VOLUME 14

2024

ISSN: 2237-5864


Atribuição CC BY 4.0 Internacional

Acesso Livre


DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52837

SEÇÃO: DEMOCRACIA E ENSINO NA UNIVERSIDADE: 60 ANOS APÓS O GOLPE DE 1964

Paulo Freire e a Operação Limpeza: repressão e resistência ao golpe de 1964 na Universidade do RecifeShape1

Paulo Freire y la Operación Limpieza: represión y resistencia al golpe de 1964 en la Universidad de RecifeShape2

Paulo Freire and Operation Cleaning: repression and resistance to the 1964 coup at the University of Recife

Dimas Brasileiro Veras1

RESUMO

Este artigo analisa a repressão e a resistência ao golpe de 1964 nas universidades brasileiras. Para entender esse primeiro ciclo repressivo, denominado "Operação Limpeza", estudou-se o caso da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, com foco na investigação de Paulo Freire e seus colaboradores do método Paulo Freire de alfabetização, desenvolvido no Serviço de Extensão Cultural em parceria com o Movimento de Cultura Popular (1960-1964). A metodologia deste trabalho dialoga com as contribuições da história da educação numa perspectiva sociocultural e política, utilizando principalmente técnicas da biografia histórica, em uma abordagem que chamamos de rizohistória. O corpus documental abrange fontes hemerográficas, institucionais e os relatórios das comissões nacional e regional da verdade. Os resultados revelam que o professor Paulo Freire e seus colaboradores foram os principais alvos das violações dos direitos humanos no meio educacional e universitário do estado de Pernambuco, em 1964, evidenciando também as dinâmicas de resistência articuladas pelos professores universitários nas tramas processuais da nascente ditadura militar.

Palavras-chave: golpe de 1964; repressão; resistência; universidade; professor Paulo Freire.

RESUMEN

Este artículo analiza la represión y la resistencia al golpe de 1964 en las universidades brasileñas. Para comprender este primer ciclo represivo, denominado "Operación Limpieza", se analizó el caso de la Universidad de Recife, actualmente Universidad Federal de Pernambuco, centrándose en la investigación de Paulo Freire y sus colaboradores sobre el método de alfabetización Paulo Freire, desarrollado en el Servicio de Extensión Cultural en colaboración con el Movimiento de Cultura Popular (1960-1964). La metodología de este trabajo dialoga con los aportes de la historia de la educación desde una perspectiva sociocultural y política, utilizando principalmente técnicas de la biografía histórica, en un enfoque que llamamos rizohistoria. El corpus documental abarca fuentes hemerográficas e institucionales e informes de comisiones de la verdad nacionales y regionales. Los resultados revelan que el profesor Paulo Freire y sus colaboradores fueron los principales objetivos de violaciones de derechos humanos en el ambiente educativo y universitario en el estado de Pernambuco en 1964, destacando también las dinámicas de resistencia articuladas por profesores universitarios en las tramas procesales de la naciente dictadura militar.

Palabras clave: golpe de 1964; represión; resistencia; universidad; el profesor Paulo Freire.

ABSTRACT

This paper analyzes repression and resistance to the 1964 coup in Brazilian universities. To understand this first repressive cycle, called "Operation Cleaning", the case of the University of Recife, currently the Federal University of Pernambuco, was examined, focusing on the investigation of Paulo Freire and his collaborators of the Paulo Freire method of literacy, developed at the Service of Cultural Extension in partnership with the Popular Culture Movement (1960-1964). The methodology of this work dialogues with the contributions of the history of education from a sociocultural and political perspective, using mainly techniques from historical biography, in an approach that we call rhizohistory. The documentary corpus covers hemerographic and institutional sources and reports from national and regional truth commissions. The results reveal that professor Paulo Freire and his collaborators were the main targets of human rights violations in the educational and university environment in the state of Pernambuco in 1964, also highlighting the dynamics of resistance articulated by university professors in the procedural plots of the nascent military dictatorship.

Keywords: 1964 coup; repression; resistance; university; professor Paulo Freire.

INTRODUÇÃO

Há 60 anos, um golpe de Estado depôs o presidente brasileiro João Goulart (1961-1964), pouco a pouco substituindo a ordem constitucional democrática de 1946 (1946-1964) pela do Regime Militar (1964-1985) (Dreifuss, 1981; Ferreira; Gomes, 2014). Na agenda anticomunista e anticorrupção dos golpistas, os universitários ocuparam, ao lado de políticos progressistas, sindicalistas e minorias socioculturais (LGBTQPI+, indígenas, negros, mulheres etc.), o lugar de inimigos internos de uma suposta guerra revolucionária que compunha o tabuleiro da Guerra Fria2 (1945-1991) (Motta, 2014).

A repressão ao professor Paulo Freire e ao seu "método" ou “sistema” de alfabetização, desenvolvido no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco) é um caso exemplar de como a docência superior crítica foi alvo de censura. A violência contra essa práxis pedagógica, posteriormente nacionalizada pelo Programa Nacional de Alfabetização (Decreto nº 53.465, de 21 de janeiro de 1964), revela a dinâmica do "terrorismo cultural" presente no expurgo político e moral da época.

Rivais desde os tempos do Império (1822-1889), o Exército Brasileiro presenciara o magistério superior e as universidades se multiplicarem por todo o Brasil e mundo após a Segunda Guerra Mundial3. Para além desse antagonismo entre oficiais e bacharéis, o golpe de 1964 consolidou uma aliança de classe entre o capital multinacional e associado e militares contra o campo progressista e popular do Brasil (Dreifuss, 1981). As forças vitoriosas tinham, na crescente sensibilidade social da universidade e seu nascente diálogo com os movimentos sociais de cultura popular e de reformas de base, sobretudo de reforma universitária, um slogan ideal para disseminar o pânico moral nos moldes da Doutrina Truman e do Macarthismo4 (Hobsbawm, 1995): “doutrinação marxista”, “objetivos comunizantes”, “espionagem vermelha internacional”, “sistema de doutrinação marxista”, “perigo para as instituições”, “subversivo”, “método nazista”, “bolchevique”, “filocomunista”, “criptocomunista”, “doutrinador”, “stalinista”, “esquerdistas”, “cartilha subversiva”, enfim um “cripto comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador” (Veras, 2021; Veras, 2023).

