DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52892
SEÇÃO: Democracia e ensino na Universidade: 60 anos após o golpe de 1964
A
resistência do Movimento Estudantil: um momento político e de
formação humana
La
resistencia del Movimiento Estudiantil: un momento político y de
formación humana
The resistance of the Student Movement: a political and human formation moment
Arielly Nogueira Angotti 1
Herbert Glauco de Souza 2
RESUMO
Este trabalho se configura como uma revisão de literatura (Acadêmica; Pádua, 2022) e tem como objetivo analisar o papel de resistência do movimento estudantil universitário durante o período da Ditadura Militar no Brasil. A metodologia empregada envolveu a busca e análise de obras nas principais bases de indexação nacionais, como Periódicos CAPES, Scielo, Banco de Teses e Dissertações da CAPES, além de livros de referência na área da história da educação, entre março e maio de 2024, a partir das palavras-chave: resistência, movimento estudantil, Ditadura Militar e Reforma Universitária. Utiliza-se como eixo analítico o conceito de resistência e suas nuances, abordando os diversos atores sociais que estiveram presentes nesse momento histórico. A revisão de literatura mostrou que os estudantes brasileiros foram um ator social fundamental no processo de luta e afirmação contra o Regime Militar, desempenhando um papel crucial de formação na organização de protestos e na disseminação de ideais democráticos. Nesse movimento, os estudantes se formaram intelectual, moral e politicamente, transcendendo os muros das universidades. O impacto de suas ações como força social repercutiu em toda a sociedade brasileira, contribuindo para a conscientização política e para o fortalecimento dos movimentos sociais que desafiaram e abalaram as estruturas do autoritarismo. A análise demonstrou que a resistência estudantil foi essencial para a redemocratização do Brasil, destacando a importância do engajamento na luta por direitos e justiça social.
Palavras-chave: resistência; movimento estudantil; Ditadura Militar; Reforma Universitária.
RESUMEN
Este trabajo se configura como una revisión de literatura (Acadêmica; Pádua, 2022) y tiene como objetivo analizar el papel de resistencia del movimiento estudiantil universitario durante el período de la Dictadura Militar en Brasil. La metodología empleada involucró la búsqueda y análisis de obras en las principales bases de indexación nacionales, como Periódicos CAPES, Scielo y el Banco de Tesis y Disertaciones de la CAPES, entre marzo y mayo de 2024, utilizando palabras clave como resistencia, Movimiento Estudiantil, Dictadura Militar y Reforma Universitaria. Se utilizó el concepto de resistencia y sus matices como eje analítico, abordando los diversos actores sociales presentes en este momento histórico. La revisión de la literatura mostró que los estudiantes brasileños fueron un actor social fundamental en el proceso de lucha y afirmación contra el Régimen Militar, desempeñando un papel crucial en la organización de protestas y en la difusión de ideales democráticos. En este movimiento, los estudiantes se formaron intelectual, moral y políticamente, trascendiendo los muros de las universidades. El impacto de sus acciones como fuerza social repercutió en toda la sociedad brasileña, contribuyendo a la conciencia política y al fortalecimiento de los movimientos sociales que desafiaron y sacudieron las estructuras del autoritarismo. El análisis demostró que la resistencia estudiantil fue esencial para la redemocratización de Brasil, destacando la importancia del compromiso en la lucha por los derechos y la justicia social.
Palabras clave: resistencia; movimiento estudiantil; Dictadura Militar; Reforma Universitaria.
ABSTRACT
This work is a literature review (Acadêmica; Pádua, 2022) and aims to analyze the role of resistance of the university student movement during the Military Dictatorship period in Brazil. The methodology employed involved searching and analyzing works in major national indexing databases, such as Periódicos CAPES, Scielo, and the CAPES Theses and Dissertations Database, from march to may 2024, using keywords such as resistance, Student Movement, Military Dictatorship, and University Reform. The concept of resistance and its nuances was used as an analytical framework, addressing the various social actors present during this historical moment. The literature review showed that brazilian students were a fundamental social actor in the process of struggle and affirmation against the Military Regime, playing a crucial role in organizing protests and disseminating democratic ideals. Through this movement, students developed intellectually, morally, and politically, transcending university walls. The impact of their actions as a social force reverberated throughout brazilian society, contributing to political awareness and strengthening social movements that challenged and shook the foundations of authoritarianism. The analysis demonstrated that student resistance was essential to Brazil's redemocratization, highlighting the importance of engagement in the struggle for rights and social justice.
Keywords: resistance; student movement; Military Dictatorship; University Reform.
INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade da década de 1960, com a instauração da ditadura a partir do Golpe de 1964, o Brasil enfrentaria um dos períodos mais obscuros de sua história. Em virtude do recrudescimento através da decretação do Ato Institucional 3 (AI) nº 5 (Brasil, 1968), em 13 de dezembro de 1968 – que culminou na cassação dos direitos civis e políticos da população e deu “carta branca” para a perseguição, prisão, julgamento sumário e tortura de opositores ao regime –, o Brasil entraria no momento conhecido como “Anos de Chumbo” 4 (Castro; Soares; D’Araujo, 1994).
Nesse contexto, diversos atores sociais emergem, contrapondo-se ao governo militar e à sua postura política. O movimento estudantil – principalmente universitário – é um deles, e se apresenta com um posicionamento de oposição e denúncia, notadamente uma resistência civil-ideológica. É interessante observar que o AI-5 é contemporâneo da Reforma Universitária, que moderniza o ensino superior brasileiro. Essa mesma universidade reformanda e modernizanda será o lócus por excelência de embates políticos e ideológicos e o húmus de fortalecimento do movimento estudantil.
