DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52890
Entrevistas seção especial: Democracia e ensino na Universidade: 60 anos após o golpe de 1964
Entrevista com Maria Isabel da Cunha: trajetória pessoal e profissional durante a ditadura militar
Entrevista a Maria Isabel da Cunha: trayectoria personal y profesional durante la dictadura militar
Interview with Maria Isabel da Cunha: personal and professional trajectory during the military dictatorship
Maria Isabel da Cunha,1 Maria Antonia Ramos de Azevedo2
Resumo
Nesta entrevista com Maria Isabel da Cunha, realizada em maio de 2024, mediante troca de e-mails e ligações telefônicas, busca-se compartilhar aspectos da trajetória pessoal e profissional da educadora no contexto da ditadura militar, que assolou o Brasil das décadas de 1960 a 1980. Nascer em uma família com muitas mulheres professoras a levou ao Curso Normal e ao exercício do magistério como profissão. Maria Isabel cursou primeiro a graduação em Ciências Sociais e depois em Pedagogia, atuou na educação básica e no ensino superior. Viveu, dentro das escolas, as mudanças trazidas pelas marcantes legislações educacionais de 1968 e 1971. Todo esse processo formativo e inserção no campo de trabalho se deram em plena ditadura, possibilitando à entrevistada desenvolver uma perspectiva crítica sobre o papel da educação e ressignificar a sala de aula. Maria Isabel nos chama a atenção para a não neutralidade do conhecimento, o papel emancipatório da escola, o comprometimento docente com as causas da democracia e as responsabilidades do Estado. E conclui refletindo sobre a importância do esperançar, conforme ensinado por Paulo Freire, e do educar como ato de repartir conhecimentos, afetos e experiências.
Palavras-chave: educação na ditadura; formação para a cidadania; governos ditatoriais.
RESUMEN
En esta entrevista con Maria Isabel da Cunha, realizada en mayo de 2024, mediante intercambio de correos electrónicos y llamadas telefónicas, se busca compartir aspectos de su trayectoria personal y profesional como educadora, en el contexto de la dictadura militar que asoló Brasil entre las décadas de 1960 y 1980. Nacida en una familia con muchas mujeres docentes, su camino la llevó al Curso Normal y al ejercicio de la docencia como profesión. Maria Isabel cursó primero la licenciatura en Ciencias Sociales y luego en Pedagogía, y trabajó tanto en la educación básica como en la educación superior. Vivió, dentro de las escuelas, los cambios impuestos por las importantes legislaciones educativas de 1968 y 1971. Todo este proceso formativo y su inserción en el ámbito laboral se dio en pleno período dictatorial, lo que permitió a la entrevistada desarrollar una perspectiva crítica sobre el papel de la educación y resignificar el aula. Maria Isabel nos llama la atención sobre la no neutralidad del conocimiento, el papel emancipador de la escuela, el compromiso docente con las causas de la democracia y las responsabilidades del Estado. Finalmente, concluye reflexionando sobre la importancia de esperançar, tal como fue enseñada por Paulo Freire, y de educar como un acto de compartir saberes, afectos y experiencias.
Palabras clave: educación en la dictadura; formación ciudadana; gobiernos dictatoriales.
ABSTRACT
In this interview with Maria Isabel da Cunha, carried out in May 2024, through the exchange of emails and telephone calls, the aim is to share aspects of the educator's personal and professional trajectory within the context of the military dictatorship that ravaged Brazil from the 1960s to the 1980s. Being born into a family with many women teachers led her to the Normal Course and to teaching as a profession. Maria Isabel initially pursued a degree in Social Sciences and later in Pedagogy, working in both basic education and higher education. She experienced firsthand the changes brought about by the significant educational legislations of 1968 and 1971 within schools. This entire formative process and her entry into the workforce took place during the dictatorship, which enabled the interviewee to develop a critical perspective on the role of education and to reframe the classroom. Maria Isabel draws attention to the non-neutrality of knowledge, the emancipatory role of the school, the teacher’s commitment to democratic causes, and the responsibilities of the State. She concludes by reflecting on the importance of esperançar, as taught by Paulo Freire, and the act of educating as a process of sharing knowledge, affections, and experiences.
