VOLUME 14

2024

ISSN: 2237-5864


Atribuição CC BY 4.0 Internacional

Acesso Livre


DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2025.52701

SEÇÃO: ARTIGOS

Estudo de casas autoconstruídas: oportunidade para a (des)construção da história da arquitetura Shape1

Estudio de casas autoconstruidas: oportunidad para la (de)construcción de la historia de la arquitectura Shape2

Self-built houses study: an opportunity to the architectural history (de)construction

Denise Fernandes Geribello 1

RESUMO

Tradicionalmente, os temas abordados pela história da arquitetura não dão conta da diversidade edilícia que constitui a cidade construída. É recente a ampliação dos esforços no sentido de dirigir olhares para as edificações não monumentais, de períodos mais recentes, não destinadas às elites; edifícios que contribuem de maneira significativa para a constituição da paisagem urbana de muitas cidades brasileiras. O estudo dessa produção é de fundamental importância para a compreensão da arquitetura do país em sua complexidade. Para além de levar a reflexões de ordem historiográfica, essa ampliação de olhares remete, também, à necessidade de alargamento dos conteúdos que permeiam o ensino de arquitetura e urbanismo. Este artigo apresenta uma experiência didática de levantamento de edificações autoconstruídas, que busca ampliar o olhar sobre arquiteturas da cidade real, desenvolvida de maio a agosto de 2022 na disciplina Teoria e Crítica da Arquitetura Contemporânea na América Latina do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia.

Palavras-chave: história da arquitetura; autoconstrução; ensino de Arquitetura e Urbanismo.

RESUMEN

Tradicionalmente, los temas abordados por la historia de la arquitectura no reflejan la diversidad edilicia que constituye la ciudad construida. Es reciente la ampliación de los esfuerzos para dirigir la atención hacia los edificios no monumentales, de períodos más recientes, no destinados a las élites, edificios que contribuyen de manera significativa a la constitución del paisaje urbano de muchas de las ciudades brasileñas. El estudio de este trabajo es de fundamental importancia para comprender la arquitectura brasileña en su complejidad. Más allá de llevar a reflexiones de orden historiográfico, esta ampliación de observaciones también remite a la necesidad de ampliar los contenidos que permean la enseñanza de arquitectura y urbanismo. Este artículo presenta una experiencia didáctica de levantamiento de edificaciones autoconstruidas, que busca ampliar la perspectiva sobre las arquitecturas de la ciudad real, desarrollada en la asignatura Teoría y Crítica de la Arquitectura Contemporánea en América Latina del curso de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad Federal de Uberlândia .

Palabras clave: historia de la arquitectura; autoconstrucción; enseñanza de Arquitectura y Urbanismo.

ABSTRACT

Traditionally, the themes addressed by the history of architecture do not account for the building diversity that constitutes the built city. Recent efforts have been made to focus on non-monumental buildings, from more recent periods, not designed for elites, buildings that compose a significant part of the urban landscape of many Brazilian cities. The study of this production is essential to understand Brazilian architecture in its complexity. In addition to leading to historiographical reflections, this expansion of perspectives is also referred to the need of expending the contents that permeate architecture and urbanism education. This article presents a didactic experience of surveying self-built buildings, which seeks to broaden the view on real city architectures, developed from May to August 2022 in the discipline Theory and Critique of Contemporary Architecture in Latin America of the Architecture and Urbanism course at the Federal University of Uberlândia .

Keywords: architectural history; self-build; education in Architecture and Urbanism.

INTRODUÇÃO

Grande parte dos edifícios que compõem uma cidade, tradicionalmente, escapam das narrativas produzidas pela história da arquitetura. É recente o movimento de ampliação do escopo da historiografia no sentido de incluir arquiteturas que são significativas para a constituição da paisagem urbana de muitas cidades brasileiras, mas que não são monumentais, antigas ou voltadas às elites. O estudo da produção arquitetônica ordinária, concebida às margens do projeto técnico do arquiteto urbanista, é de fundamental importância para a compreensão da arquitetura brasileira em sua realidade complexa e multifacetada. Tal alargamento de perspectiva, além de levar a reflexões de ordem historiográfica, aponta a necessidade de revisão e, consequentemente, de ampliação dos conteúdos que permeiam o ensino de arquitetura e urbanismo. Nesse cenário, este artigo 2 apresenta uma experiência didática que busca ampliar o olhar sobre arquiteturas da cidade real, ou seja, da cidade viva e vivida no presente, em sua temporalidade concreta, não de sua idealização no passado nem no futuro (Choay, 1965, p. 25). A atividade, integrante do Projeto de Pesquisa Invisibilidades na História da Arquitetura e da Cidade: Revelando Tipologias Obscurecidas, que recebe apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq/Brasil, foi desenvolvida na disciplina GAU050 Teoria e Crítica da Arquitetura Contemporânea na América Latina, ministrada aos alunos do 6º período do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia. Trata-se de uma ação envolvendo levantamentos de campo e reflexões a respeito de arquiteturas autoconstruídas.