Porém, é necessário evidenciar que este não é um ator homogêneo e uníssono e nem sempre foi muito organizado. Assim como parcela de seus integrantes e militantes nem sempre defenderam ou foram adeptos de uma resistência civil-ideológica pacífica, alguns se vincularam a outros movimentos que defenderam e se utilizaram da luta armada para combater o regime militar. Importa, e esse é o foco deste trabalho, enfatizar que a incipiente universidade pública foi sim – contraditoriamente ao contexto no qual ela se afirma – local de formação intelectual e política da juventude brasileira e de resistência dos mais importantes nesse triste momento da nossa história recente (Cunha, 1988).
Tendo isso em vista, este trabalho é uma Revisão de Literatura 5 (Acadêmica; Pádua, 2022) cujo objetivo é analisar o papel de resistência do movimento estudantil brasileiro durante o regime militar. Para isso, a metodologia empregada envolveu a busca e seleção de trabalhos acadêmicos e obras de referência na historiografia brasileira sobre o período em questão (1964-1985). Utilizamos as seguintes palavras-chave para prospecção dos trabalhos: resistência, movimento estudantil, Ditadura Militar e Reforma Universitária. Essa busca foi realizada entre março e maio de 2024, nas principais bases de indexação nacionais, como Periódicos CAPES, Scielo e Banco de teses e dissertações da CAPES, além de livros de referência na área da história da educação. Posteriormente, selecionamos, a partir da leitura dos resumos, aqueles que atendiam ao escopo da nossa pesquisa e passamos à sua análise com a leitura integral dos trabalhos, sempre tendo como “fio condutor” o papel social e político do movimento estudantil durante o Regime Militar, instaurado no Brasil a partir do Golpe de 1964.
Nesse sentido, para analisar e discutir a atuação do movimento estudantil universitário brasileiro durante os “Anos de Chumbo”, este trabalho está dividido em três momentos. No primeiro, discutiremos os contextos social, histórico e político mais amplos, nos quais o golpe militar de 1964 acontece, e como a universidade pública brasileira se moderniza durante os anos que se seguiram ao fechamento da sociedade civil e recrudescimento da ditadura. No segundo, abordaremos o conceito de resistência e suas nuances, uma vez que esse conceito será a “lente” de aumento que nos possibilitará ler a atuação do movimento estudantil e como ele se forma. Por fim, discutiremos como esse se formou e atuou, suas estratégias e táticas, além dos usos da memória por parte de seus ex-integrantes como instrumento político de criação de mártires e heróis.
DESCORTINA-SE UM GOLPE MILITAR E UMA UNIVERSIDADE REFORMANDA
Desde os anos 1950, devido à Guerra Fria, o mundo encontrava-se conturbado e marcado pelo conflito bipolar. O sucesso da Revolução Cubana causou preocupação aos Estados Unidos (EUA), que buscou
(...) contrariar a crescente efervescência social – enquadrada em uma gama heterogênea de correntes reformistas ou revolucionárias – e as tendências de alguns de seus governantes em direção ao nacionalismo econômico, fenômenos que os círculos dirigentes norte-americanos atribuíam linearmente à penetração soviética e identificavam com a “infiltração comunista” (Rapoport; Laufer, 2000, p. 70).
Desse modo, os golpes de Estado na América Latina foram apoiados pelos EUA, principalmente o caso brasileiro, tendo em vista que não podiam correr o risco do país mais povoado e economicamente mais importante da América do Sul se tornar uma outra Cuba (Rapoport; Laufer, 2000).
No cenário nacional da década de 1960, é possível observar que o governo de João Goulart não era, de fato, comunista 6 , porém, tinha algumas tendências à esquerda ou mais populares, como por exemplo as chamadas Reformas de Base, que incluíam pautas de reformas agrária, fiscal e educacional (Moreira, 2011). No dia 13 de março de 1964, Jango fez o famoso discurso sobre o tema durante o Comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que gerou uma resposta: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Este movimento aconteceu, primeiramente em São Paulo, e depois se espalhou pelo Brasil, exigindo que Goulart fosse tirado da presidência e que a ameaça comunista fosse controlada.
Ainda nesse mês, ocorreu a Revolta dos Marinheiros, na qual os manifestantes exigiam melhores condições de trabalho e apoiavam as Reformas de Base. Os desdobramentos desses episódios intensificaram a “atmosfera” de descontentamento por parte da parcela social conservadora brasileira e que tinha ressonância também em parcela significativa do oficialato militar, pertencendo a estes últimos a função política de restaurar a ordem no país (Nogueira, 2006).
Em 31 de março de 1964, a “revolução” 7 começou: Olympio Mourão Filho organizou seus soldados e partiu de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, sem a aprovação de seus superiores. Enquanto João Goulart viaja para Brasília e Porto Alegre, nos dias 1º e 2 de abril, em busca de apoio, os militares tiram proveito da situação e afirmam que o presidente havia abandonado o país e que, portanto, o cargo estava vago. A partir de uma Sessão Extraordinária do Congresso Nacional, Ranieri Mazzili, até então presidente da Câmara dos Deputados, é declarado presidente da República, ocupando tal posto durante 15 dias (Ferreira, 2014).