Este trabalho analisa os processos repressivos iniciados nas universidades pelo golpe de 1964, conhecidos como Operação Limpeza. Em vista disso, examinou-se o caso da Universidade do Recife (UR), atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com foco na investigação de Paulo Freire e seus colaboradores do método Paulo Freire de alfabetização, desenvolvido no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da UR, em parceria com o Movimento de Cultura Popular (MCP) (1960-1964) (Veras, 2012; 2018; 2024).

O presente documento é um aprofundamento de um capítulo da tese de doutorado “Palácios cariados: a elite universitária e a ditadura militar – o caso da Universidade Federal de Pernambuco (1964-1975)” (Veras, 2018). No trabalho, investiga-se a ação de uma elite de dirigentes universitários que buscou configurar o sistema universitário brasileiro como um platô de apoio, interesse, mobilização e formulação simbólica urdida entre a sociedade e o regime militar. A proposta dialoga com as contribuições da história da educação sociocultural e política, sobretudo em técnicas da biografia histórica, o que se chamou de rizohistória (Dosse, 2009; Charle, 1994; Chartier, 2002; Deleuze; Guatarri, 2004; Bourdieu, 2013; Veras, 2018). O corpus documental abrange fontes primárias hemerográfica, institucionais e os relatórios da Comissão Nacional e Regionais da Verdade (Comissão Nacional da Verdade, 2013; Brasil, 2014a; Brasil, 2014b; Brasil, 2014c; Pernambuco, 2018a; Pernambuco, 2017b).

Sobre o método de pesquisa

Por rizohistória pretendeu-se uma abordagem interdisciplinar, oferecendo uma leitura a contrapelo (Benjamin, 1994) do que a história sociocultural chamou de práticas, representações e apropriações, isto é, as diferentes práticas e signos de produção social de sentido ao longo do tempo. Tal percurso teórico não poderia ignorar os estudos prosopográficos (Stone, 2011), ou seja, as biografias de grupos universitários produzidas por historiadores como Christophe Charle (1994) e pelo sociólogo Pierre Bourdieu (2013), além dos conceitos de "campo" deste último (Bourdieu, 2007). O campo, aqui, emerge como o ambiente social e institucional universitário, onde os sujeitos desenham suas trajetórias sociais, revelando ao pesquisador as dinâmicas de reprodução do desejo e do poder acadêmico.

Para tanto, a rizohistória enfoca a luta pela hegemonia da produção de desejo e de poder simbólico, desse modo analisando como os sujeitos históricos se mobilizam, material e simbolicamente, pela legitimidade de se fazer representar e se reproduzir socialmente. No contexto da ditadura militar, os conceitos trípticos de resistência, acomodação e adesão, propostos pelo historiador Rodrigo Motta (2014), ofereceram uma importante contribuição metodológica para pensar a produção da semiologia e do corpo universitário conectado com o campo do poder político e econômico.

Essa perspectiva tridimensional aparece em Charle (1994) como uma ação política universitária muitas vezes inclassificável (“inclassable”), dadas as nuances entre esquerda e direita, constituindo uma “zona cinzenta” entre o apoio e a oposição à semelhança do que propõem Rollemberg e Quadrat (2010). Para tanto, à pesquisa bibliográfica soma-se o trabalho de descrição densa (Geertz, 1974) das fontes primárias, como documentos administrativos, processos jurídicos e policiais-militares, relatos orais, jornais e dados estatísticos. Da Leitura minuciosa dessas fontes emergem e escapam os signos e os corpos subjetivos e institucionais dos universitários em tempos de ditadura, assinalando suas agências.

Por fim, destaca-se que a ideia de rizohistória floresce da teoria da esquizoanálise de Deleuze e Guattari (Deleuze; Guattari, 1992; 1995, 2004)5, que explora a multiplicidade de conexões políticas, sociais, educacionais, culturais etc. próprias às dinâmicas de mutação dos sujeitos subjetivos e sociais na história. Aqui, parece que o conceito de "agenciamento" deles foi relevante para compreender as ações e enunciações dos agentes universitários, que naquele tempo se moviam entre a resistência, a adesão e a acomodação. Os arquivos revelam como a "máquina universitária", isto é, o fluxo (re)produtivo universitário, funcionava como espaço de produção de corpos e signos acadêmicos, refletindo as tensões entre o campo cultural e o poder político, conforme discutido por autores como Foucault (1979) e demais autores citados anteriormente.

DESENVOLVIMENTO

Após as operações golpistas de 1964 que resultaram na prisão de mais de 30 mil pessoas em todo o Brasil, a “Operação Limpeza” se desdobrou em um sem-fim de processos fundamentados no Ato Institucional de 9 de abril de 1964 e outras jurisdições. O dispositivo modificava a constituição e estabelecia num só golpe a suspensão por seis meses, isto é, até outubro de 1964, das “garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade”. Ademais, determinava a abertura de “investigação sumária” contra servidores públicos com fins de demissão, suspensão, disposição, aposentadoria, transferência para reserva ou reforma pelo executivo e seu respectivo nível administrativo por “responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio de ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária” (Brasil, 1964).

Além das prisões arbitrárias, a perseguição aos adversários políticos manifestou-se por meio de sindicâncias administrativas, de inquéritos sumários e de inquéritos policiais-militares (IPMs). Os dois primeiros fundamentavam-se no Ato Institucional e no Ato nº 9, de 14 de abril de 1964, que dispunha sobre o artigo 8º do Ato Institucional relativo ao trabalho dos “Encarregados” de “Inquéritos”, “Processos” e “Sindicâncias” para “apuração da responsabilidade pelo crime contra o Estado ou seu Patrimônio e a Ordem Política e Social, ou atos de Guerra Revolucionária”. Foi nesse mesmo dia que extinguiram também o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), dirigido pelo professor Paulo Freire.