Keywords: education under dictatorship; training for citizenship; dictatorial governments.
INTRODUÇÃO
Maria Isabel Cunha “possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Católica de Pelotas (1968), graduação em Pedagogia pela Universidade Católica de Pelotas (1974), mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [PUC/RS] (1979) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas [UNICAMP] (1988). Atualmente é docente colaboradora no PPG [Programa de Pós-Graduação] Educação da Universidade Federal de Pelotas. Atuou como professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. É docente convidada da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação superior, formação de professores, pedagogia universitária. Orienta dissertações e teses e tem expressiva produção intelectual em artigos e livros. É pesquisadora sênior do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]”.3
Nesta entrevista, a professora pesquisadora Maria Isabel da Cunha nos presenteia com uma análise crítica e reflexiva acerca das suas experiências de vida, aprendizados e desafios enfrentados na luta por educação e formação cidadãs em um país tão complexo como o nosso, especialmente em um contexto adverso, como foi a ditadura militar.
Maria Isabel teve uma infância regada por muitos afetos e exemplos fortes de seus familiares. Destaca-se aqui o papel de sua mãe, que sempre ensinou aos filhos a importância da busca pela formação profissional, a valorização e a luta pelo lugar da mulher na sociedade. Desse alicerce tão fundamental, a inserção no campo educacional levou Maria Isabel a percorrer caminhos e possibilidades outras e, frente ao regime militar, encontrar brechas para fazer alavancar a luta pela formação de qualidade para professores, atuando como supervisora pedagógica e depois como professora de Didática na Universidade Federal de Pelotas. Sempre esteve presente a inquietude de contribuir com a formação cidadã, crítica, reflexiva e emancipatória, alicerces para uma educação de qualidade e transformadora.
Na busca por qualificar o trabalho desenvolvido, Maria Isabel realizou seus estudos de mestrado e doutorado, que a colocaram em contato com excelentes professores e colegas. Por meio de seus estudos e pesquisas, teve oportunidades de colaborar significativamente com o avanço do campo de formação de professores. Uma das inúmeras contribuições desse processo foi a reconstituição do espaço da sala de aula como um lugar onde as partilhas de saberes e afetos concorrem imensamente para o avançar epistemológico, científico, humano e transformador de todos os envolvidos. Na sua tese de doutorado, que deu origem ao livro O bom professor e sua prática, ela nos convida a ressignificar o nosso papel como ser humano e como professores educadores.
Ainda nesta entrevista, repleta de aprendizagens e afetos, Maria Isabel nos chama a atenção para o papel que temos como professores e a necessidade de realizarmos verdadeiras revoluções pedagógicas, inovando nossas práticas para o enfrentamento das ameaças que o Brasil e o mundo têm vivido – ataques à democracia, discursos de ódio, desvalorização da diferença, da diversidade e das questões climáticas.
E é nessa direção que ela nos convida a continuarmos lutando por uma educação verdadeiramente emancipatória, humanística e cidadã.
ENTREVISTA
Maria Isabel, para iniciarmos esta conversa, peço que descreva, em sua trajetória de vida, o que a impulsionou a ser professora.
Venho de uma família de mulheres professoras. Minha mãe nasceu num lar de classe média com pais de origem alemã. Ela contava que, contra a expectativa da época, meu avô estimulava a profissionalização das duas filhas mulheres. Assim, Ilka Huber, minha mãe, terminou a Escola Normal em 1936, fez curso de aperfeiçoamento e ingressou no magistério público do Rio Grande do Sul em 1939. Minhas três tias também assumiram esta profissão. Nas conversas de família, contava-se que minha avó materna havia sido professora, atuando como docente do tradicional Colégio Sevigné, para moças, em Porto Alegre. Essa geração de mulheres de classe alta ou média emergente tinha no magistério a sua “natural” possibilidade de estudar e ter uma profissão. Como a maioria delas trabalhava em um só turno, dizia-se ser ideal para poder, no outro turno, cuidar dos filhos e da família. É fácil inferir, nesse discurso, uma cultura de gênero que se constituía num tempo em que a mulher começava a se profissionalizar, desde que não abandonasse sua missão de mãe e dona de casa, seu compromisso de casamento. O ambiente escolar certamente representava um espaço adequado, em que os homens eram raros, além de o trabalho com crianças ser considerado uma extensão do lar.