Desse modo, uma junta militar é formada para decidir os próximos passos. O primeiro foi o decreto do AI-1, que serviu como um instrumento legal para a institucionalização do golpe, a partir da determinação de medidas extremas, como a cassação de mandatos políticos e a suspensão de direitos constitucionais. Além disso, foi estabelecido que o novo presidente não seria escolhido pelo povo, mas sim pela votação do Congresso. Assim, o General Castelo Branco é eleito presidente (Bechara; Rodrigues, 2015).
Em 1965, o AI-2 foi implementado com o objetivo de consolidar ainda mais o regime militar e ampliar seu poder. Foi estabelecido que poderiam existir somente dois partidos políticos – ARENA e MDB –, além das eleições indiretas para presidente. Já no ano anterior, a Lei Suplicy de Lacerda (Brasil, 1964) foi aplicada de forma mais efetiva, limitando a autonomia estudantil, visto que
[...] reformulava o funcionamento das entidades estudantis, extinguindo órgãos como a UNE e a UPE. Dessa forma, somente órgãos como os Diretórios Centrais e Estaduais dos Estudantes (DCE’s e DEE’s) eram reconhecidos como legítimos, sendo estes atrelados ao MEC (Silva, 2022, p. 74).
Em 1966, os AIs nº 3 e 4 são decretados, buscando reduzir a influência política da oposição e fortalecer o controle do regime sobre todas as esferas do poder, além de pretender uma reforma na Constituição de 1946. O AI-5, implementado em 13 de dezembro de 1968, instituiu o período conhecido como “Anos de Chumbo”, marcado por uma repressão extrema e pela suspensão dos direitos políticos. Nesse momento, houve o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos políticos, a institucionalização da censura e a proibição da concessão de habeas corpus a acusados de crime contra a segurança nacional. Portanto, a repressão política e ideológica – que já aconteciam, mas se intensificaram – foram respaldadas nele (Bechara; Rodrigues, 2015).
Paralelamente a isso, ao analisar a conjuntura educacional, é necessário abordar alguns momentos importantes sobre essa área para que assim se compreenda o papel do movimento estudantil nesse período histórico. Primeiramente, cabe destacar que, logo no início do golpe, em 1º de abril, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi invadida e incendiada, além de muitos estudantes passarem a ser perseguidos.
Soma-se a isso o fato de que, em 9 de Abril de 1964, a Universidade de Brasília (UnB) foi ocupada pela Polícia Militar de Minas Gerais e do Mato Grosso, que interditaram departamentos, apreenderam livros considerados subversivos e destituíram o reitor e seu vice de seus cargos. Professores e estudantes foram presos, levados para interrogatórios e alguns até mesmo sofreram tortura (Cunha, 1988). O objetivo era claro: eliminar qualquer forma de resistência ao regime militar dentro do ambiente acadêmico.
A
invasão à UnB foi motivada pela desconfiança do regime em relação
à Universidade, devido ao seu projeto inovador de educação
superior. A UnB era vista, também, como um centro de pensamento
crítico e de oposição ao conservadorismo político. Segundo Cunha
(1988, p. 52), a “(...) localização da Universidade de Brasília
e a ousadia de seu projeto, contrariando amplos e fortes interesses
educacionais, burocráticos e ideológicos, explicam a violência que
se abateu sobre ela”.
Ainda em 1965, o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) apresentou um plano para a educação, definindo-a como “capital humano”, a partir de uma orientação economicista. O PAEG propunha a integração das instituições de ensino superior com o setor produtivo, com o objetivo de alinhar o aprendizado às necessidades do mercado e economizar recursos através do treinamento prático. Além disso, acreditava que o funcionamento do ensino superior deveria ser avaliado considerando seus custos e o impacto significativo que tem na diferenciação de rendimentos. Desse modo, a solução seria a implementação do ensino pago nas instituições públicas, por meio de uma contribuição direta ou de bolsas restituíveis.
As pretensões do regime se baseavam em transformar as instituições de ensino superior tradicionais em modernas e incluíam mudanças profundas no sistema educacional, com base no modelo vigente nos EUA. Tal fato é evidenciado no acordo MEC-USAID 8 , que buscava reformar o ensino brasileiro de acordo com os padrões impostos pela política estadunidense (Cunha, 1988).
Além disso, cabe citar outras iniciativas, como a Criação dos Centros de Integração Empresa-Escola e as Extensões Universitárias (os CRUTACs e o Projeto Rondon) 9 , que tinham como premissa a ideia de que o estudante que estivesse ocupado com trabalho não teria tempo para se engajar nos movimentos subversivos. A partir desses programas, o governo buscava “mostrar, também, aos universitários, o quanto o governo militar se interessava pelo povo (...) e difundir entre eles as ideias que servem de base à atividade de extensão universitária” (Cunha, 1988, p. 67), além de ser uma forma de incorporar as populações do interior do país à “comunidade nacional”. Portanto, a “Política Educacional do Governo visava transformar todas as universidades em complemento das empresas capitalistas, em organismos regidos basicamente pelas necessidades imediatas e em longo prazo das empresas” (Cunha, 1988, p. 110-111).