A política objetivava erradicar o analfabetismo no Brasil por meio da criação de 67 mil círculos de cultura, promovendo uma proposta de alfabetização e conscientização sem o uso de cartilhas tradicionais de ABC. Paulo Freire partia da pesquisa do universo vocabular e do conceito de cultura, numa aventura antropológica que transformava esse trabalho pedagógico em projeções de slides das palavras geradoras e suas imagens: belota, mangue, favela, comida, etc.

Com a prática de desinformação na grande mídia da época, que, mutatis mutandis, assemelha-se às fake news atuais, circulavam denúncias de que os projetores poloneses e a cartilha subversiva do método Paulo Freire doutrinavam a comunização. Essas acusações atingiam tanto o sistema sem cartilha de Paulo Freire e sua equipe SEC/UR quanto educadores, educadoras e a “Cartilha do MCP: “O livro de leitura para adultos”, de Josina Godoy e Norma Coelho (Veras, 2012). Para isso, propalavam os perigos da cartilha subversiva do método Paulo Freire. Envolvido na abertura do círculo de cultura de Goiana, o educador precisou se refugiar na casa de amigos enquanto negociava o retorno em segurança da família para o Recife e os termos de sua futura prisão (Veras, 2012; 2023).

Naquele momento, o então ministro da educação, o professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Flávio Suplicy de Lacerda, publicou a Portaria nº 259 que previa a “instauração de inquéritos administrativos”. Em seguida encaminhou a todas as universidades brasileiras o Aviso nº 705 de 22 de abril de 1964, determinando a criação imediata de comissões de “apuração da responsabilidade dos servidores, docentes e administrativos” (Motta, 2014, p. 51). No geral, essas sindicâncias compostas por catedráticos foram ainda mais rígidas do que os conhecidos IPMS, que eram dirigidos exclusivamente por militares, uma vez que previam exclusões sumárias irredutíveis a decisões judiciais.

Para tratar do caso, o Conselho Universitário da UR, órgão consultivo e deliberativo da administração da universidade, reuniu-se no dia 27 de abril de 1964. Em meio a uma campanha jornalística de desinformação anticomunista liderada por Gilberto Freyre (Veras, 2021), o reitor João Alfredo, presidente do Conselho, leu a Portaria da Universidade do Recife (UR) nº 16, designando os membros da comissão de apuração de crimes contra a segurança: os professores Everardo da Cunha Luna (Catedrático de Direito Penal da UR – presidente da comissão), Armínio de Lalor Mota (professor Emérito da Faculdade de Medicina do Recife – FMR) e Alberto Cavalcanti de Figueiredo (Catedrático de Economia das Indústrias da Escola Superior de Química – ESQ).

Com a constituição na mão, o professor Everardo da Cunha Luna anunciou que partiria do princípio de que “não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal” (Brayner; Barbosa, 2017, p. 226). A mesa contava com o apoio da secretária do Conselho Universitário, Celeste Haydée de Almeida Vasconcelos, do assessor civil e procurador da UR, Nildo Carneiro Leão, e do assessor militar designado pelo Comando do IV Exército, major João Batista Baére de Araújo6 (Universidade do Recife, 1964).

Ao longo das seis primeiras reuniões, debateu-se a metodologia do trabalho e enviaram-se ofícios e memorandos solicitando ao IV Exército, à Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco (SSP/PE) e às unidades universitárias cópias dos inquéritos e das sindicâncias movidas contra estudantes, administrativos e professores. Sem respostas do IV Exército, o major Baère esclareceu, depois, que não existia inquéritos ou sindicâncias individuais, mas apenas um “inquérito geral” da Comissão Geral de Inquérito (CGI).

Não tardou para que a apuração se concentrasse nas atividades do Serviço de Extensão Cultural (SEC), órgão criado pelo reitor João Alfredo sob os cuidados do jovem professor Paulo Freire. O educador estruturou o SEC em três projetos: o setor de educação, a Rádio Universidade (hoje Rádio Paulo Freire7), e a Estudos Universitários, revista de cultura da Universidade do Recife (Veras, 2012). Tanto o SEC quanto o MCP foram invadidos durante o golpe e seus colaboradores foram presos no Forte das Cinco Pontas (atual Museu da Cidade do Recife). Com a Estudos Universitários empastelada desde dezembro de 1963, o inquérito mirou na Rádio Universidade, assim investigando denúncias anticomunistas nos jornais e depoimentos de delatores e dos denunciados (Universidade do Recife, 1964; Veras, 2021).

Lançada em 29 de setembro de 1963, a Rádio Universidade, cujo bordão era “Rádio Universidade, a serviço da democratização da cultura”, possuía direção de José Laurenio de Mello. Além de trazer na bagagem anos de experiência na British Brodcasting Corporation (BBC de Londres), o professor contava com a colaboração técnica do próprio Paulo Freire, além de Hugo Martins, Ana Canen (companheira de José Laurenio de Mello), Paulo Rosas, Gadiel Perruci, Marcius Cortez, Samuel Kraimer, Jarbas Maciel, Luiz Costa Lima, Celso Marconi, Gilson Moura, Juracy Andrade, Almery Bezerra e João Câmara Filho (Leite, 1964). A programação da Rádio era claramente educativa, sempre acontecia uma explicação prévia ou posterior sobre o autor, o estilo e a história do que se escutava (Teixeira, 2007). Dentre os programas mais atacados, estava a Campanha de Alfabetização de Marcius Cortez e Hugo Martins (Leite, 1964).