Conforme Nascimento (2016), uma significativa parcela da construção habitacional, geralmente nomeada de autoconstrução, é representada por usuários que tomam decisões relativas à moradia de maneira isolada e sem a participação daqueles que detêm o conhecimento codificado. Na autoconstrução, a família “decide e constrói por conta própria a sua casa, utilizando seus próprios recursos, e em vários casos, mão-de-obra familiar, de amigos ou ainda contratada” (Nascimento, 2016, p. 19). No mesmo sentido, Maricato denomina como autoconstrução:

o processo de construção da casa (própria ou não) seja apenas pelos seus moradores, seja pelos moradores auxiliados por parentes, amigos e vizinhos, seja ainda pelos moradores auxiliados por algum profissional (pedreiro, encanador, eletricista) remunerado (1982, p. 73).

Muitos nomes, como casas domingueiras, casas de periferia, casas próprias autoconstruídas e casas de mutirão, são utilizados para as edificações construídas sob gerência direta de seu proprietário e morador. Conforme Bonduki (2017, p. 281), "este adquire ou ocupa o terreno; traça, sem apoio técnico, um esquema de construção; viabiliza a obtenção dos materiais; agencia a mão de obra, gratuita e/ou remunerada informalmente; em seguida ergue a casa".

O processo sócio tecnológico da autoconstrução, caracterizado pela constante evolução e transformação, é estimado em cerca de 70% da produção residencial nas cidades brasileiras (Brasil, 2009). Dessa forma, trata-se de uma produção arquitetônica que, ainda que possua uma presença extremamente significativa na composição das cidades e em sua paisagem urbana, não vem sendo contemplada de maneira aprofundada o suficiente pela historiografia da arquitetura.

Inicialmente, o artigo apresenta uma reflexão sobre a escrita da história da arquitetura, a necessidade de sua revisão e as possibilidades de abordagens mais plurais, que favoreçam a diversificação dos objetos de estudos e das fontes trabalhadas. São tecidas, nesse contexto, relações entre essas novas perspectivas sobre a historiografia da arquitetura e as práticas de ensino e aprendizagem no curso de Arquitetura e Urbanismo. Em seguida, o texto se volta para a descrição da atividade didática proposta e sua contextualização. São apresentados, então, os resultados obtidos a partir do trabalho realizado e, finalmente, é feito um balanço da experiência.

Construção e desconstrução da historiografia da arquitetura e o seu ensino

Ao analisar as transformações no campo da historiografia de um modo geral, é possível notar a transição entre uma produção de narrativas lineares centradas em acontecimentos e personagens, via de regra, relacionados às elites e instituições dominantes, para uma produção historiográfica mais abrangente, no que diz respeito aos temas e enfoques estudados e aos materiais que passam a ser tomados como fonte. Nesse contexto, os historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram, em 1929, a revista Les Annales. Economies, Societés, Civilizations , inicialmente chamada Annales d'histoire économique et sociale. A publicação nasceu como reação à história tradicional metódica, e dela originou-se o movimento historiográfico conhecido como a Escola dos Annales.

Ao tratar da primeira geração dos Annales, entre os anos de 1929 e 1946, Matos aponta que "o grupo em torno da revista acabou por formar uma corrente teórica, sem teorizar, centrados na prática do historiador" (2013, p. 75). Desprezavam a história historicizante ou centrada em acontecimentos ( événentielle ) e, segundo Bourdé e Martin, voltavam-se para a análise da longa duração, redirecionando o olhar histórico da política para as atividades econômicas, as organizações sociais e as psicologias coletivas, aproximando a história a outros campos das ciências humanas (1990, p. 137). A prática da história, nesse contexto, passa a ser entendida dentro do cotidiano. De forma que, "longe de encerrar-se em sua torre de marfim, o historiador deverá abrir-se ao mundo exterior, participar ativamente da vida de seu tempo" (Glénisson, 1979, p. 26).

Já em sua segunda geração (1946-1968), o movimento dos Annales passou a se debruçar sobre os estudos econômicos e demográficos. Em seguida, em sua terceira geração (1968-1989), o movimento buscou inserir os “excluídos” na história, abrindo-se, dessa forma, para as "tendências da História das religiões, de gênero, da vida privada, da sexualidade, da loucura e acabou por fragmentar-se em nome dessa nova tendência: as mentalidades" (Matos, 2013, p. 84). A quarta geração dos Annales (a partir de 1989), fase atual, é chamada de Nova História Cultural e tende a centrar-se nos estudos culturais das massas anônimas, das questões populares. Acabou voltando-se para o olhar ao indivíduo como representante de uma coletividade, por meio de sua proposta de análise micro-histórica (Matos, 2013, p. 84).

Ainda que seja possível estabelecer tal cronologia, ressalta-se que, ao longo de sua trajetória, esse movimento não contou com uniformidade de pensamento e que os historiadores que dele fizeram parte apresentaram uma pluralidade de propostas e conceitos.

Dentro de tantas e variadas tendências alguns pontos são comuns e por isso podemos entender as continuidades entre essas quatro fases, que são a preocupação com a noção de tempo em “longa duração” e a diversificação das fontes para estudo da História, com a inserção de documentos antes desacreditados como: obras de literatura, documentos pessoais, monumentos e etc... (Matos, 2013, p. 85).