A Reforma Universitária de 1968 10 , modelo importado pela ditadura militar do sistema organizacional das universidades estadunidenses, tinha como base a agenda de desenvolvimento já pretendida desde 1964 e exemplificada com o acordo MEC-USAID. Foi implementada sob a justificativa de transformar, reestruturar e modernizar o ensino superior, alterando não somente a organização administrativa, mas também a estrutura física. O maior escopo era o de exercer forte influência sobre as universidades de forma mais centralizada, reduzindo, assim, a autonomia dessas instituições (Cunha, 1988).
Até o ano de 1968, vigorava no sistema universitário brasileiro o modelo estrutural dividido em cátedras, no qual se atribuía a titularidade de uma disciplina a um professor específico, baseado muito mais em critérios de antiguidade e prestígio acadêmico do que os de notório saber e qualificação na área. Portanto, havia uma estrutura rígida e hierárquica nas universidades, com pouca flexibilidade e renovação do corpo docente (Cunha, 1988).
A partir da reforma, foram introduzidos os departamentos nas instituições públicas de ensino superior, buscando promover a interdisciplinaridade e uma melhor administração dos recursos. Outras mudanças significativas foram: a unificação do vestibular; a junção das faculdades em universidades para melhorar a arrecadação de recursos; a criação do sistema de créditos, que permitia a matrícula por disciplina e uma maior flexibilidade curricular; a nomeação de reitores e diretores; o desenvolvimento do magistério e da pós-graduação, com intuito de fomentar a pesquisa e a formação qualificada; a integração de ensino, pesquisa e extensão, visando uma educação mais completa e conectada com as necessidades da sociedade (Martins, 2009).
Essas medidas visavam não somente modernizar o ensino superior público brasileiro, mas também assegurar um controle mais rígido do governo sobre as universidades. Martins (2009, p. 17) afirma que era um sistema “estruturado nos moldes de empresas educacionais voltadas para a obtenção de lucro econômico e para o rápido atendimento de demandas do mercado educacional”. Portanto, é uma reforma ambígua e contraditória, gerando muitos debates, visto que introduziu avanços significativos, mas, ao mesmo tempo, está inserida em um contexto autoritário.
É nesse cenário mais amplo de repressão, e no mais específico de uma universidade reformanda, que um determinado ator social entrará em cena como um dos principais sujeitos de resistência e crítica ao governo militar: o movimento estudantil (Cunha, 1988).
O CONCEITO DE RESISTÊNCIA E SUAS NUANCES
O Brasil dos anos finais da década 1960, após o Golpe Militar e o AI-5, viveria uma contradição entre um país que se tornava majoritariamente urbano, preparando-se para viver o chamado “Milagre Econômico” e o aumento da repressão, censura e perseguição a todos aqueles que eram vistos como subversivos ao regime. O contexto contraditório de modernização em diversos setores, incluindo o ensino superior, coexistindo com o retrocesso civil e político, ocasionado pela cassação de direitos civis e políticos e pelo condicionamento do uso de instrumentos de garantia, como o habeas corpus , trouxe à tona a insatisfação, revolta e protestos de uma parcela da sociedade brasileira. A partir disso, diversos atores sociais entraram em cena, posicionando-se criticamente diante de um governo ditatorial que sufocava a sociedade civil, através do intermédio de diversas formas de resistência ao regime militar (Netto, 2014).
Só é possível pensar essa forma específica de ação social chamada resistência em contextos de Estados Restritos (Gramsci, 1975), ou seja, sociedades nas quais a sociedade civil é gelatinosa ou inexistente e prepondera a sociedade política ou o momento coercitivo do Estado. Historicamente, nas sociedades de capitalismo avançado, a burguesia desenvolveu formas mais sutis de garantir sua direção sobre a sociedade através da busca e educação do consenso ao seu projeto social, consenso esse que é construído numa sociedade civil organizada.
Porém, no cenário brasileiro pré-golpe, e ainda mais depois de deflagrado em 1964, a sociedade civil incipiente e pouco participativa é sufocada, a arena moderna de embates deixa de existir e as vozes contrárias a um tipo de direção social são forçosamente silenciadas. No lugar de conquistar espaços de força numa sociedade civil organizada através do que Gramsci (1975) chama de Guerra de Posição, os atores sociais contrários à direção tomada pelo Estado brasileiro só poderiam utilizar como estratégia a Guerra de Movimento ou o ataque frontal ao Estado ditatorial (Gramsci, 1975).
Esse ataque frontal foi lançado de diversas formas, seja utilizando-se de violência e atentados, seja por intermédio de manifestações pacíficas como passeatas: é nessa conjuntura que os estudantes alçarão suas vozes. Mas no que consiste especificamente o conceito de resistência? Nesse sentido, para tentar compreendê-lo, Napolitano (2017) afirma que resistência é uma ação política empreendida por diversos atores sociais numa conjuntura de Estados repressores e ditatoriais, contextos esses caracterizados pela ausência de uma sociedade civil organizada, já que seu pressuposto – direitos civis e políticos consolidados – deixa de existir.
Portanto, o que diferencia a resistência de outras ações políticas é justamente a especificidade do contexto no qual ela acontece, já que é esse último que a condiciona como forma de ação. Diante da impossibilidade de embates e diálogos na “arena” moderna de construção política que é a sociedade civil organizada, movimentos sociais e outros atores buscaram maneiras e canais para que seus protestos e reivindicações pudessem ser ouvidos.