A bem da memória, é importante destacar também que a equipe do SEC contava com a direção de Paulo Freire, secretaria do Padre Almeri Bezerra, bem como participação e colaboração inicial de Jomard Muniz de Britto, Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite, Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Juracy Andrade, Jarbas Maciel, Maria Adozinda Costa, Dulce Dantas, Astrogilda de Carvalho, Elza Freire, Aurenice Cardoso, Ana Canã, Maria de Jesus Baccarelli, Arthur Carvalho, José Laurênio de Mello, Paulo Pacheco, Pierre Furter, Almeri Bezerra, Paulo Menezes, Plácido Mendes de Lima, Hugo Martins e Marcius Cortez (Cortez, 2008). Tal composição cultural, reunindo homens, mulheres, adultos, jovens, professores, administrativos, estudantes etc., provocava antagonismos com o status quo acadêmico da cidade, o qual era profundamente oligárquico e patriarcal (Veras, 2012).

Passado mais de um mês do golpe, durante a 7ª reunião, do dia 6 de maio de 1964, a sindicância analisou a nova programação da Rádio Universidade apresentada pelo jornalista Edmir Regis, diretor interventor do SEC e da estação. Nas reuniões seguintes, examinaram-se os depoimentos e os prontuários de professores e administrativos detidos na sede da SSP/PE. O então secretário de segurança, o coronel Ivan Rui de Andrade Oliveira, comprometeu-se no momento a enviar cópias dos documentos. Já os arquivos do IV Exército foram averiguados pelo major Baère.

Em seguida foram coletados os depoimentos dos membros do SEC e demais envolvidos conforme a seguinte ordem: padre Almeri Bezerra de Mello e Juracy da Costa Andrade (11ª reunião – 11/05/1964); Pierre Fürter e Maria de Jesus Baccarelli (12ª reunião – 12/05/1964); Luiz da França Costa Lima Filho e Jomard Muniz de Brito (13ª reunião – 13/05/1964); Jarbas Augusto Ribeiro Maciel e Maria de Fátima Pimentel (14ª reunião – 14/05/1964); Maria do Carmo Tavares de Miranda (15ª reunião – 15/05/1964); Paulo Reglus de Neves Freire (16ª reunião – 16/05/1964); Paulo Pacheco da Silva (17ª reunião – 18/05/1964); José Laurenio de Melo e José Cavalcanti Sá Barreto (18ª reunião – 19/05/1964); Arthur Eduardo de Oliveira Carvalho e Arnaldo Carneiro Leão (19ª reunião – 20/05/1964); Sócrates de Carvalho (20ª reunião – 21/05/1964) (Universidade do Recife, 1964).

Em texto datilografado destinado ao presidente da Comissão e datado de 25 de maio de 1964, o professor Paulo Freire respondeu às indagações da Comissão de Inquérito. As 18 perguntas apontavam para a responsabilidade jurídica e intelectual do SEC, os parceiros públicos e privados do órgão, a campanha de alfabetização de adultos, práticas de “atividades subversivas ou de propagação de ideias contrárias ao regime democrático” (sobretudo na campanha de alfabetização, na rádio universidade e na revista Estudos Universitários), o envolvimento em processo da SSP/PE e do IV Exército e a participação em partido ou agremiação de natureza política. Ao que concluiu Paulo Freire, em sua defesa:

Ora, um dos objetivos fundamentais de todo o nosso esforço pedagógico era exatamente este. O de contribuir para o desenvolvimento de uma mente democrática, por isso flexível, crítica, plástica, somente como poderia e poderá, ninguém se engane, o homem brasileiro aprender a democracia, que, repetimos, antes de ser forma de governo, é forma de vida. É disposição mental. Todo o nosso empenho era o da superação das posições emocionais puramente instintivas, pelas críticas. Era pôr o homem diante das mudanças, capaz de optar. Instrumentalizá-lo para esta opção. Jamais doutriná-lo, porque então assim não optaria. Seria domesticado. Massificado. Seria objeto e não sujeito. E a isto se chamou de ‘lavagem cerebral’ [...] E há quem diga que não adianta alfabetizarmos esses trinta e seis milhões de brasileiros, porque talvez ‘papagaio velho não aprende a ler’. Como se estas legiões de analfabetos não constituíssem, para nós, seus irmãos letrados, uma prova de nosso desamor. De nossa incúria. De nosso fracasso [...]. Nunca pretendemos ser os donos da alfabetização nacional. Há analfabetos demais... Se tudo o que dissemos em nossa defesa pessoal e na defesa do SEC, a ninguém convencer, paciência. Salvem-se, porém, os analfabetos (Freire, 1964, p. 10)

Após depor na sindicância, a professora Maria do Carmo Tavares de Miranda publicou um texto no jornal, delatando, “a bem da verdade e para esclarecimentos presentes e futuros”, que o jovem professor Jomard Muniz de Brito, o qual estava preso, não era mais seu auxiliar desde janeiro de 1963, quando solicitou o cancelamento do contrato de trabalho dele. A professora Maria do Carmo Tavares de Miranda, catedrática de história e filosofia da educação da Escola de Belas Artes de Pernambuco8, registrou ainda que, desde 1962, o professor Jomard Muniz de Britto9 se encontrava à disposição de Paulo Freire no SEC e da cadeira de psicologia da educação, regida pelo professor Paulo Rosas (Miranda, 19 maio 1964a, p.2). O professor Paulo Rosas dirigiu o Instituto de Ciência Humanas (ICH) até abril de 1964, quando foi destituído em favor do professor e historiador José Antônio Gonsalves de Mello.

Convidado também a depor, Gilberto Freyre enviou seu procurador Antônio Pimentel Filho, que justificou a ausência por motivos de doença. Em vista disso, o procurador apresentou cópias autenticadas dos artigos com delações anticomunistas publicadas nos jornais por Gilberto Freyre, e declarou que nada mais tinha a acrescentar sobre o caso. O professor Arnaldo Carneiro Leão (FMR) atacou a comissão de sindicância dizendo ser ela “manobrada [...] e agradável ao Reitor”, sob protesto do professor Lalor Mota para o qual a “afirmação de depoente constituiu uma leviandade” (Universidade do Recife, 1964).