No caso de minha mãe, sua profissionalização foi fundamental. Com três filhos menores, se desquitou de meu pai e assumiu grande parte do ônus de educar e manter os filhos. Tínhamos sete e cinco anos e, como ela ficou grávida, a mais moça nasceu nesse longínquo 1949. Desde então, minha mãe, com 33 anos, foi a figura central da nossa família e sua condição de relativa independência econômica moveu o intento de que seus filhos estudassem. Vivemos com segurança e os três filhos concluíram a educação superior.
Minha ida para a Escola Normal em 1961, com 16 anos, foi uma opção natural, em função da cultura familiar e das condições de vida. Essa formação marcou para sempre a minha vida. Com o diploma de professora, já alcançava uma profissionalização e a capacidade de ingressar no mundo do trabalho. E assim foi. Em 1965 comecei minha carreira no Grupo Escolar Felix da Cunha, em Pelotas-RS.
Conte-nos sobre seu percurso profissional em pleno período da ditadura militar e como aquele contexto implicou na sua formação.
Com 21 anos, já casada e esperando o primeiro filho, iniciei, em 1965, o curso de licenciatura em Ciências Sociais, na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Escolhi esse curso pela minha afinidade com o campo da sociologia, do qual me aproximei na Escola Normal. Vivíamos o auge da ditadura e o curso se adaptava às regras do regime. Estudos da sociologia na dimensão de Marx e Weber eram totalmente proibidos. Portanto, a formação foi funcionalista, assumindo a neutralidade da ciência.
Nessa época eu pouco tinha consciência desse limite e condição. Minha vida se reduzia em ir para o trabalho de manhã, à tarde para a faculdade e, nos intervalos e à noite me dedicar totalmente à casa e à família. Tive boas ajudantes que contribuíram para essa possibilidade. No último ano do curso, nasceu meu segundo filho.
De posse do diploma, percebi que o campo de trabalho era mínimo. Por conta da ditadura, as disciplinas sociais e de humanidades foram extintas e/ou substituídas por outras que tencionavam os valores do regime: Moral e Cívica, na educação fundamental e média e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), no ensino superior.
No estado do Rio Grande do Sul ainda tínhamos duas carreiras que organizavam o magistério: uma para o curso primário – as normalistas – e outra para o secundário – docentes com curso superior –, com diferenças salariais e de carga de trabalho. Essa diferença estimulava a possibilidade de atuar onde as condições eram melhores para quem tinha concluído uma licenciatura, como era o meu caso. Fui, então, ser professora de Moral e Cívica nas séries ginasiais e de Sociologia, disciplina ainda remanescente no curso clássico. O compromisso era seguir os programas aprovados pelo regime. E, confesso, eu não tinha bagagem teórica e clareza política para fazer de outro jeito.
Essa condição só foi se alterando com a minha inserção no Ginásio Polivalente, do PREMEM, 4 que significou uma divisória na minha carreira. Com a minha formação de base, pude participar do treinamento de 280 horas junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para assumir a função de coordenação pedagógica nessas novas escolas. Corria o ano de 1971 e nele a promulgação da rupturante Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, que criou a fusão das antigas etapas de escolarização básica, agora com oito anos de duração.5 Na Escola Polivalente, em Pelotas, fiquei encarregada de atuar junto às diretoras e professoras das escolas primárias para facilitar a transição dos alunos ao novo formato.