As resistências nem sempre se configuraram e se concretizaram exclusivamente pela luta frontal e direta, a partir da resistência civil-armada, como a Guerrilha do Araguaia (1967 - 1974). Elas também se apresentaram de outras formas, configurando-se como resistência civil-ideológica: a Passeata dos Cem Mil e outros movimentos com a atuação de artistas, que utilizando da arte como canal de protesto levaram à sociedade sua mensagem política (Napolitano, 2017).
Como Motta (2016) ressalta, há também diversos casos de “acomodação” – bastante presente no ambiente universitário –, na qual os opositores buscavam estratégias para conviver com o sistema e, ao mesmo tempo, reduzir os efeitos da repressão. Era um jogo de mão dupla: assim como os agentes sociais exploravam essas “brechas” do regime, o Estado também utilizava desse instrumento, atraindo seus contrários e controlando-os mais de perto. “Graças à estratégia de acomodação, as iniciativas repressivas às vezes foram suavizadas por meios indiretos, subterfúgios, negociações, arranjos, protelação burocrática” (Motta, 2016, p. 17).
Por conseguinte, pode-se sintetizar que, no que compete a uma resistência que se encontrava mais na linha de frente, essa se deu através de duas ações políticas: a civil-organizada (aderida pela maior parte das organizações) e a civil-armada, como o PCdoB, o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Ainda que a historiografia coloque em questão se a luta armada pode ser considerada uma resistência democrática, é inegável o seu papel na desconstrução do regime militar e, por isso, deve ser citada neste trabalho. Porém, embora tenha se dado a partir das duas ações, é importante destacar que a resistência teve diversas nuances, já que cada ator social tinha suas especificidades e se organizava de acordo com seus ideais. Nesse sentido, apresentaremos cada uma dessas “famílias políticas” (Napolitano, 2017) que estavam presentes no contexto da Ditadura Militar no Brasil e de alguma forma empreenderam resistências ao regime instaurado.
Os partidos e grupos políticos caracterizam a primeira dessas famílias, sejam eles de esquerda ou liberais: os comunistas, com destaque para o PCB e o PCdoB, tinham diversas vertentes e divergências; já os liberais incluíam desde os democráticos até os mais moderados e conservadores.
A segunda é a Igreja Católica, que foi extremamente ambígua, pois ainda que como instituição não tenha apoiado diretamente o golpe, muitos membros do alto clero concordavam com o novo governo, em nome do anticomunismo e da tradição conservadora. Em contrapartida, diversos católicos aderiram à resistência, principalmente a partir dos movimentos sociais de bairro, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), e tiveram um papel fundamental no fortalecimento dos movimentos populares.
Pode-se citar, também, as entidades profissionais que passaram a participar somente em meados dos anos 70, mas que incluíam os intelectuais acadêmicos, os jornalistas e os advogados: a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Cabe destacar o papel extremamente contraditório, porém central, da imprensa: embora tenha ajudado a construir o governo e auxiliado no processo de conspiração contra Jango, foi fundamental para a deslegitimação do regime, tendo em vista seu alcance na população.
Além disso, os movimentos sindicais e operários também foram peça central na resistência, além dos artísticos e culturais. Por fim, há um dos mais proeminentes atores no processo de crítica contra a ditadura militar: o Movimento Estudantil. Desde o primeiro dia em que o novo regime havia se instaurado até a redemocratização do país, em meio à censura e à violência, esse grupo esteve resistindo e denunciando os crimes cometidos pelo governo, de forma extremamente complexa e heterogênea (Cunha, 1988). O foco deste trabalho recairá sobre o Movimento Estudantil e sua ação política de resistência num contexto ambíguo de modernização da universidade pública brasileira e de retrocesso social e político em que o Brasil se encontrava após o Golpe Militar de 1964.
O MOVIMENTO ESTUDANTIL COMO PROTAGONISTA SOCIAL
Desde a instauração do regime militar, houve uma busca por mecanismos de neutralizar os setores mais progressistas, portanto, encaravam a universidade como uma peça-chave para o desenvolvimento de seus planos, por considerá-la um espaço de infiltração comunista e de ideias subversivas. Assim, a “Operação Limpeza” 11 teve seu início e, progressivamente, houve intervenções no setor educacional. Em contrapartida, o movimento estudantil marcou presença desde o primeiro momento, resistindo intensamente.
Após a ocupação da sede central da UNE, diversos líderes estudantis foram neutralizados e a organização da resistência foi afetada. Com a Lei Suplicy, a UNE foi substituída pelo Diretório Nacional dos Estudantes, buscando um maior controle dos estudantes e de seu caráter crítico-ideológico. Entretanto,
[...] essa violência física, administrativa e simbólica exercida pelo governo sobre os estudantes universitários não fez mais do que acentuar e acelerar o processo de politização da juventude universitária. Após a fase mais dura e intensa da Operação Limpeza e após o choque inicial da mesma, os alunos gradualmente recuperaram a sua capacidade operacional, os líderes de esquerda assumiram o seu papel como tal nas principais organizações, incluindo UNE, e estas retomaram a sua atividade acadêmica, política e social (Huerta, 2018, p. 55).
A universidade pública brasileira foi o lócus por excelência de embate ideológico, confronto político e de formação humana. Não só os locais de representação estudantil no interior das instituições ou as salas de aula nas quais se travavam discussões politizadas e, à medida do possível, críticas com os professores, mas, sobretudo, a universidade como um “espírito” de liberdade que ultrapassaria suas fronteiras e se irradiaria por toda a sociedade brasileira.