Publicado em maio, o relatório final da comissão de sindicância não apresentou denúncia de subversão contra os professores e administrativos da UR. Sob protesto de jornalistas e do autor de Casa-Grande & Senzala, a decisão intensificou a campanha contra o reitor João Alfredo. Acossado, o reitor renunciou em junho de 1964, sendo homenageado pelos demais conselheiros que o acompanharam até a saída da reitoria, num ato de protesto contra a intervenção do governo golpista na Universidade do Recife (Universidade do Recife, 1964b; Veras, 2021).

Entre junho e agosto de 1964, Paulo Freire foi preso e interrogado diversas vezes pelo coronel Ibiapina e outros militares, bem como seus interlocutores, em circunstâncias que feriam os direitos humanos (Veras, 2023). Várias vezes preso, Paulo Freire ficou mais de 70 dias na prisão. As detenções ilegais, os interrogatórios e a estrutura prisional precária e superlotada revelavam ao educador um regime que aprofundava a violação sistemática dos direitos humanos.

Simultaneamente, seguiam em curso os Inquéritos Sumários do IPM Geral de “crimes políticos”, cujo objetivo era investigar sumariamente crimes de “corrupção” e “subversão”, e demais IPMs sob o controle da caserna. Entre abril e outubro de 1964, a CGI publicou várias listas com os nomes de centenas de servidores públicos expurgados. Essas listas proibidas de nomes, livros, músicas, filmes, etc. se tornaram uma prática comum de expiação pública dos possíveis adversários do regime. Num dos inquéritos, Paulo Freire era citado por “subversão imediata dos menos favorecidos [...], mistificador [...] esquerdista-esquerdizante [...], criptocomunista encapuçado de alfabetizador” (Veras, 2018, p. 133).

Publicada em outubro de 1964, nas vésperas da expiração do prazo estabelecido pelo artigo 7º do Ato Institucional (AI), o “Listão” da CGI concretizou o expurgo da UR. A comissão de sindicância nomeada pelo reitor João Alfredo evitou, no primeiro semestre, a repressão, diferente de outras comissões universitárias, por vezes mais duras que os inquéritos sumários e IPMs (Motta, 2014). Entre os nomes listados estavam o próprio reitor e os seguintes professores e administrativos da UR, conforme pena sumária:

Tabela 1 – Punidos na UR pelo Inquérito Sumário da CGI.

Aposentados

Amaro Soares Quintas (preso), Amaury Vasconcelos, Antônio Bezerra Baltar, Arnaldo Cavalcanti Marques (preso), Arthur Eduardo de Oliveira, João Alfredo Gonçalves da Costa Lima, Jomard Muniz de Brito (preso), José Laurenio de Mello, Luiz da França Costa Lima, Paulo Reglus Neves Freire (preso), Pelópidas da Silveira.

Demitidos

Juraci da Costa Andrade, Luiz de França Costa Lima, Paulo Reglus Neves Freire.

Dispensados

Amaro Carneiro da Silva, Miriam Campelo, Paulo Pacheco da Silva e Roberto Morais Coutinho.

Exonerado

Newton da Silva Maia.

Fonte: Brayner; Barbosa, 2017, p. 227.

Segundo jornais, foram igualmente listados pela CGI, no entanto por aposentadoria, exoneração ou demissão, os professores Jarbas Augusto Ribeiro Maciel (SEC), Rui da Costa Antunes (Faculdade de Direito do Recife – FDR), Abdias Cabral de Moura Filho (Faculdade de Filosofia de Pernambuco – FAFIPE), Luís Pinto Freira (FDR), José Xavier Pessoa de Moraes (Instituto de Ciências Humanas – ICH – e FAFIPE) e Francisco das Chagas Costa Tito (Brayner; Barbosa, 2017; Diário Oficial [...], 1964).

O episódio motivou uma homenagem do Conselho Universitário na pessoa do professor Fernando Menezes, da Escola de Belas Artes de Pernambuco (EBAP), aos professores João Alfredo, Pelópidas Silveira, Newton Maia (professor Emérito), Antônio Baltar, Paulo Freire e Jomard Muniz de Brito. Depois, o conselheiro Nilo Pereira (Diretor da FAFIPE) homenageou o professor Amaro Quintas, acompanhado pela manifestação de solidariedade dos professores Francisco Gondim (Escola Superior de Química – ESQ), Abgar Soriano (Faculdade de Medicina do Recife – FMR), Lourival Vilanova (FDR), Arnaldo Caldas (Faculdade de Odontologia), Hermínio Bulhões (Faculdade de Farmácia) e pelo estudante Aguinaldo Agra (presidente do Diretório Central dos Estudantes – DCE). O reitor Murilo Guimarães não se manifestou na ocasião, mas o vice-reitor, Jônio Pereira de Lemos (Escola de Engenharia de Pernambuco – EEP), associou-se aos tributos, enaltecendo o “mestre” Antônio Baltar, professor e político socialista da Frente Popular do Recife10, do qual leu a seguinte mensagem:

