No ano de 2023, a professora acompanhou o percurso de um discente indígena oriundo da turma de 2019, e único até o ano de 2022, suas expectativas, frustrações e dificuldades, as quais são relatadas neste tópico e justificam-se como retratos históricos dos percalços que percorrem no ato de ocupar e de resistir dentro da instituição tradicional de ensino e de suas relações de poder.
Ele deixou seu grupo para morar próximo ao câmpus, fez estágio remunerado não-obrigatório pelo tempo máximo permitido, dois anos, em uma escola privada do município e não conta com o Programa Auxílio Estudantil, o que contribuiria com suas despesas educacionais e para a sua permanência na instituição. Porém, uma vez que a inscrição nesse programa requer autenticação da liderança indígena de que o discente faz parte na comunidade, a distância e a falta de transporte se fazem empecilhos ao acesso a esse documento. Ele faz parte do Coletivo Indígena da IFES e afirma que essa é umas das questões que permeiam o debate do grupo sobre ingresso e permanência indígena na instituição.
Uma das maiores adversidades, para ele, é o pouco contato que tem com seus familiares desde que se mudou para a cidade. Não exercer os hábitos diários em comunidade e as atividades culturais, desde a prática do idioma até as cerimônias de tratamento à base de chás para imunidade e tratamento de doenças, torna seu cotidiano distante de sua identidade e cultura. Mas como um protagonista da resistência em um espaço pouco ocupado por eles, esse aluno gostaria de ser o primeiro Laklãnõ a se formar em Pedagogia em uma IFES.
Seus impasses permeiam relações sociais estigmatizadas com seus colegas devido à incompreensão de suas origens. Sua motivação, no entanto, está em possibilitar a aprendizagem e a preservação do idioma e da cultura Laklãnõ na escola de sua comunidade que, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, resultou na menor nota no estado: 3,7 pontos em uma escala entre 0-10 (INEP, 2022).
Enquanto docente, a preocupação foi a de orientá-lo em atividades específicas relativas à sua comunidade com vistas à criticidade da relação cidade-comunidade indígena e das ideologias que permeiam a educação escolar. Ainda assim, reconhece-se que os momentos de solidão e exclusão implicam na sua motivação para continuar o curso com dedicação. Por isso, o incentiva a construir sua jornada paulatinamente no fortalecimento de sua ancestralidade revisitada pelos saberes eruditos a que a universidade lhe oferece, com vistas ao seu futuro promissor na docência ou no trabalho educacional político.
Em geral, para a professora, ficou evidente que o trabalho intercultural é importante como forma de ampliação de visões de mundo, no sentido freiriano, e favorecimento das relações sociais distintas. Porém, as ações coletivas poderiam ser qualitativamente superiores aos trabalhos pedagógicos individualizados, se orientadas a cooperar com percursos formativos permeados de conhecimentos eruditos e elaborados para a vida citadina, mas também históricos, artísticos e culturais locais, de modo a ampliar a percepção de mundo e a vida em comunidade e, como resultado macro, o fortalecimento da democracia e do espaço do saber universitário.
Essa prática ainda está em vias de construção e, para tanto, é primazia o conhecimento histórico do passado e intenções pedagógicas que visem a ocupação das minorias econômicas nos lugares a que tem direito, como nas instituições sociais públicas e de poder. Não como resistência, mas como direito fundamental de ser brasileiro em uma sociedade democrática que há quarenta anos se fortalece na ação de grupos sociais ancorados na liberdade e na valorização dos saberes populares, culturais e tradicionais e na abertura de espaços institucionais para que, em consonância com os saberes acadêmicos, promovam a formação das novas gerações no respeito mútuo e comum dos povos à soberania.
Que a democracia brasileira possa celebrar anos mais de existência e que, fundamentada em seus valores, as IFES e demais instituições públicas de promoção da vida material e espiritual dos brasileiros sejam cada vez mais acessíveis e plurais no debate, formação e fortalecimento dos povos originários e indígenas nacionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O relato de experiência apresentou relações particulares dentro de uma IFES que, apesar de ameaças externas constantes, resguarda a civilidade e o respeito às diferenças étnicas, sociais, culturais e políticas. No entanto, considera-se importante apontar que, mesmo nelas, a efetividade dos direitos sociais é uma luta constante, bem como a garantia da democracia que, por sua vez, encontra pilares de sustentação nas próprias instituições que resguardam os direitos sociais e em relações particulares que se estabelecem em um complexo tecido social contraditório e dialético, com vistas ao fortalecimento material e espiritual da sociedade como um todo.