Tal processo de transformação no campo da história, compreendido de modo ampliado, teve implicações na historiografia da arquitetura e da cidade. Mas, ainda que neste campo específico se observe um movimento no sentido de ampliação dos objetos de estudo e das fontes na escrita da história, abundam narrativas que se detém a arquiteturas monumentais, vinculadas às classes economicamente dominantes e relacionadas a uma história política centrada em grandes acontecimentos. Além de restringir os objetos entendidos como relevantes, essas narrativas tendem a limitar a problematização de edifícios, áreas urbanas e cidades a questões de ordem formal ou a abordagens sobre os modos de vida de apenas uma pequena parcela das pessoas que de fato constroem e se relacionam com esses espaços. Dessa forma, as marcas sociais inerentes à arquitetura são diluídas e tem-se uma perspectiva reducionista sobre o passado e, consequentemente, sobre os processos que deram origem às condições do presente. Tal fenômeno possui implicações diretas na formação dos arquitetos urbanistas e, portanto, em sua atuação profissional.

A compreensão da realidade em que se insere, levando em conta as suas complexidades, das mais diversas ordens, é um aspecto crucial no exercício da profissão para o arquiteto urbanista, uma vez que a leitura crítica dessa mesma realidade é o que permite a tomada de consciência em relação a sua inserção em processos mais amplos de produção da arquitetura e da cidade e, portanto, com relação aos possíveis impactos de suas ações. É fundamental reforçar que o arquiteto urbanista, assim como todo indivíduo, é um agente histórico, isso é, ainda que seja condicionado por fatores diversos, não é por eles determinado. Nesse sentido, Freire coloca a importância de "reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável" (2005, p. 19). O autor afirma que a presença dele mesmo no mundo não é a de quem se adapta a ele, mas a de quem nele se insere, "é a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história" (Freire, 2005, p. 54).

No campo do ensino e aprendizagem da arquitetura e do urbanismo, a necessidade de o profissional se inserir de fato na realidade em que atua e projetar futuros possíveis sem naturalizar o status quo dialoga, inclusive, com as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, instituídas pela Resolução CNE/CES nº 2, de 17 de junho de 2010. Conforme o primeiro parágrafo do artigo terceiro do documento,

A proposta pedagógica para os cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo deverá assegurar a formação de profissionais generalistas, capazes de compreender e traduzir as necessidades de indivíduos, grupos sociais e comunidade, com relação à concepção, à organização e à construção do espaço interior e exterior, abrangendo o urbanismo, a edificação, o paisagismo, bem como a conservação e a valorização do patrimônio construído, a proteção do equilíbrio do ambiente natural e a utilização racional dos recursos disponíveis (Brasil, 2010).

Compreender e traduzir as necessidades de indivíduos, grupos sociais e comunidades em relação ao projeto e à construção de seus espaços demanda uma análise aprofundada dos processos históricos nos quais essas pessoas se inserem. Demanda a compreensão de suas formas de morar, trabalhar, festejar, produzir cidade, sua relação com a terra, entre diversos outros aspectos, abordadas de uma perspectiva não só espacial, mas também temporal. Demanda, ainda, a compreensão de que, mesmo que venha perdurando por muito tempo, a situação analisada é passível de transformação, no sentido de buscar atender com mais qualidade as necessidades que hoje são mal ou não atendidas. O trecho da resolução menciona, também, a preservação do patrimônio cultural, campo de atuação do arquiteto urbanista, no qual a relação com a história é imprescindível, uma vez que lida, justamente, com o tensionamento entre as permanências e transformações na arquitetura, na cidade e nos modos de viver ao longo do tempo em função de valores culturais atribuídos a bens de diversas naturezas.

Nesse mesmo sentido, Waisman (2013, p. XV) aponta que a reflexão histórica pode ser considerada um dos meios mais completos para se conhecer a própria realidade e, consequentemente, para se projetar um futuro próprio, que seja livre de limitações impostas por modelos alheios. Modelos esses que tomam as correntes tipológicas europeias como universais e desconsideram as especificidades de nosso contexto latino-americano. Uma história da arquitetura e da cidade centrada na produção monumental, tomada de uma perspectiva elitista e oficial, não dá conta de responder a esse importante papel de compreensão profunda das realidades em que o profissional atua, considerando suas complexidades. É necessária, nesse contexto, uma produção histórica que seja capaz de incluir a arquitetura e a cidade produzidas e apropriadas pelas massas, ou seja, uma história que olhe para o espaço em sua dimensão popular cotidiana. Perspectiva que se aproxima de questões problematizadas pela, já mencionada, Nova História Cultural, dos Annales.

Há que se ressaltar, nesse contexto, que a história não está dada de antemão, não é uma narrativa naturalmente pronta do que aconteceu. A história é construída, é uma leitura da realidade histórica feita pelo historiador, isso implica que

A história nunca é definitiva, reescreve-se continuamente a partir de cada presente, cada circunstância cultural, a partir das convicções de cada historiador. Saber desentranhar as motivações, as intenções, as ideologias que, em cada caso, presidem uma obra historiográfica, é o primeiro passo imprescindível para o conhecimento (Waisman, 2013, p. XV).