No caso específico da UNE, apesar do caráter clandestino, esta continuou a atuar e realizou dois Congressos Nacionais, em 1966 e 1967, em oposição à Lei Suplicy de 1964. É interessante observar que o discurso progressista foi se ligando cada vez mais a um caráter social e político e com maior compromisso com as causas operária e agrícola, o que foi evidente nesses dois eventos. Nos primeiros três anos de regime militar, havia uma relativa liberdade de protesto e as manifestações estavam se intensificando, fazendo com que outros intervenientes sociais aderissem à luta estudantil. Contudo, ainda assim, a repressão se fazia presente, sendo comprovada no Massacre da Praia Vermelha, ocorrido em 23 de setembro de 1966, no Rio de Janeiro, evento no qual os estudantes reivindicavam o fim da violência policial e o não pagamento de taxas nas universidades públicas (Huerta, 2018).
Huerta (2018) divide as principais motivações dos protestos estudantis em dois grupos:
As do primeiro referem-se a assuntos estritamente educativos, particularmente à questão universitária: o caráter público e gratuito da escola, a necessidade de dotar o bacharelato de um perfil profissional, o estilo e a orientação “fascista” do sistema educativo, a alfabetização do povo, os acordos MEC-Usaid, a Lei Suplicy, o problema dos “Excedentes”, as iniciativas legislativas encaminhadas para a privatização do sistema universitário e o estabelecimento de mensalidades aos estudantes, e as detenções de alunos e docentes universitários, assim como a perseguição e tortura de alguns dirigentes estudantis. As do segundo grupo fizeram referência a espaços públicos, políticos e culturais mais amplos: os direitos humanos, o regresso às garantias constitucionais prévias ao golpe de estado, a questão operária e agrícola, a política econômica do governo, a lei da greve, a revogação dos A-I, a promulgação de uma lei de amnistia, as liberdades de associação e filiação política e sindical, as eleições diretas, a guerra do Vietnam e a postura do Brasil a esse respeito, e a igualdade e solidariedade internacional (Huerta, 2018, p. 55).
Em 1967, a repressão militar começa a caminhar em direção a sua intensificação. A Lei Suplicy é revogada graças às mobilizações, porém, é substituída pelo Decreto Aragão (Brasil, 1967), que enrijeceu ainda mais o controle das atividades estudantis. Em dezembro, foi realizada a Comissão Especial Meira Mattos, e a partir disso entrou em vigor a Lei nº 5540, de 28 de novembro de 1968 (Brasil, 1968), a Lei da Reforma Universitária, que respondia às exigências dos militares e dos setores universitários liberais e moderados. Desse modo, além dos impactos na estrutura do ensino superior brasileiro, o movimento estudantil foi, em grande parte, socialmente deslegitimado e politicamente neutralizado.
Em 28 de março de 1968, houve uma mobilização no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, motivada pela paralisação de obras no local, em que houve invasão policial, gerando o ferimento de estudantes e a morte de Edson Luís. Esse fato se tornou um marco na história do Brasil e foi muito bem utilizado pelo movimento estudantil 12 .
O estudante secundarista de 17 anos não era um militante engajado na luta contra o regime militar, porém, após a tragédia, foi transformado em um ícone da resistência. A repercussão foi amplificada pela ampla cobertura jornalística, possibilitando uma divulgação massiva da repressão militar e desencadeando o “Efeito Calabouço”: uma série de protestos com o apoio de diversos setores da sociedade foram realizados por todo o país, com dura repressão, mortes e muitos feridos. O ápice das manifestações foi em 26 de junho, com a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro (Huerta, 2018).
Em outubro desse mesmo ano, a UNE realizou o XXX Congresso Nacional, em Ibiúna (SP), visando definir os próximos passos da luta estudantil. Entretanto, o evento contou com uma grande desorganização: faltaram alimentos e veículos de imprensa cobriram o evento, o que chamou atenção das autoridades 13 . O resultado foi a prisão de mais de 900 estudantes (Netto, 2014).
No dia 13 de dezembro de 1968, o AI-5 é decretado e 4 dias depois, houve uma tentativa em continuar o evento reprimido ocorrido em Ibiúna. Disfarçado de churrasco, o comício ocorreu em Curitiba, em um sítio conhecido como Chácara do Alemão. Contudo, os estudantes não sabiam que estavam sendo monitorados pelas forças de segurança, fazendo com que não houvesse tempo para reação: dos 42 jovens presos, 15 foram condenados (Silva, 2022).
Devido ao decreto do Ato Institucional, os estudantes não tinham mais o direito de habeas corpus e se encontraram no pior momento da resistência estudantil. Nesse sentido, havia três alternativas para eles: o exílio, o engajamento na luta armada ou a acomodação. Portanto, os protestos e manifestações passaram a ser raros e, quando aconteciam, a repressão era intensa (Silva, 2022).
Em 16 de março de 1973, Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia da Universidade de São Paulo (USP) e militante da ALN, foi preso e assassinado pelo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) 14 . Sobre o acontecimento, há diversas contradições e dúvidas, mas o que se sabe é que as autoridades o consideravam um subversivo e, portanto, havia justificativa para a morte.