Essa lei, que também impactou a educação superior, modificou os cursos de Pedagogia, criando neles uma condição de especialização nas áreas de supervisão, orientação e administração educacional. De acordo com os pressupostos políticos vigentes, seriam os especialistas que garantiriam os objetivos teóricos propostos e o sucesso do alunado, uma inspiração muito forte do modelo fordista de organização das empresas, transladado para a educação.
Vale lembrar que a Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, chamada de Reforma Universitária, já tinha o mesmo pressuposto quando, mesmo com o sustentável intuito de fortalecer a pesquisa, através da departamentalização na organização das instituições de ensino superior, fracionou o ensino e as corporações docentes. Essa Lei incluiu, também, a matrícula por disciplina, implodindo a perspectiva unitária das turmas, fundamental, até então, para a organização estudantil.
O impacto das culturas e legislações foi significativo na minha vida. Voltei à universidade para completar matérias do curso de Pedagogia, com a habilitação de Supervisão Pedagógica, com conteúdos já iniciados no PREMEM/UFRGS. Lá convivi, como colega, com o então diretor da Escola Técnica Federal de Pelotas que, ao final da formação, convidou a mim e outra companheira para ingressar naquele estabelecimento, implantando o serviço de Supervisão Pedagógica. Foi novamente um divisor de águas na minha vida profissional e pessoal. Essa experiência foi se mostrando potente e resultou no convite, pelas mãos de uma professora que comigo conviveu na Escola Normal, para ingressar como docente Auxiliar de Ensino da disciplina de Didática, na recente fundada Universidade Federal de Pelotas (1968).
O núcleo, ainda muito restrito, que na nova Universidade foi assumindo o campo da educação, construía uma visão progressista, a partir da vinculação de muitos professores com o Movimento de Educação de Base, associado a uma facção da Igreja Católica. Foi nessa convivência que comecei verdadeiramente a entender as tramas da ditadura e a importância de construir a necessária ruptura com o modelo ditatorial de Estado.
Daí foi um passo para a militância no movimento docente, na então recém-criada Associação dos Docentes da UFPel (ADUFPEL), filiada à Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES). E foi nessa convivência, favorecendo uma formação sindical e política, que participei das lutas pela redemocratização do país.
Minha condição de atuar em dois espaços de educação pública – na Faculdade de Educação da UFPel e na Escola Técnica Federal – favoreceu o trânsito entre as concepções de educação e sociedade que se construía intensamente. Na primeira, tínhamos autonomia nas decisões e no aprofundamento teórico das teorias críticas; na segunda, um embate cotidiano para, respaldado na competência técnica, fazer avançar a competência política.
Certamente foram fatos e circunstâncias que marcaram a minha vida profissional e impulsionaram o que veio depois.
Uma importante contribuição científico-acadêmica que você trouxe ao contexto universitário foi a explicitação da sala de aula como espaço de luta e resistência. Como, nos tempos atuais, os professores podem constituir e ressignificar esse espaço?
O relato que até então fiz procurou explicitar a metamorfose que vivi em termos de concepções de mundo e de educação. Já não se tornava possível uma educação neutra, baseada somente na dimensão tecnicista ou psicologista aplicada às nossas práticas. E esse foi um grande desafio. Nossas ideias e concepções mudaram, mas em cada segunda-feira as aulas de Didática (minha disciplina) aconteciam, sem que eu soubesse como transformá-las.
Eu havia concluído o curso de Mestrado em Educação na PUC/RS em 1979. Certamente tive contato com autores que eu desconhecia e as aulas, principalmente as das professoras Délcia Enricone e Marlene Grillo, procuravam nos municiar de perspectivas inovadoras. Entretanto ainda era forte a base psicologista e instrumental do curso. Minha dissertação foi baseada na epistemologia da ciência moderna, assumindo a neutralidade do conhecimento e sustentada em dados estatísticos como indicadores de verdade. Posso dizer que tive aprendizagens importantes e a convivência com colegas de todo o país imprimiam uma condição de realidade exigente. Mas, se avancei nas lides de pesquisa, vivi contradições dos seus pressupostos com a prática cotidiana.