O contato com narrativas históricas mais diversificadas e amplas, que deem conta de aspectos relevantes para compreensão da realidade, é fundamental na formação do arquiteto urbanista, porém acredita-se que isso não seja suficiente. Para amplificar o caráter crítico do processo de ensino e aprendizagem de arquitetura e urbanismo, é importante que o estudo da história, tanto na graduação como na pós-graduação, seja permeado por discussões sobre a própria construção da história da arquitetura e da cidade. É possível enriquecer as reflexões no processo formativo do aluno ao não restringir os conteúdos das disciplinas relacionadas à História e Teoria da Arquitetura e da Cidade ao estudo de problemas históricos, definidos por Waisman (2013, p. 5) como aqueles de ordem técnica, resolvidos por meio da pesquisa. São problemas históricos aqueles referentes à existência do fato histórico, como, por exemplo, veracidade, datação, autoria, entre outros.

A compreensão da realidade e das histórias sobre ela escritas pode ser ampliada significativamente ao se trazer para a sala de aula reflexões sobre problemas de ordem historiográfica. Conforme Waisman,

Os problemas historiográficos, pelo contrário, estão comprometidos diretamente com a ideologia do historiador, pois realizam o recorte de seu objeto de estudo e de seus instrumentos críticos, para a definição da estrutura do texto historiográfico; tudo aquilo, enfim, que o levará à interpretação do significado dos fatos e, por fim, à formulação de sua própria versão do tema escolhido (2013, p. 5).

Nesse sentido, pensar sobre os processos de escrita da história pode levar à problematização dos objetos de estudo que vêm sendo abordados ao longo do tempo. Refletir sobre as motivações que levaram determinadas produções arquitetônicas a integrarem as narrativas, bem como nas razões que estão por trás do apagamento de algumas edificações na escrita da história, pode contribuir de maneira significativa para o aprofundamento da compreensão de nossa realidade. Kapp (2008, p. 223) denomina "outra produção arquitetônica" a produção arquitetônica que está "à margem das instituições jurídicas, técnicas e econômicas da nossa sociedade, embora, paradoxalmente, também lhe seja imprescindível". A autora define "produção arquitetônica" como os espaços modificados pelo trabalho humano, sejam eles projetados ou não, tenham eles características extraordinárias ou não, o que contraria muitos teóricos da arquitetura, que atribuem o termo apenas a construções especiais (Kapp, 2008, p. 224).

Se insere nessa discussão o desprezo histórico que a academia tem pela arquitetura popular. Tal desprezo implica tanto na falta de informações sobre essa arquitetura, quanto no baixo aproveitamento desse conjunto de saberes e técnicas, que muitas vezes apresentam possibilidades acessíveis de construção no projeto arquitetônico contemporâneo (Sant’Anna, 2022, p. 2).

No mesmo sentido, ao tratar do estudo das favelas do Rio de Janeiro, Jacques (2011, p. 18) afirma que “até pouco tempo, a singularidade, ou melhor, a alteridade desses espaços ditos ‘informais’ ou ‘selvagens’ não era considerada pela maioria de arquitetos e urbanistas, nem mesmo pelas faculdades de Arquitetura e Urbanismo”. A autora traz, ainda, que apesar de serem muito diferentes entre si, as favelas possuem uma identidade espacial própria e fazem parte da cidade e de sua paisagem urbana e conclui que “para investir nesse universo espaço-temporal, completamente diferente da cidade dita formal, é imprescindível compreender um pouco melhor essas diferenças” (Jacques, 2011, p. 18).

A inserção da produção arquitetônica popular/vernacular das favelas, da arquitetura construída por não arquitetos, na história da arquitetura é, portanto, de fundamental importância para a compreensão das cidades brasileiras e de seus processos de formação. Conforme aponta Sant’Anna (2022, p. 2), “num país em que a maior parte da arquitetura das grandes e médias cidades é resultado de autoconstrução, ignorar esse universo é, no mínimo, um sinal de alienação”.

Nesse contexto, acredita-se que oportunizar ao aluno de Arquitetura e Urbanismo o contato com uma história da cidade que incorpore a arquitetura popular e, indo além, oportunizar atividades relacionadas à escrita dessa história, refletindo sobre possíveis abordagens e fontes, contribua para uma formação em arquitetura e urbanismo mais ancorada na realidade de nossas cidades, tomada de maneira crítica. Tal proposta vai ao encontro das competências e habilidades mínimas indicadas no artigo 5º das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, instituídas pela Resolução CNE/CES nº 2, de 17 de junho de 2010. Dentre elas estão "V. os conhecimentos de teoria e de história da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo, considerando sua produção no contexto social, cultural, político e econômico e tendo como objetivo a reflexão crítica e a pesquisa".