Se há espaço para questionamento da sala de aula universitária é porque há uma visão de democracia que se constrói no coletivo, ainda que esse espaço seja permeado de tolhimentos e que seja tradicionalmente eurocêntrico, e, muito pela resistência do discente indígena em ocupá-lo, e, neste caso, motivado pela qualificação para o trabalho na comunidade de origem, encontrada na obra de arte feita pelo indígena que tem ocupado as instituições tradicionais de arte e cultura e os de sala de aula. Ambos demonstram que, na desobediência civil, os espaços devem se abrir ao fortalecimento dos povos e das vozes que fazem parte da nação. Dessa maneira, o impacto de ações individuais tem pouca efetividade ao pensar a democracia, mas seu registro se torna importante enquanto memória de um espaço que pode ser modificado quando ocupado pela classe trabalhadora e pelos povos minoritariamente econômicos.
Posto isso, especificamente com discentes indígenas, acredita-se que o trabalho pedagógico fortalece histórias, costumes e tradições via trabalhos de campo, pesquisas científicas e materiais didáticos que contribuem para a preservação e a consolidação de suas especificidades enquanto povos nativos. Ao passo que, entretecido na dinâmica educativa com os discentes não-indígenas, espera-se a criação do espaço de aprendizado da história de violência, discriminação e dizimação dos povos nativos – que ocorre ainda nos dias atuais, mas também da pluralidade e manutenção da vida que a diversidade cultural indígena brasileira resguarda. E, de modo geral, espera-se valorização do espaço ocupado por eles em sala de aula e na IFES, maior acervo material e imaterial sobre seus conhecimentos, valorização e favorecimento das relações sociais interculturais.
REFERÊNCIAS
BENTO, Karla Lucia; THEIS, Ivo Marcos; OLIVEIRA, Lilian Blanck de. Educação escolar indígena como possibilidade para romper processos de invisibilização. Revista Tecnologia e Sociedade, Curitiba, v. 14, n. 31, p. 1-15, 2019. DOI: https://doi.org/10.3895/rts.v14n31.5037. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/5037. Acesso em: 15 jan. 2024.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Presidência da República, 1988.
BRASIL. Lei n o 9.394, de 20 de dezembro de 1996 . Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, Presidência da República, 1996.
BRASIL. Lei n o 11.892, de 29 de dezembro de 2008 . Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. Brasília, Presidência da República, 2008a.
BRASIL. Lei n o 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, Presidência da República, 2008b.
BRASIL. Lei n o 12.711, de 29 de agosto de 2012 . Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2012.
BUFFA, Ester; ALMEIDA PINTO, Gelson. O território da Universidade Brasileira: o modelo de câmpus. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 21, n. 67, p. 809-831, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-24782016216742. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/R4n89tmfBdvTDTc9X8KWNQm/?lang=pt. Acesso em: 15 jan. 2024.
CAPPELLARI, Jaqueline Alice. (Re)existência como resistência: a literatura de Eliane Potiguara e Márcia Wayna Kambeba. 2022. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241055. Acesso em: 15 jan. 2024.
DUNCK-CINTRA, Ema Marta; BARRETOS, Euder Arrais; NAZÁRIO, Maria de Lurdes. Diversidade étnica e cultural indígena brasileira: discussões importantes no contexto da educação básica da escola não-indígena. In: DUNCK-CINTRA, Ema Marta; BARRETOS, Euder Arrais; NAZÁRIO, Maria de Lurdes (org.). Diversidade cultural indígena brasileira e reflexões no contexto da educação. Anais […] São Paulo: Espaço Acadêmico, 2016, p. 125-145.
ENGELS, Friedrich. Engels to Walther Borgius in Breslau. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Marx and Engels selected correspondence. New York: Progress Publishers, 1894.