Atingido por uma das punições previstas no Ato de 9 de abril, a saber, a aposentadoria dos cargos de professor catedrático que há mais de vinte anos ocupo na Universidade do Recife, tenho o dever moral de deixar consignadas nos anais da instituição as circunstâncias em que se processou essa punição e caracterizam sua flagrante injustiça. Isentado de qualquer culpa ou responsabilidade em atos de corrupção ou subversão encarados embora pelos elásticos critérios em vigor, tanto no inquérito realizado pela ilustre comissão de professores desta universidade, como na investigação sumária procedida pelo competente oficial do Exército designado pela Comissão Geral de Investigações, fui incluído por essa comissão em parecer oficial entre as pessoas a quem não se deveriam aplicar as sanções do artigo sétimo, parágrafo primeiro do referido Ato, por nada haver sido apurado contra elas no correr das investigações realizadas, conforme nota oficial divulgada em todo país. Apesar disso, como ocorreu a outros professores desta universidade, fui punido com a aposentadoria compulsória como conclusão de um processo encerrado em desobediência aos mais elementares princípios de direito, eis que nenhuma oportunidade de defesa me foi assegurado, nem sequer conhecimento do teor da acusação. Enquanto aguardo que os caminhos normais do judiciário se me abram para uma apelação eficaz da medida injusta, quero deixar registrada minha declaração formal e peremptória neste conselho de que exercício dos cargos de professor desta universidade, para concorrer aos quais me inscrevo em concursos por incoercível vocação, ato algum pratiquei que justificasse, ainda que vagamente, a punição imposta. Jamais utilizei a cátedra ou a situação de professor para qualquer tipo de proselitismo político ou ideológico e ainda mesmo na fase em que levado por dever cívico a exercer política partidária em decorrência de mandados recebidos do povo e que desempenhei numa linha rigorosamente honesta e democrática, sempre distingui minhas tarefas universitárias, colocando-as num plano isento de qualquer interferência com a ação política. Provei-o no interrogatório a que me submeti, preso à disposição do brilhante oficial que presidiu a investigação sumária feita na Universidade e o havia feito por escrito já à comissão de professores que dirigiu o primeiro inquérito. Prová-lo-ei ainda, se necessário, com o testemunho de centenas de profissionais de engenharia e de arquitetura, meus ex-alunos nos cursos da Universidade, que atestarão certamente como o fizeram os alunos atuais da Faculdade de Arquitetura, por unanimidade de uma assembleia geral do órgão estudantil, que este professor na cátedra ou fora dela jamais os induziu a qualquer ação política ou posição ideológica, muitos menos a atos de subversão. Testemunha igual deu-o à Congregação da mesma Faculdade também por voto unânime. Não sou certamente o único injustiçado por um sistema de apuração de culpas alheio às lições da carta dos direitos humanos que assegura a todos a defesa com o conhecimento da acusação formatada e, porque não me pesa na consciência a prática de nenhum ato do que provavelmente me atribuem para justificar a punição, subversivo ou contrário ao regime democrático, aguardo tranquilamente meu julgamento futuro. A. B. Baltar. (Universidade do Recife, 1964, p. 246-250).

Além dos Inquéritos Administrativos e Sumários, havia também os Inquéritos Policiais Militares (IPMs). Esse dispositivo da justiça militar indiciou civis com base no Ato Institucional, no Código de Justiça Militar (CJM) e na Lei de Segurança (Lei 1.802 de 5 de janeiro de 1953), depois Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 314, de março de 1967 e Decreto-lei 898, de 29 de setembro de 1969).

Geralmente essas comissões eram dominadas pela linha dura. Esse grupo político era composto por militares, civis ligados aos órgãos de vigilância e repressão, às posições políticas radicais de extrema direita e fascistas e aos grupos paramilitares anticomunistas. O termo remete igualmente àqueles militares que não compunham a ala mais liberal do regime ditos “moderados”, “castelistas” ou do “grupo da Sorbonne” (estes dois últimos em alusão ao General Presidente Castelo Branco e à Escola Superior de Guerra – ESG). A linha dura se organizava como grupo de pressão que compunha o governo central, reivindicando o aprofundamento da ditadura militar e das operações de repressão “anticomunistas” contra a “subversão” e a “corrupção”. A historiografia mais recente tem mostrado o quanto as fronteiras políticas entre “moderados” e “radicais” eram tênues e, por vezes, complementares (Motta, 2014; Napolitano, 2016; Santos, 2009). Como observa Motta: “o próprio funcionamento dos IPMs era a maneira do governo oferecer uma válvula de escape para o radicalismo linha dura, que tinha ali oportunidade de vociferar seus rancores e aparecer para opinião pública” (Motta, 2014, p. 50).

Os IPMs obedeciam aos mais variados temas propostos pela caserna, ao passo que, no meio universitário, os IPMS mais conhecidos foram os da UNE, da UNB, da Faculdade Nacional de Filosofia da UB (FNFi/UB), do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e da UR. Para conduzir o IPM da UR, o comandante do IV Exército designou, por meio da Portaria nº 19 de 1 de julho de 1964, o major Manoel Moreira Paes11. Através do ofício nº 2-IPM, de 7 de julho de 1964, o major informou ao vice-reitor em exercício da UR, o professor catedrático Newton Maia, sobre a abertura oficial do Inquérito. Objetivava-se, assim, “apurar responsabilidades [...] na ‘Universidade do Recife’, na prática de atos tendentes à subversão do regime político-democrático, assim como em crime contra o Estado ou seu patrimônio, com ofensa à Lei nº 1802 [...] e ao Código Penal Militar”. De imediato, o major solicitou providências quanto ao envio em dez dias das seguintes informações completas dos professores, administrativos e alunos, verbas, convênios, programas, projetos, bem como

Prestação de contas da verba do convênio com o MEC, relativa ao SEC. 6. Critério para concessão de bolsa de estudo, com discriminação das distribuídas, sua duração e respectivos beneficiados [...] – um exemplar do Regimento da Universidade; – Uma coletânea da Revista “Estudos Universitários” (5 números); – Uma cópia da Sindicância presidida pelo professor catedrático ARMÍNIO DE LALOR MOTA; – e uma cópia das atas de reunião da Comissão de Sindicância (UFPE, 1964c).

Durante os IPMs, os denunciados eram submetidos a acareações quase sempre publicadas nos jornais com detalhes de horário, local e nome do indiciado e com interrogatórios que duravam horas (Mais de Quarenta Indiciados, 1964). Essa prática expunha publicamente os envolvidos, arruinando a vida social e profissional dessas pessoas, que eram estigmatizadas com os signos da subversão e da corrupção.