Relato de experiência

Proposta de um olhar para a autoconstrução

Buscando evidenciar, no ambiente do ensino de graduação em Arquitetura e Urbanismo, a lacuna constituída a partir do silenciamento em torno das arquiteturas de não arquitetos na história da arquitetura e da cidade, e problematizar as questões envolvidas na escrita dessa história, foi proposta uma atividade de levantamento e reflexão sobre casas autoconstruídas, tema que vem sendo trabalhado em experiências de ensino e extensão em contextos variados e com ênfases diversas. 3 A atividade consistiu em um levantamento e análise de edificações residenciais autoconstruídas como parte do programa da disciplina Teoria e Crítica da Arquitetura Contemporânea na América Latina (GAU050) ministrada para os alunos do sexto período do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia. A disciplina foi ministrada no período de 4 de maio a 17 de agosto de 2022, período correspondente ao segundo semestre do calendário acadêmico de 2021, para uma turma composta por 39 alunos. A disparidade entre o calendário acadêmico e o calendário civil se deve aos períodos de paralização das aulas em função da pandemia do coronavírus.

A atividade se inseriu no módulo do conteúdo programático da disciplina relacionado à questão habitacional na América Latina, no qual foram estudados temas como uma breve trajetória das políticas habitacionais na América Latina, sua relação com órgãos multilaterais panamericanos e com os Congressos Panamericanos de Arquitetos, iniciativas do Centro Interamericano de Vivienda y Planeamento (CINVA), além da análise de projetos arquitetônicos de conjuntos habitacionais e de iniciativas de projetos habitacionais construídos por meio de mutirões e ajuda mútua.

O exercício proposto, que foi elaborado em grupos de 4 ou 5 alunos, constituiu na realização do levantamento de uma casa autoconstruída selecionada por cada grupo contendo croquis de plantas e cortes da edificação (Figura 1), indicação dos principais materiais construtivos utilizados (Figura 2), fotografias (Figura 3) e informações sobre a história de construção da casa (Figura 4). A história de sua construção deveria abranger desde a seleção do lote até as etapas construtivas e suas relações com o contexto, tanto entendido de um modo geral como a trajetória de vida específica de seus habitantes.

Figura 1 — Croqui da residência em Centralina, MG

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Figura 2 — Identificação de materiais construtivos utilizados na residência em Jaboticabal, SP

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Figura 3 — Fotografia da residência em Mococa, SP

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Figura 4 — Dados da construção da residência em Onda Verde, SP

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Cada um dos grupos apresentou para toda a sala o material produzido, abordando tanto aspectos relativos ao edifício em sua materialidade quanto questões relacionadas aos processos de construção entendidos como prática social, aos vínculos dos moradores com a casa, bem como as suas próprias percepções sobre o objeto de estudo. Ainda que tenham sido indicados alguns elementos básicos para serem levantados, os alunos deveriam aprofundar as análises em relação aos aspectos que mais lhes chamassem atenção ao longo da elaboração do trabalho (Figura 5).

Figura 5 — Algumas das análises da residência em Onda Verde, SP

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Foram apresentados, ao todo, oito trabalhos. Dentre eles, cinco estudaram casas pertencentes a membros da família de algum dos integrantes do grupo. Dois grupos analisaram casas de conhecidos de familiares de algum integrante do grupo e um grupo analisou a residência da família de uma colega, também estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, mas que não estava cursando a disciplina naquele semestre.

As edificações analisadas estão localizadas em diferentes municípios, abrangendo os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Com relação à inserção na cidade, parte das residências analisadas se localiza em áreas rurais e parte dentro do perímetro urbano. Além da diversidade no que diz respeito à localização, as casas estudadas variam em relação à quantidade de cômodos, dimensão e características dos acabamentos. Já os materiais e sistemas construtivos apresentam maior homogeneidade. O Quadro 1 sintetiza as principais características das casas levantadas.



Quadro 1 — Localização das residências estudadas

Grupo

Cidade

UF

Inserção na cidade

Programa

Características

1

Visconde de Mauá, Rezende

RJ

Urbana

Varanda, sala, cozinha, área de serviço, 1 banheiro, 2 dormitórios

Parte de estrutura e vedação de madeira, parte de alvenaria de blocos; cobertura com estrutura de madeira e telhas cerâmicas e de fibrocimento.

2

Mococa

SP

Urbana

Varanda/lavanderia, sala de estar/jantar, cozinha, 2 banheiros, 2 dormitórios

Alvenaria de blocos; cobertura com estrutura de madeira e telhas cerâmicas e de fibrocimento.

3

Centralina

MG

Urbana

Sala, cozinha, despensa, área de serviço, 2 banheiros, 4 dormitórios

Alvenaria de blocos; cobertura com estrutura de madeira e telhas de fibrocimento.

4

Uberaba

MG

Rural

Sala de estar/jantar, cozinha, área de serviço, 1 banheiro, 3 dormitórios

Alvenaria de blocos na residência e anexo com estrutura de madeira com fechamento de folha de metal corrugado; cobertura com estrutura de madeira e telhas de fibrocimento.

5

Jaboticabal

SP

Rural

Varanda, área de churrasco, sala, cozinha, área de serviço, 1 banheiro, 3 dormitórios

Alvenaria de tijolos de barro; cobertura com estrutura de madeira e telhas de fibrocimento.

6

Uberlândia

MG

Urbana

Sala, copa, cozinha, área de serviço, 2 banheiros, 4 dormitórios

Alvenaria de blocos; cobertura com estrutura de madeira e telhas cerâmicas.