Na época foi fundada a Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd) e, através de suas reuniões nacionais, fui acompanhando o movimento que reagia ao estatuto da neutralidade imposto às ciências sociais e, por conseguinte, à área da educação. Essa instigação se dava, ao mesmo tempo, em nossa Faculdade. No campo teórico, aprofundamos as teorias de ensino e aprendizagem que tomavam o ser humano com maior complexidade (Piaget, Rogers, Ausubel e outros) e, logo, as teorias da reprodução cunhadas pela sociologia europeia (Althusser, Bourdieu, Baudelet e Passeron), que denunciavam a pseudoneutralidade da educação e da didática prescritiva. Ao mesmo tempo que tiraram de nossas frontes um véu de ingenuidade, nos incluíram, enquanto professores, no sistema de reprodução. Como encontrar alternativas para superar essa condição?
Foi com os aportes do nosso Paulo Freire que fomos vislumbrando possíveis cenários, com impactos importantes na nossa geração. Suas ideias foram um marco na compreensão sobre a relação entre educação e sociedade e sobre as possibilidades de atuar em tempos de contradição. Novas e renovadoras publicações surgiram na área e as grandes reuniões, chamadas Conferências Nacionais de Educação (CBEs), em suas quatro edições, reuniram educadores de todo o país, interessados em ouvir e compreender os aportes de uma base nova para a educação brasileira.
O Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC de São Paulo, pioneiro do pensamento crítico no país, se tornou um terreno fértil para teses de autores que tiveram e ainda têm um grande impacto na educação brasileira. Vale nomear Carlos Roberto Jamil Cury, Acacia Kuenzer, José Carlos Libâneo e tantos outros. A UNICAMP também recebia educadores progressistas, muitos dos quais haviam sido exilados ou proibidos de atuar. Lembro, sem dúvida, de Paulo Freire, Dermeval Saviani, Moacir Gadotti, Joel Martins e Maurício Tragtenberg, entre outros. Tive a honra e a oportunidade de ter sido aluna desses intelectuais nessa época no doutorado em Educação, que iniciei na UNICAMP em 1995.
Meu orientador, o professor Newton Cesar Balzan, foi, sem dúvida, um especial exemplo para mim – já professora universitária há uma década – de como a aula poderia se constituir num espaço de produção de conhecimentos. A literatura falava insistentemente em articular pesquisa e ensino, mas não tínhamos práticas nesse sentido. E foi com o professor Newton que vivi essa experiência que se constituía numa nova didática para ensinar e aprender, relacionando teoria e prática, ensino e pesquisa. Não se instituía um novo procedimento didático somente, se instituía uma mudança epistemológica no ensino. Para tal, o importante é alterar a compreensão de conhecimento, trazendo para o ensino a perspectiva que preside a pesquisa, invertendo, no currículo e na aula a relação teoria-prática para prática-teoria.
Na medida em que a prática é o eixo primeiro da aprendizagem, a aula não se descola do mundo real, favorecendo a compreensão das palavras de Freire, quando defende a educação como ato político. Não há neutralidade no conhecimento e nas relações pedagógicas. Somos seres sociais, produzidos e produtores de culturas. E também o são nossos alunos.
Creio que o professor que parte dessa premissa, será capaz de ressignificar o espaço da escolarização e da aula. E, para tal, pode lançar mão de recursos de qualquer origem, desde que tenham significado para os estudantes. Não há como endeusar ou diabolizar as tecnologias que hoje fazem parte do cotidiano de todas as gerações e convocam a escola a repensar suas rotinas. Mas é preciso compreender que a mudança não está nos recursos e sim nas práticas pedagógicas que assumem a ruptura epistemológica racional, herança da modernidade. Se elas deram respostas para muitos avanços civilizatórios, também contribuíram, até inadvertidamente, para mudanças ambientais que nos convocam hoje a repensar a relação com a natureza. E a cultura escolarizada precisa rever seus rituais que decorrem da visão positivista das ciências.