Houve uma rápida movimentação feita pelos estudantes da USP, que apesar de suas divergências políticas, uniram-se para denunciar a violência militar. Os integrantes dos Centros Acadêmicos agiram estrategicamente e lançaram um manifesto que ressaltava qualidades do colega, dizendo como ele era um estudante exemplar, dedicado e um bom amigo, buscando contradizer o que o regime argumentava. Já cinco anos depois, com o fortalecimento do movimento estudantil, essa imagem de inocência foi substituída por características de um militante, guerreiro, solidário e consciente. Essa realocação de sentido significativo também acontece com a figura de Edson Luís, que passou a ser visto como o “defensor da democracia” (Langland, 2006 apud Müller, 2011).
Em seguida, os estudantes organizaram uma missa em homenagem a Alexandre, o que se constituiu como uma estratégia excelente para a luta desse ator social, porque:
[...] foi um modo encontrado para externar uma realidade que poderia ser exposta através de um sentido religioso. Em meio à fragilidade da situação, o campo religioso poderia ser o local para o encontro de proteção, consolo e ação (Müller, 2011, p. 172).
A realização da missa, em 30 de março, constituiu-se como uma arma de denúncia e foi uma maneira de passar pela censura, indo além do espaço da universidade. Os estudantes estavam cercados de apoio e mostraram ter força: a OAB, a ABI, o MDB e a Arquidiocese aderiram à causa. Foi a primeira grande manifestação pública desde o início dos “Anos de Chumbo”: contou com a presença de um número aproximado de 5 mil pessoas. Como resposta, as autoridades se estabeleceram no local com um enorme aparato militar e filmaram os presentes. Nesse contexto, é criado um calendário político do movimento estudantil em oposição às comemorações cívicas da “revolução de 64”. Portanto, a missa e outras formas utilizadas pelos estudantes são canais de subterfúgio para driblar os mecanismos de perseguição e, ao mesmo tempo, manter viva a mensagem de indignação e crítica ao regime vigente no Brasil (Müller, 2011).
Paralelamente a isso, no mesmo ano, houve o “desaparecimento” 15 de Honestino Guimarães, estudante de Geologia da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da UNE, durante sua quarta prisão. O atestado de óbito do líder estudantil foi entregue aos pais somente em 1996 e estava incompleto, não contendo a causa da morte. A figura de Guimarães também foi utilizada para dar força ao movimento, a partir da instrumentalização de sua figura como o “presidente eterno” da UNE (Müller, 2011).
Portanto, o uso político do passado feito pelo movimento estudantil, através de uma construção do imaginário coletivo, reforçou a necessidade da resistência contra a ditadura militar e alimentou a esperança da redemocratização. Com a ênfase no martírio de estudantes vítimas da repressão, esse ator social aumentou seu alcance, conseguindo a adesão de outros grupos por meio do sentimento de compaixão e empatia de indivíduos que não faziam parte da resistência (Müller, 2011).
Nessa realocação de sentido, as vítimas passam a ser vistas como modelos de militância e personalidades que deram suas vidas em nome do movimento, além de se tornarem uma causa para a luta. É necessário destacar que essa instrumentalização não significa oportunismo, uma manipulação maligna ou um plano perverso, mas sim uma forma de legitimar a resistência, causando comoção em toda a sociedade (Müller, 2011).
[...] a morte ligada à violência e ao sacrifício patriótico constitui elemento privilegiado para sua instrumentalização política, que a transforma em evento carregado de forte conotação simbólica por parte dos que dela se apropriam, chegando mesmo a transcendê-la mediante a reelaboração das características dos personagens por parte daqueles que delas se utilizam (Müller, 2011, p. 169).
A politização do movimento estudantil brasileiro não se deu exclusivamente entre os muros das instituições ou em suas salas de aula. As estratégias desenvolvidas e as táticas não convencionais de protesto e de luta não só transcenderam os espaços universitários, como foram, por excelência, desenvolvidas e aprendidas no próprio devir do movimento político brasileiro nas ruas, durante os “Anos de Chumbo”: o aprendizado se deu no espaço público, na clandestinidade e nos lugares de encontro mais insólitos.
Como ator social emergente, o movimento estudantil universitário foi contemporâneo à Reforma Universitária que modernizou o ensino superior no Brasil e, concomitantemente, assumiria o protagonismo da ação política de resistência, formando-se intelectual, moral e politicamente entre cacetadas, torturas e perseguições. Mas o obstáculo ostensivo do regime militar sempre foi vivido dualmente pelo movimento estudantil: como repressão e como estímulo para transpô-lo e vencê-lo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O período da Ditadura Militar no Brasil foi marcado por ambiguidades sociais, políticas e econômicas. Esse contexto contraditório de modernização – por um lado, econômica e do ensino superior, e por outro, de retrocesso civil e político – serviu de pano de fundo para o surgimento e a intensificação da resistência por parte de diversos segmentos da sociedade. A revisão de literatura realizada revelou como essas formas de resistência (enquanto ação política) foram realizadas por diversos atores sociais contrários ao regime. Resistências essas que têm em comum o fato de se caracterizarem como ataque frontal ou confronto aberto contra o Estado Restrito (Gramsci, 1975), ou seja, um Estado no qual prepondera a sociedade política ou o momento coercitivo.
Partindo desse pressuposto, neste trabalho o conceito de resistência foi explorado através de suas nuances, sem se restringir à luta armada, visto que se manifestou de diversas outras formas, como as passeatas pacíficas e a atuação de artistas. Desse modo, a pluralidade de estratégias adotadas pelos diferentes atores sociais e suas formas de resistência evidencia a complexidade não só do regime militar, mas também do processo de resistência e sua capacidade de adaptação às circunstâncias. Dentre esses atores, este trabalho enfatizou o papel do movimento estudantil, sobretudo universitário, na luta contra o status quo e seu protagonismo na busca pela redemocratização da sociedade brasileira.