7

Frei Inocêncio

MG

Urbana

Copa, cozinha, 1 banheiro, 1 dormitório

Alvenaria de blocos; cobertura com estrutura de madeira e telhas de fibrocimento.

8

Onda Verde

SP

Urbana

Varanda, despensa, sala, cozinha, 1 banheiro e 2 dormitórios

Alvenaria de blocos; cobertura com estrutura de madeira e telhas cerâmicas.

Fonte: Geribello (2022).

A dinâmica de apresentação dos trabalhos constituiu na exposição de cada um dos levantamentos em sala de aula, realizados com o apoio de materiais (fotos, desenhos e pequenos textos) exibidos no projetor. Ao longo de suas falas, os estudantes foram notando semelhanças e divergências entre seu trabalho e os dos demais colegas, de forma que algumas das apresentações, principalmente as últimas a serem realizadas, já continham reflexões incorporando elementos trazidos nos trabalhos anteriores. Na aula da semana seguinte à data da apresentação foi feita uma avaliação mais ampla sobre a experiência de realização do trabalho, juntamente com uma aula expositiva dialogada em que se abordou, entre outras questões, as reflexões sobre arquitetura popular tecidas por John Francis Charlewood Turner (1963, 1976), arquiteto inglês que, conforme Ballent (2004, p. 90), se voltou ao estudo das barriadas, ou seja, bairros com construções precárias e informais, da cidade de Lima, Peru, entre 1957 e 1963. Na mesma ocasião, foi analisado um importante marco no debate sobre habitação popular latino-americana, o Proyecto Experimental de Vivienda (PREVI), realizado na cidade de Lima, Peru, na década de 1960. O projeto, estruturado a partir de um concurso internacional, pretendia construir moradias de baixo custo para 2000 famílias (Tugas; Torriti; García-Huidobro , 2010), respeitando a identidade e a cultura locais. Os limites e avanços das propostas de Turner e do PREVI foram debatidos em aula, em diálogo com os levantamentos realizados pelos alunos no trabalho sobre autoconstrução.

Análises tecidas pelos estudantes

O primeiro aspecto que chamou a atenção nos trabalhos foi a marcante presença de análises realizadas em edificações pertencentes a membros da família dos estudantes. Olhar como arquitetos urbanistas em formação para construções que fazem ou fizeram parte de sua própria história e cotidiano aparentemente trouxe algo significativo para alguns dos alunos e pode ter instigado outros estudantes a também mencionarem aspectos de outras casas autoconstruídas que permeiam ou permearam sua vivência cotidiana. Esse movimento de ampliar o olhar analítico para além das grandes obras presentes nos manuais consagrados de história da arquitetura oportuniza o enriquecimento do repertório do aluno, que passa a refletir sobre os aprendizados que podem ser extraídos da cidade cotidiana que os envolve. Aprendizados esses que não se restringem à materialidade, mas que também podem estar relacionados aos saberes dos quais os moradores-construtores são detentores. Nesse sentido, a experiência permite que os resgates dos mundos populares propostos por autores como o já citado John Turner (1963) e Robert Charles Venturi e Denise Scott-Brown (2003), que são estudados ao longo da graduação, ganhem significados mais palpáveis.

Outra questão que perpassa a relação familiar com o objeto de estudo é a reafirmação identitária e a percepção de inserção do indivíduo na história. Para grande parte dos alunos e dos professores, o repertório apresentado em livros e revistas de arquitetura é muito distante de sua experiência cotidiana na cidade, tanto em termos geográficos, como socioculturais. Se reconhecer — a si mesmo e a sua família — como parte integrante da história da arquitetura é fundamental para que o arquiteto aprimore a capacidade de pensar historicamente, relacionando-se de maneira estrutural com o que se passou antes de sua própria existência e com o que se passará depois dela, ou seja, reconhecendo a si mesmo como um agente na história.

Do ponto de vista simbólico, a relação afetiva e identitária que alguns moradores possuem com suas casas também ficou muito evidente nas apresentações. Em diversos casos, a história do edifício foi contada entrelaçada com acontecimentos familiares, características e gostos dos moradores, modificações na composição familiar, entre outros. Em alguns dos trabalhos, inclusive, foram apresentadas fotografias antigas de pessoas da família na casa para mostrar suas transformações ao longo do tempo (Figura 6).

Figura 6 — Fotografias de familiares nas residências de Centralina, MG e Mococa, SP

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Em uma das apresentações, chamou a atenção a existência de um conjunto de fotografias tiradas por um dos responsáveis pela construção da casa, documentando passo a passo o processo de construção, que foi divulgado por ele mesmo em redes sociais (Figura 7). Essa abordagem sensibiliza os alunos em relação à compreensão da arquitetura como prática social, composta por dimensões que vão muito além de sua materialidade.

Figura 7 — Fotografias documentando o processo de construção da residência em Uberaba, MG

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Os processos de planejamento das edificações também foi algo pontuado por alguns alunos e refletido pela turma. A utilização de desenhos, riscos no chão do próprio terreno e comparação com casas existentes foram alguns dos processos mencionados (Figura 8). A adequação ou não da configuração espacial da casa frente aos usos que os moradores fazem dos espaços, levando em conta o dimensionamento e o conforto ambiental, também foi abordada em praticamente todas as apresentações. Nesse aspecto, a reflexão sobre o papel do técnico no projeto da casa se colocou de maneira mais evidente, uma vez que muitas das casas analisadas apresentavam baixo desempenho com relação ao conforto ambiental.