Em um desses interrogatórios, o crítico Luiz Costa Lima recorda que fora advertido pelo oficial militar: “não tem nada que ficar corrigindo o que está sendo escrito, porque o seu caso já está resolvido: você foi denunciado como marxista por Gilberto Freyre e será aposentado” (Veras, 2012, p. 232). Do mesmo modo, o secretário do SEC, o padre Almeri Bezerra, lembraria depois que os “generais Justino Alves e Muricy, juntamente com o coronel Ibiapina, sentindo que não tinham mais condições de garantir a minha vida (foram eles que o disseram), solicitaram a Dom Helder que os poupasse, mandando-me embora para longe” (Mello, 2006, p. 11).

Alvo principal de vários IPMs da educação e cultura, o educador Paulo Freire passou por ameaças, interrogatórios e prisões até que, em setembro de 1964, durante o IPM do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), refugiou-se na Embaixada da Bolívia, partindo em outubro para um exílio de 16 anos. Na Escola de Engenharia, que era o coração político da UR, os golpistas perseguiram politicamente os professores Antônio Baltar, Pelópidas Silveira, Acácio Gil Borsoi e Delfim Amorim, levando-os a deixar o Recife ou até mesmo o Brasil, forçados ao exílio. Um dos colaboradores de Paulo Freire que ficou mais tempo na detenção foi Jomard Muniz de Brito, talvez pela participação na Comissão Regional de Cultura Popular e no Programa Nacional de Alfabetização (PNA), ou pela delação pública de sua antiga orientadora, a professora Maria do Carmo Tavares de Miranda e, claro, sua simpatia por grupos LGBTQIAPN+. Um caso exemplar decerto para pensar o imbricamento político e moral do golpe e do regime ditatorial que governou o Brasil por 21 anos (Veras, 2018).

Entre 1964 e 1965, o IPM da UR circulou entre o Ministério Público e o IV exército, tendo sido a denúncia apresentada pela promotoria militar apenas em 11 de junho de 1965. A peça jurídica apontava Paulo Freire, que já se encontrava exilado, como “cerne intelectual da subversão na universidade”, assim como denunciava outros 22 universitários, entre professores, administrativos e estudantes: Romeu Padilha de Figueiredo, Paulo Pacheco da Silva, Miriam Campelo, Jomard Muniz de Brito, Artur Eduardo de Oliveira Carvalho, Roberto Mauricio Coutinho, Benjamin Santos, Amaro Carneiro da Silva, Vilma Vaz, Marcius Frederico Cortez, José Sarmento de Melo, Abdias Cabral Filho, José Carlos Rodrigues de Melo, Drummond Xavier Cavalcanti Lima, José Carlos de Morais Vasconcelos, Alexandre Magalhaes da Silveira, Rui Frazão Soares, José Xavier Pessoa de Morais, Bruno Costa Maranhão, Joel Regueira Teodósio, João Antônio Caixeiro de Vasconcelos Melo e José Tinoco Machado de Albuquerque (Denúncia Contra Indiciados, 1965).

As auditorias militares, inicialmente, recusaram essas denúncias por “não terem os envolvidos incorridos em crimes cujo processamento e julgamento sejam competência da Justiça Militar”, mas sim da “Justiça Ordinária”. O Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, corrigiria esse problema, ampliando a competência da justiça militar, bem como suspendeu os direitos constitucionais, ampliou a abrangência da justiça militar (tendo em vista os IPMs), fortaleceu o poder executivo e extinguiu os partidos políticos. Sobre o dispositivo, comenta o historiador Marcos Napolitano: “se o golpe foi o batismo de fogo da ditadura, o AI-2 é sua certidão de nascimento definitiva” (2014, p. 79). Como a maioria destes processos, o IPM da UR seria arquivado em novembro de 1967, através de habeas corpus e mandados no STM (Recusada a Denúncia, 1965; STM Concede Habeas Corpus, 1967; STM Concede Mandado, 1968).

Outros processos no âmbito das Secretarias de Segurança Públicas também ameaçavam os agentes universitários e outros sujeitos educacionais na mira da repressão. Os professores Amaro Quintas, Adão Odacir Pinheiro (EBAP), Arnaldo Cavalcanti Marques (FMR) e Gláucio Veiga (FDR) foram presos por subversão no ano de 1965, diante do protesto estudantil. Apesar do Estado de Exceção, como se pode observar, no caso brasileiro, a justiça representou um meio de resistência contra as arbitrariedades cometidas pela ditadura militar. Alguns advogados e advogadas, como Paulo Cavalcanti, Mércia Albuquerque, Roque de Brito Alves e Rui da Costa Antunes, se notabilizaram assim pela arriscada missão de defender processados e presos políticos (Cavalcanti, 1978; Brito, 2015; Recusada a Denúncia, 1965; STM Concede Habeas Corpus, 1967; STM Concede Mandado, 1968).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esses capítulos da história da universidade brasileira em tempos de golpe ressoam no tempo presente, rememorando situações-limite passadas e atuais vividas pela população universitária. O expurgo político na Universidade do Recife e no MEC durante o golpe de 1964, que tentou silenciar o sistema Paulo Freire de educação, alerta para os perigos da intolerância e do autoritarismo. A censura e a criminalização de educadores e de suas práxis pedagógicas acendem o sinal de alerta para os defensores das liberdades democráticas e de cátedra.

Diante dos ataques à educação ao longo do golpe de 2016 e dos governos Temer e Bolsonaro, tornou-se explícita a precarização da educação pública e suas organizações coletivas de resistência. Acontecimentos como o ato golpista de 8 de janeiro de 2023, a reforma do ensino médio, as escolas cívico-militares e a privatização da escola pública, evidenciam a conjuntura adversa ao campo educacional brasileiro. São nessas situações que a sala de aula cresce como espaço de formação crítica e de mobilização, através da leitura plural do mundo e da palavra, como propunha Paulo Freire.