Os estudantes foram atores sociais essenciais na luta contra a repressão, enfrentando a violência do Estado e mobilizando a sociedade em torno de suas demandas. Apesar das divergências internas, esse grupo utilizou táticas eficientes que sustentaram o processo de redemocratização, impulsionando a adesão de integrantes de outros grupos sociais e a deslegitimação do regime. Portanto, é inegável a contribuição do uso político do passado e da memória das vítimas da repressão, tendo em vista o fortalecimento da resistência e a mobilização do apoio popular. Fatos e episódios foram reconstruídos para que uma instrumentalização política desses pudesse municiar a ação política dos estudantes contra o regime militar. Portanto, este trabalho ensaiou uma análise multifacetada da resistência à Ditadura Militar no Brasil, abordando sua complexidade e diversidade de atores e estratégias, evidenciando o impacto do movimento estudantil na trajetória rumo à redemocratização.
REFERÊNCIAS
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Arielly Nogueira Angotti
Graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto.
Herbert Glauco de Souza
Doutor em Educação pela UFMG. Professor Substituto do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto.
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Como citar este documento – ABNT ANGOTTI, Arielly Nogueira; SOUZA, Herbert Glauco de. A resistência do Movimento Estudantil: um momento político e de formação humana. Revista Docência do Ensino Superior , Belo Horizonte, v. 14, e052892, p. 1-19, 2024. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2024.52892. |
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1 Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-6422-6236. E-mail: arielly.n.angotti@gmail.com
2 Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4943-5019. E-mail: herbert.souza@yahoo.com.br
Recebido em: 11/06/2024 Aprovado em: 22/11/2024 Publicado em: 31/12/2024
3 Os Atos Institucionais foram decretos que ampliaram os poderes do governo, legalizando cassações, censura e repressão.
4 É denominado de tal forma por ser o período mais repressivo da ditadura militar, de 1968 a 1974, marcado por censura, tortura e perseguição de opositores ao regime após o AI-5.
5 “ A Revisão de Literatura consiste na identificação do que já se conhece sobre o tema/problema que se quer investigar, ou como já definimos anteriormente, o ‘estado da arte’ em determinada área do conhecimento, tendo como foco tanto aspectos teóricos quanto metodológicos ou da prática profissional, encontrados em estudos anteriores sobre o tema/problema em questão ” (Acadêmica; Pádua, 2022, p.55).
6 Goulart “não era um revolucionário” e “estava longe de ser o protótipo de um esquerdista radical” (Campos, 1994, p. 547 apud Rapoport e Laufer, 2000, p. 73).
7 Editoriais da época utilizam expressões como “revolução”, “gloriosa”, “vitoriosa” e “salvadora” (Forattini, 2019). Atualmente, também é possível observar esse uso por grupos da “nova direita”, que buscam legitimar o golpe a partir de um negacionismo histórico. Portanto, a maneira como se nomeia esse período histórico demonstra uma batalha pela memória sobre a ditadura militar e seus responsáveis ( Do Couto Neto , 2019).
8 O acordo feito entre o Ministério da Educação do Brasil e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional foi negociado secretamente e se tornou público somente em novembro de 1966.
9 A criação do CIE-Es era uma tentativa de aproximar os conhecimentos teóricos dos estudantes com a prática das empresas em que os estagiários podiam receber bolsas. A Extensão Universitária se manifestava na ideia de que a universidade deveria colocar seus recursos em função da comunidade, sendo bem caracterizada por dois empreendimentos: o Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária (CRUTAC), no qual os estudantes da área biomédica treinavam em hospitais, e o Projeto Rondon – com lema “integrar para não entregar” (a Amazônia) – , que eram expedições para desenvolverem atividades assistenciais no interior do país, instalando unidades militares para marcar a presença do Estado nesses locais.
10 Instituída pelo Decreto-Lei nº 464, de 11 de março de 1969, mas suas diretrizes já eram discutidas e implementadas desde 1968.
11 Foram mecanismos para neutralizar, a partir da censura e de violências, os setores mais progressistas e a todos aqueles que discordavam das ações do regime militar (Netto, 2014).
12 Samantha Quadrat (2023) analisa o trajeto de visita guiada no Rio de Janeiro, que narra a tragédia do Calabouço, argumentando sobre os usos políticos da morte de Edson Luís pelo movimento estudantil, em busca de legitimar o processo de resistência.
13 Segundo João Júnior, uma das lideranças da PUCPR, houve uma indiscrição por parte dos estudantes. Após perceberem que não tinha comida suficiente, alguns integrantes da organização foram comprar mais e a quantidade chamou a atenção dos comerciantes, que ligaram para a polícia. Além disso, segundo Júnior, “algumas lideranças estudantis haviam recebido dinheiro de alguns veículos de imprensa para que estes pudessem cobrir o evento, o que mostrava uma contradição entre preservar a imagem e o desejo de publicidade” (Silva, 2022, p. 11).
14 Unidade de repressão focada em identificar e reprimir opositores políticos através de vigilância, prisões e tortura.
15 Não se tratou de um sumiço comum, mas sim de uma ação possivelmente deliberada do regime, já que opositores eram sequestrados e mortos sem explicação oficial.
Rev.
Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 14, e052892, 2024