A democracia brasileira vem sofrendo, nos últimos tempos, ataques advindos de movimentos de extrema direita. Diante desse cenário, aponte os papéis dos docentes e dos discentes universitários na defesa da democracia.
Vivemos em tempos bicudos, como lembrou o poeta gaúcho Mário Quintana. A incapacidade que temos tido de minorar as diferenças sociais, econômicas e culturais tem sido potencializada pelos discursos salvacionistas e sectários. Parece que a humanidade não aprende sobre a importância do equilíbrio social e ambiental. O capitalismo acerbado se torna uma ideologia de consumo e acumulação de riquezas que destrói os sentimentos de solidariedade e justiça. E o mais cruel é ver que essa prática vem sendo sustentada por discursos que se dizem cristãos, aproveitando-se da boa-fé de uma população à procura de esperanças.
A escola, e a escola pública em particular, talvez seja das últimas possibilidades de favorecer um processo emancipatório e provedor de uma consciência coletiva. Não há sociedade democrática sem escola pública. E é por isso que ela vem sendo atacada num contexto autoritário e vem sendo apropriada como espaço significativo para a manutenção de práticas disciplinadoras de corpos e mentes – vide as chamadas escolas militarizadas, escola sem partido ou educação domiciliar. Ora assumem a defesa de um conhecimento neutro, ora, em contradição, requerem um espaço de educação dogmatizado por práticas autoritárias e/ou excludentes.
A defesa da escola – e da escola pública, em especial – não anula o reconhecimento dos limites da educação escolarizada, pois a escola sozinha não faz revoluções e nem dessa forma sustenta a democratização do Estado. O que pode fazer é dar o exemplo de uma instituição democrática em que os educandos vivam o que precisam aprender. E também não silenciar frente às forças de dominação, sejam elas de qualquer natureza.
Dos docentes, precisamos do engajamento nas causas da democracia, por atos e palavras. Um exercício que se manifesta nas práticas de aula, nos processos de ensinagem e de avaliação do vivido. Coerência como procura permanente. Visão humanista como base da relação pedagógica.
Na sua opinião qual deveria ser o papel do Estado na formação do profissional de nível superior?
O Estado, na sociedade democrática, é o responsável pelo equilíbrio da distribuição de bens e riquezas entre o povo. É também provedor de uma convivência pacífica e produtiva entre e para todos. Na sua legitimidade, garantida por eleições livres e universais, tem o poder de propor e regular as relações internas e externas da nação.
Essa condição pressupõe a formação de quadros que, comprometidos com a democracia, envolvam e oportunizem a educação superior de qualidade. As Instituições de Ensino Superior (IES) públicas têm compromisso com os interesses coletivos e, como tal, estão à margem daqueles marcados por questões de interesse do poder econômico, religioso ou político. A liberdade de ação e expressão de seus membros só estão regulados pelas normatizações coletivas, guardados os interesses da população que mantém a instituição.
Como espaço público, independente do lucro e das exigências de auto sustentabilidade, [as IES públicas] preservam a produção e divulgação de conhecimentos que alimentam a cultura e investem na formação de quadros com esse objetivo. Preenchem espaços onde a iniciativa privada é omissa, pela condição de não sustentabilidade e inexistência de retornos financeiros.
O Estado tem responsabilidade sobre a formação de quadros profissionais para a educação básica, preservando a sua permanência e compromisso com a educação integral das crianças e adolescentes. Tem na constituição da cidadania o seu foco por excelência.
Você é referência nacional e internacional na área da educação. Tem nos ensinado imensamente com suas produções científicas e com suas atitudes humanísticas, cidadãs e éticas. Assim, gostaríamos que você deixasse aqui algumas palavras a essa geração de professores e estudantes que possuem um imenso desafio pela frente em prol da manutenção da vida, da democracia e da valorização da educação e da ciência.