Figura 8 — Depoimentos sobre a construção das casas em Uberaba, MG e Centralina, MG

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021).

Ainda em relação à configuração espacial dos edifícios, notou-se, tanto nos casos apresentados como em outros casos que foram lembrados e narrados pelos alunos ao longo das apresentações, a repetição de uma lógica de composição em diversas casas. Trata-se de uma planta de forma aproximadamente quadrada, na qual os cômodos são organizados em duas faixas retangulares, uma contendo a sala e a cozinha e a outra dois dormitórios entre os quais se localiza o banheiro, como demonstram as Figuras 9 e 10. Em alguns dos casos, essa composição constitui a célula inicial, que sofreu ampliações ao longo do tempo.

Figura 9 — Planta de uma das casas apresentadas

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021) com trecho destacado pela autora.

Figura 10 — Planta de uma das casas apresentadas

Fonte: Material desenvolvido por alunos da disciplina GAU050, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, 2022 (referente ao 2º semestre do calendário acadêmico de 2021) com trecho destacado pela autora.

Em um dos trabalhos apresentados, foram trazidas para a reflexão noções que permeiam dois textos importantes, a saber, a tese de doutoramento do historiador Francisco de Andrade (2016), intitulada Uma poética da técnica: a produção da arquitetura vernacular no Brasil e o livro Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade , do antropólogo Nestor Canclini (2003).

O afastamento de abordagens mais territoriais e formalistas, cedendo espaço para uma busca centrada em um determinado modo de proceder na utilização de recursos materiais está presente em Andrade (2016, p. 29). Enquanto o historiador inglês Paul Hereford Oliver (2006, p. 30) prioriza em suas análises aspectos simbólicos presentes na construção e organização da arquitetura vernacular e aponta que ela está diretamente relacionada ao contexto ambiental em que se insere e aos recursos disponíveis no local, Andrade coloca que,

Mais do que delimitações territoriais ou formais muito presentes no conceito de “vernacular” de Oliver, buscar-se-á aqui uma cultura construtiva que, a partir de uma base de significantes comuns, era capaz de aproximar e proceder semelhantemente para com materiais distintos ou localmente restritos. Ou seja, como qualquer outra linguagem, era também capaz de traduzir diferenças de fundo ambiental e material. Assim, mais do que um mapeamento externo das arquiteturas vernaculares, o objeto aqui é a constituição interna de uma linguagem vernacular (2016, p. 29).

Dessa forma, foram ponderadas no debate as limitações de análises formalistas da arquitetura e a reflexão foi direcionada para a importância da revisão crítica das abordagens teóricas desenvolvidas a partir de outros contextos socioculturais, apontando a necessidade de instrumentos próprios para análise da realidade local. Instrumentos que dialogam com os aportes teóricos existentes, sem os replicar de forma automática.

Outra referência trazida pelo grupo para o debate foi o conceito de “hibridismo cultural” formulado por Canclini (2003), que se refere a processos complexos e heterogêneos em que aspectos de ordem cultural, social e política de culturas distintas — tanto populares como eruditas — se mesclam, gerando novas configurações culturais. No debate, o tema suscitou uma reflexão sobre como tal heterogeneidade cultural da sociedade contemporânea transparece nas construções populares. Sobre como se resulta na materialidade edificada a fusão entre modos de viver e construir tradicionais e modernos/industriais. A discussão abrangeu as diferenças entre as lógicas presentes na arquitetura projetada por profissionais da construção civil e nas arquiteturas vernaculares/populares e os saberes subjacentes a essas lógicas, avaliando a presença do arquiteto no cenário atual e seus possíveis papéis.

Em dois momentos foram realizadas autoavaliações acerca da atividade. Na parte final da aula em que os trabalhos foram apresentados, foi aberto um espaço para que os alunos colocassem sua percepção sobre a relevância e pertinência da atividade, assim como as dificuldades relacionadas a sua realização. Para dois grupos, a maior dificuldade foi encontrar uma casa autoconstruída para ser analisada. Alguns grupos mencionaram a dificuldade na obtenção de informações para a produção do trabalho, uma vez que estavam fisicamente longe da casa estudada. Nesses casos, levantamentos métricos e fotográficos foram realizados com auxílio de parentes e moradores da residência analisada. Muitos dos alunos mencionaram que a experiência de estudar casas que fazem parte de seu contexto trouxe um olhar ampliado sobre o que é arquitetura e quais as funções do arquiteto. Tal discussão foi retomada na aula de encerramento do semestre, na qual a pesquisa sobre autoconstrução foi pensada no conjunto das atividades do curso. Nesse momento, foi reforçada a contribuição que o estudo da realidade próxima representa para o melhor desenvolvimento das atividades acadêmicas, tanto no campo teórico quanto nas disciplinas práticas, sobretudo as que envolvem projeto arquitetônico. Durante a apresentação dos trabalhos e nas ocasiões de autoavaliação, foi possível notar, por meio da fala dos alunos, que a atividade foi muito significativa para os estudantes que trataram de residências de suas famílias. A possibilidade de compartilhar sua história no contexto da sala de aula foi vista como algo muito positivo por esses alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atividade relatada neste artigo constitui uma primeira experiência de problematização sobre a escrita da história da arquitetura, e uma tentativa de aproximação dos alunos com novos objetos de estudo, a saber a autoconstrução, na disciplina GAU050 — Teoria e Crítica da Arquitetura Contemporânea na América-Latina, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia. Ainda que haja diversos pontos a serem aprimorados e aprofundados na realização da atividade em semestres futuros, a experiência se mostrou positiva, uma vez que promoveu a aproximação entre reflexões teóricas desenvolvidas ao longo do curso em sala de aula e a arquitetura existente na cidade real em que estamos inseridos. O exercício buscou instigar um novo olhar dos alunos para contextos familiares e apresentar a possibilidade de transformar uma "curiosidade ingênua", usando termos de Freire (2005, p. 39), em "curiosidade epistemológica", levando à compreensão de que é possível e necessário desenvolver uma leitura acadêmica, amparada metodologicamente, do cenário cotidiano em que vivemos.