O fortalecimento dos movimentos docentes e estudantis classistas tornou-se uma tarefa histórica frente aos ataques autoritários às universidades e outras instituições educacionais públicas, como a Rede Federal de Educação. Pesquisar os efeitos do golpe de 1964 nas universidades, por meio do caso de Paulo Freire e da antiga Universidade do Recife, é uma forma de apreender os dispositivos de resistência e repressão empregados por universitários na luta em defesa da política pública de ensino superior como agência promotora da inclusão e da justiça social.

O expurgo no campo acadêmico do Nordeste do Brasil foi particularmente perverso, banindo intelectuais à frente de importantes instituições públicas e movimentos sociais como a UR, o SEC, a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), do MCP, das Ligas Camponesas, dentre outras. Essa “limpeza” política impulsionou a fuga de cérebros de intelectuais relevantes como Paulo Freire, Antônio Baltar, Celso Furtado, Francisco Julião, além de outros sujeitos a frente de políticas públicas que visavam contribuir com a superação do quadro de desigualdade regional que seria aprofundado ao longo de 21 anos de ditadura militar no Brasil.

Provocado pela seção especial “Democracia e ensino na Universidade: 60 anos após o golpe de 1964” da Revista Docência do Ensino Superior, retoma-se a pesquisa histórica sobre a violência cometida contra professores, administrativos e estudantes da Universidade do Recife como exercício democrático de direito humano à memória e à verdade. As memórias biográficas e coletivas das graves violações dos direitos humanos cometidas contra Paulo Freire e outros universitários alimentam a raiva justa e a indignação que movem a luta dos trabalhadores da educação em defesa da universidade e da educação brasileira, ontem e hoje.

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Dimas Brasileiro Veras

Professor do IFPE Campus Recife. Doutor em História pela UFPE (2018). Membro da Cátedra Paulo Freire da UFPE. Coordenador do Malungo-Lab: laboratório de humanidades digitais e inovação social do IFPE Campus Recife. Membro do Grupo de Pesquisa "História, Cultura e Trabalho" (CNPq/IFPE). Autor dos livros "História, Memórias e Saberes Ancestrais", "Sociabilidades letradas no Recife" e "Sociedade e cultura sustentável". Diretor de Gestão das Atividades de Extensão do IFPB (2014 - 2016) e Professor do IFPB (2011 - 2019). Tem experiência na área de História, Educação e Inovação, com ênfase em História do Brasil República, História da Educação e Inovação Social, atuando principalmente nos seguintes temas: educação popular, história das universidades, história dos intelectuais, biografia histórica e a vida e a obra de Paulo Freire.

dimasveras@recife.ifpe.edu.br



Como citar este documento – ABNT

VERAS, Dimas Brasileiro. Paulo Freire e a Operação Limpeza: repressão e resistência ao golpe de 1964 na Universidade do Recife. Revista Docência do Ensino Superior , Belo Horizonte, v. 14, e052837, p. 1-18, 2024. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52837 .



1 Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) Campus Recife, Recife, PE, Brasil.

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-4684-305X . E-mail: dimasveras@recife.ifpe.edu.br


Recebido em: 14/06/2024 Aprovado em: 06/11/2024 Publicado em: 31/12/2024

2 Adaptado do Exército colonial francês, o conceito de guerra revolucionária empregado pela Escola Superior de Guerra (ESG) entendia a luta armada enquanto modalidade de subversão comunista internacional. Nessa lógica, considerava-se os universitários como “inimigo interno” devido à suposta ação intelectual que promovia ideologias subversivas que ameaçavam a segurança e o desenvolvimento nacional, assim justificando a repressão a esses ditos grupos perigosos.

3 Entre 1946 e 1964 as matrículas universitárias brasileiras saltaram de 30 mil para 142 mil.

4 Doutrinas anticomunistas criadas à sombra da Guerra Fria e da produção de crença apocalíptica das batalhas nucleares. Tais políticas baseiam-se no uso massivo da publicidade e da propaganda para disseminar valores liberais conservadores e medo do inimigo externo, bem como na denúncia massiva do inimigo interno dito comunista e/ou de minorias socioculturais (Hobsbawm, 1995; Veras, 2018).

5 Parte-se, pois, da teoria da multiplicidade, isto é, do rizoma, todavia também das hastes da “Risoflora”. Duas risofloras: a fauna e a flora do mangue e a música do movimento manguebeat do álbum “Da lama ao Caos”, de Chico Science & Nação Zumbi (1994), que este ano completa 30 anos.

6 O oficial superior é citado nos relatórios do “Projeto Brasil Nunca Mais” como “funcionário” envolvido em tortura na 7ª RM (Arquidiocese de São Paulo, 1985). Participou também da condenação a 19 anos de prisão de Gregório Bezerra, militante histórico do PCB, bem como da repressão à guerrilha do Araguaia (Maciel, 2011).

7 Disponível em: https://sites.ufpe.br/rpf/. Acesso em 22 maio 2024.

8 A professora tornou-se catedrática num concurso com Paulo Freire, entre 1959 e 1960 (Veras, 2012).

9 Sobre Jomard Muniz de Britto, ver: https://www.youtube.com/watch?v=tUZv6hSBBBA. Acesso em 22 out. 2024.

10 A coligação de esquerda política elegeu dois prefeitos, Miguel Arraes (1960-1963) e Pelópidas Silveira (1963-1964), e um governador, Arraes (1963-1964), tornando-se o principal alvo das graves violações dos direitos humanos no campo político após o golpe.

11 Anos mais tarde o oficial faria o curso da Escola da América, que ficava no Panamá e era um reconhecido centro de formação de torturadores do governo dos EUA. Segundo Gaspari (2014), dez por cento dos oficiais brasileiros egressos desta Escola foram denunciados por tortura e morte de presos políticos.

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