Apesar dos cenários, nem sempre estimulantes para a educação em todos os níveis, costumo apelar aos atuais e futuros professores: nunca percam a esperança! Ela faz parte intestina da tarefa do educador. Impossível olhar nos olhos de nossos alunos e dizer que o mundo não tem jeito. Seria a morte do que professamos.
Essa não é uma posição ingênua e com Freire aprendemos a formulá-la. Esperança que não vem de esperar, mas de esperançar, ou seja, de crer e agir para que o mundo seja possível, equilibrado e sustentável.
Amem a profissão que escolheram. Só assim se sentirão plenos nas realizações e desafios. Mantenham-se confiantes no gênero humano e na sua capacidade de regeneração. Não poupem palavras de incentivo, mesmo quando as evidências sejam desencorajadoras. Creiam que um abraço ou um afago podem ter efeitos pedagógicos inimagináveis.
Estejam cientes de suas potencialidades. Tenham interesse pelo saber que os convoca, mas também pela relação desse campo com o mundo e sua sustentabilidade. Estimulem a formação para a cidadania de seus estudantes.
Invistam no trabalho coletivo, nas parcerias profissionais que só enriquecem as visões de mundo e a construção das ciências. Não temam as ações de autocrítica; elas fortalecem nossos acertos. A humildade, ao invés de nos enfraquecer, fortalece nossas convicções.
Lembrem, que ensinamos mais pelo exemplo do que pelas palavras, o que vale para atitudes e para as práticas pedagógicas que realizamos.
E, finalmente, tenham sempre consigo esta convicção: afetos e conhecimentos, quanto mais repartimos, mais acumulamos.
Referências
BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras providências. Revogada pela Lei nº 9.394, de 20.12.1996. Diário Oficial da união , Brasília, DF, 11 de agosto de 1971. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692.htm . Acesso em: 22 nov. 2024.
BRASIL. Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Revogada pela Lei nº 9.394, de 1996, com exceção do artigo 16, alterado pela Lei nº 9.192, de 1995. Diário Oficial da união , Brasília, DF, 11 de agosto de 1971. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5540.htm . Acesso em: 22 nov. 2024.
Maria Isabel da Cunha
Possui graduação em Ciências Sociais e em Pedagogia pela Universidade Católica de Pelotas, mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. É docente colaboradora no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. Atuou como professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. É docente convidada da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. É Pesquisadora Sênior do CNPq.
Maria Antonia Ramos de Azevedo
Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com especialização em Psicopedagogia, mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutora em Pedagogia Universitária pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Foi Vice-Diretora do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista, no período de 2015 a 2019, Campus de Rio Claro, onde é professora na área de Didática. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Pedagogia Universitária (GEPPU/UNESP) certificado no CNPq.
Como citar este documento – ABNT CUNHA, Maria Isabel da; AZEVEDO, Maria Antonia Ramos de. Entrevista com Maria Isabel da Cunha: trajetória pessoal e profissional durante a ditadura militar. Revista Docência do Ensino Superior, Belo Horizonte, v. 14, e052890, p. 1-12, 2024. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52890 . |
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1 Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS, Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4129-7755. E-mail: cunhami@uol.com.br
2 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Rio Claro, SP, Brasil.
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-6215-2902. E-mail: maria.antonia@unesp.br
Recebido em: 30/07/2024 Aprovado em: 08/10/2024 Publicado em: 22/11/2024
3 Texto extraído da Plataforma Lattes. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/0157149133885713. Acesso em: 19/09/2024.
4 Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Médio, fruto de parceria entre o Ministério da Educação e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
5 Antes de 1971, a educação escolar no Brasil era organizada em ensino primário e ensino secundário, composto pelos anos de ginásio e os anos de colégio. A partir da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, instituiu-se o ensino de 1º grau, com duração de oito anos, unindo o ensino primário (quatro anos) e o ginásio (quatro anos). Além disso, criou-se o ensino de 2º grau, obrigatoriamente profissionalizante.
Rev.
Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 14, e052890, 2024