A atividade oportunizou o debate em torno das fontes necessárias para a escrita dessa história da arquitetura mais inclusiva. Não há, nesse caso, como em grande parte das obras estudadas ao longo da graduação, desenhos de projetos arquitetônicos, informações precisas sobre os sistemas construtivos e memoriais descritivos. A própria materialidade constitui aqui uma fonte privilegiada, mas que não fala por si só. É preciso que ela seja lida com atenção e classificada a partir de categorias desenvolvidas levando em conta as peculiaridades de seu contexto. Suas tipologias, soluções construtivas e ornamentos não estão todos dados nos manuais de arquitetura. Cabe a nós a construção, coletiva e em constante desenvolvimento, das bases para uma historiografia da arquitetura e da cidade que dê conta de se aproximar mais da complexidade de nossa realidade.

Além da atenção ao construído, a atividade também revelou a importância dos sujeitos para a compreensão da arquitetura e da cidade. Não é possível compreender uma obra, em sua complexidade, sem considerar as questões culturais, sociais e políticas associadas a sua produção. Nesse sentido, os relatos constituíram fontes privilegiadas. Ainda que, nas reflexões realizadas em sala de aula, o campo da história oral e suas particularidades metodológicas tenham sido abordados muito brevemente, os alunos tomaram conhecimento deste campo e de algumas de suas potencialidades e desafios, podendo aprofundar-se no tema em oportunidades futuras, conforme seus interesses profissionais e de pesquisa.

Em muitos casos, os alunos desconheciam os saberes construtivos de familiares próximos. Nesse cenário, a atividade foi uma oportunidade frutífera de diálogo, na qual houve, por parte de alunos, o aprendizado de saberes empíricos e, por parte de familiares, uma compreensão mais ampla do que é — e do que pode ser — o campo de atuação do arquiteto urbanista.

Além das implicações na formação dos estudantes no campo teórico, espera-se que a experiência tenha rebatimentos em sua atividade projetual, promovendo o diálogo com saberes construtivos que estão à margem da academia, repensando a relação do arquiteto com os habitantes de seus projetos e considerando a arquitetura em suas dimensões que vão além da materialidade.

AGRADECIMENTOS

O artigo decorre da pesquisa Invisibilidades na História da Arquitetura e da Cidade: Revelando Tipologias Obscurecidas, que recebe apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq/Brasil (Chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021, Processo 409445/2021-5).

REFERÊNCIAS

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Denise Fernandes Geribello

Professora adjunta dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia. Possui doutorado e pós-doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas e graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

denise.geribello@ufu.br



Como citar este documento – ABNT

GERIBELLO, Denise Fernandes. Estudo de casas autoconstruídas: oportunidade para a (des)construção da história da arquitetura. Revista Docência do Ensino Superior , Belo Horizonte, v. 15, e052701, p. 1-22, 2025. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2025.52701 .




1 Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil.

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4588-4543. E-mail: denise.geribello@ufu.br


Recebido em: 17/06/2024 Aprovado em: 08/04/2025 Publicado em: 23/06/2025

2 Versão reduzida do texto foi publicada nos anais do XL Encontro e XXV Congresso de Escolas e Faculdades Públicas de Arquitetura da América do Sul. Disponível em: https://www.sisgeenco.com.br/anais/arquisur/2022/trabalhos.html. Acesso em: 25 mar. 2025.

3 São exemplos de grupos de pesquisa que vêm desenvolvendo experiências de extensão e/ou ensino abrangendo o tema da autoconstrução: Morar de Outras Maneiras da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA-UFMG); Arquitetura Popular: Espaços e Saberes da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA); Habitação e Sustentabilidade – HABIS do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU/USP) e Arquitetura pública: Construção de Metodologia de Projeto e de Parâmetros de Habitabilidade do Escritório Público de Arquitetura e Engenharia da Universidade Salvador (EPAE/UNIFACS).

Rev. Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 15, e052701, 2025 8