FERREIRA, Allan Ramalho. Os limites do reconhecimento do ocupante como sujeito da política fundiária: uma reflexão sobre os corpos que não importam. In: CHIARELLO, Felipe; PIRES, Lilian R. G. M. (org.). Novos paradigmas da regularização fundiária urbana. São Paulo: Almedina, 2019, p. 99-114.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 32. ed. Campinas: Cortez, 1989.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1988, p. 69-82.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, 2022.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
MASP – Museu de Arte Moderna de São Paulo. Pintura Yube Inu Yube Shanu do Movimento dos artistas Huni Kuin, 2020, São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.masp.org.br/acervo/obra/yube-inu-yube-shanu-mito-do-surgimento-da-bebida-sagrada-nixe-pae. Acesso em: 15 jan. 2024.
MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena na escola. Caderno CEDES, Brasília, v. 19, n. 49, p. 11-17, 1999. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-32621999000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/LP3BV6QHbqSgTdPYXT9YZFG/?lang=pt#. Acesso: 20 jan. 2024.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? São Paulo: Letramento, 2017.
SANTA CATARINA. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Educação. Política da Secretaria de Estado da Educação de Educação Escolar Indígena, 2018.
SAVIANI, Dermeval. Educação socialista, pedagogia histórico-crítica e os desafios de uma sociedade de classes. In : LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval (org.). Marxismo e Educação : debates contemporâneos. Campinas: Autores Associados, 2005, p. 223-274.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. Campinas: Autores Associados, 2009.
SAVIANI, Dermeval. Democracia, educação e emancipação humana: desafios do atual momento brasileiro. Psicologia Escolar e Educacional, Campinas, v. 21, n. 3, p. 653-662, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-353920170213000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/Q7rcHqS3xNZKzV9MykSG79q/?lang=pt. Acesso em: 20 jan. 2024.
SEKI, Lucy. Línguas indígenas do Brasil no limiar do século XXI. Impulso, Rio de Janeiro, v. 27, p. 233-255, 2000.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n o 2903, 2023. Regulamenta o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as Leis no 11.460 de 21 de março de 2007, 4.132 de 10 de setembro de 1962 e 6.001 de 19 de dezembro de 1973. Brasília, 2023.
SILVA, Giovani José; COSTA, Anna Maria Ribeiro F. M da. Histórias e culturas indígenas na educação básica. São Paulo: Autêntica, 2018.
TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, 2005. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000300009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/3DkbXnqBQqyq5bV4TCL9NSH/abstract/?lang=pt. Acesso em: 03 dez. 2024.
Bruna Donato Reche
Docente dos Cursos de Licenciatura do Instituto Federal Catarinense, campus Rio do Sul, doutora em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre e Pedagoga pela Universidade Estadual de Londrina.
bruna.reche@ifc.edu.br
Thomas Luan Plandjug Nambla
Discente do Curso de Licenciatura em Pedagogia do Instituto Federal Catarinense, campus Rio do Sul.
thomasplandjug@gmail.com
|
Como citar este documento – ABNT RECHE, Bruna Donato; Nambla, Thomas Luan Plandjug. Docência e resistência: aprendendo com estudantes indígenas no contexto democrático universitário. Revista Docência do Ensino Superior, Belo Horizonte, v. 14, e052334, p. 1-20, 2024. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52334. |
1 Instituto Federal Catarinense (IFC), campus Rio do Sul, SC, Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-9107-4950. E-mail: bruna.reche@ifc.edu.br
2 Instituto Federal Catarinense (IFC), campus Rio do Sul, SC, Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0009-0005-5555-3424. E-mail: thomasplandjug@gmail.com
Recebido em: 29/04/2024 Aprovado em: 24/09/2024 Publicado em: 31/12/2024
3 Em 1º de agosto de 2023, a prefeitura de José Boiteux emitiu o Decreto no 106, em que reiterava a língua portuguesa como oficial e exclusiva das repartições públicas do município, cuja maioria da população é indígena. A pedido do Ministério Público, tal Decreto foi revogado 22 dias depois.
Rev.
Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 14, e052334, 2024