VOLUME 14

2024

ISSN: 2237-5864


Atribuição CC BY 4.0 Internacional

Acesso Livre


DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2025.55124

SEÇÃO: ARTIGOS

Estratégias para o ensino de filosofia na graduação médica: reflexões e propostas pedagógicas

Shape1

Estrategias para la enseñanza de la filosofía en la graduación médica: reflexiones y propuestas pedagógicas

Shape2

Strategies for teaching philosophy in medical undergraduate education: reflections and pedagogical proposals


Marcos Vinícius Domingues Borba1, Carlos Euclides Marques2,

Alexandre de Araújo Pereira3

RESUMO

O pensamento médico contemporâneo é pautado pela cientificidade que, embora fundamental, não abarca muitas das sutilezas, dúvidas e ambiguidades da prática clínica. A educação filosófica na graduação médica, ainda pouco explorada na literatura especializada, pode contribuir nesse aspecto. Este trabalho visa construir uma proposta pedagógica de ensino de filosofia na graduação médica, a partir dos seus principais campos: ontologia, epistemologia e ética. Utilizou-se a metodologia de desenho curricular em seis etapas, com foco nas quatro primeiras: avaliação de necessidades gerais, avaliação de necessidades específicas, estabelecimento de metas e objetivos e proposição de estratégias educacionais. A proposta foi embasada por fontes primárias (entrevistas com docentes) e secundárias (revisão de literatura). As entrevistas foram submetidas a uma análise de conteúdo temática. As necessidades gerais do currículo incluem o ensino multidisciplinar, centrado no aluno, baseado em problemas, ocorrendo em sala de aula e no ambiente de prática e permeando todo o currículo. As necessidades específicas consistem na promoção de uma formação crítica livre de preconceito epistêmico, no uso de estratégias atrativas de ensino, na capacitação docente e no reconhecimento das oportunidades de aprendizagem dos cenários de prática. As metas e objetivos do currículo são mensuráveis e se basearam nos achados das etapas anteriores. As estratégias educacionais descrevem uma disciplina curricular, um modelo de sessões didáticas em cenário prático e uma proposta de formação longitudinal.

Palavras-chave: educação médica; ensino superior; currículo; filosofia da medicina.

RESUMEN

El pensamiento médico contemporáneo se guía por la cientificidad que, aunque fundamental, no abarca muchas de las sutilezas, dudas y ambigüedades de la práctica clínica. La educación filosófica en la graduación médica, aún poco explorada en la literatura especializada, puede contribuir en este aspecto. Este trabajo tiene como objetivo construir una propuesta pedagógica para la enseñanza de filosofía en la graduación médica, a partir de sus principales campos: ontología, epistemología y ética. Se utilizó la metodología de diseño curricular en seis etapas, con enfoque en las cuatro primeras: evaluación de necesidades generales, evaluación de necesidades específicas, establecimiento de metas y objetivos, y propuesta de estrategias educativas. La propuesta se basó en fuentes primarias (entrevistas con docentes) y secundarias (revisión de literatura). Las entrevistas fueron sometidas a un análisis de contenido temático. Las necesidades generales del currículo incluyen la enseñanza multidisciplinar, centrada en el estudiante, basada en problemas, que ocurre en el aula y en el entorno práctico, y que permea todo el currículo. Las necesidades específicas consisten en promover una formación crítica libre de prejuicios epistémicos, en el uso de estrategias de enseñanza atractivas, en la capacitación docente y en el reconocimiento de las oportunidades de aprendizaje en los escenarios prácticos. Las metas y objetivos del currículo son medibles y se basaron en los hallazgos de las etapas anteriores. Las estrategias educativas descritas incluyen una disciplina curricular, un modelo de sesiones didácticas en escenarios prácticos y una propuesta de formación longitudinal.

Palabras clave: educación médica; enseñanza superior; currículo; filosofía de la medicina.

ABSTRACT

Contemporary medical thought is guided by scientific rigor, which, although fundamental, does not encompass many of the subtleties, doubts, and ambiguities of clinical practice. Philosophical education in medical undergraduate programs, still underexplored in specialized literature, can contribute in this regard. This study aims to develop a pedagogical proposal for teaching philosophy in medical undergraduate programs, focusing on its main fields: ontology, epistemology, and ethics. A six-step curriculum design methodology was employed, with emphasis on the first four steps: assessment of general needs, assessment of specific needs, establishment of goals and objectives, and proposal of educational strategies. The proposal was grounded in primary sources (interviews with professors) and secondary sources (literature review). The interviews were subjected to thematic content analysis. The general needs of the curriculum include multidisciplinary, student-centered, problem-based teaching, occurring in both classroom and practical settings, and permeating the entire curriculum. Specific needs consist of promoting critical education free from epistemic bias, using engaging teaching strategies, faculty training, and recognizing learning opportunities in practical scenarios. The curriculum's goals and objectives are measurable and were based on the findings from previous stages. The described educational strategies include a curricular course, a model for didactic sessions in practical settings, and a proposal for longitudinal training.

Keywords: medical education; higher education; curriculum; philosophy of medicine.

INTRODUÇÃO

O pensamento médico contemporâneo, sobretudo a partir do estabelecimento da medicina baseada em evidências (MBE) como paradigma, é marcado pela ênfase na cientificidade (Ghinea, 2020). Porém, tem-se apontado que uma abordagem estritamente científica é incapaz de capturar aqueles aspectos do mundo real que não podem ser pesados ou medidos (Zalewski, 1999). Os fatos empíricos tampouco são respostas definitivas; eles servem apenas como base para a tomada de decisão, cabendo aos médicos atuarem como críticos, intérpretes e juízes nesse processo (Ghinea, 2020). Ao se pretender ancorar a prática médica em solo estritamente empírico, criam-se lacunas e inconsistências, e a falta de formação filosófica deixa os médicos mais vulneráveis a essas inconsistências (Spike, 1991). O ensino de filosofia aparece como uma possível contribuição para a melhoria da formação humanística dos novos médicos, além de ajudar no entendimento crítico dos aspectos científicos da medicina (Zalewski, 1999).

Segundo Reiss e Ankeny (2022), a filosofia da medicina é um campo relativamente consolidado que busca explorar questões acerca da teoria, pesquisa e prática das ciências de saúde, particularmente em tópicos de epistemologia e metafísica (aqui sinônimo de ontologia). A epistemologia possui dois sentidos interligados: teoria do conhecimento e filosofia da ciência (Abbagnano, 2012, p. 392). Já a ontologia/metafísica é a “doutrina do ser e das suas formas” (Ibidem, p. 848). No âmbito da filosofia da medicina, questões epistemológicas incluem, por exemplo, a natureza do saber médico e os fundamentos da MBE. Por outro lado, questões ontológicas envolvem temas como a definição de saúde e doença, bem como a experiência subjetiva do adoecimento. Reiss e Ankeny (2022) destacam que muitas das questões da filosofia da medicina também envolvem valores e dilemas éticos, embora a bioética seja frequentemente considerada um campo à parte. Os manuais de bioética frequentemente dedicam capítulos ou seções inteiras à discussão de bases filosóficas, como ocorre em Beauchamp e Childress (2019). Dessa forma, é possível afirmar que grande parte das questões relevantes para a filosofia aplicada à medicina situa-se nos domínios da ontologia, epistemologia e ética.

As propostas curriculares de ensino de filosofia na graduação médica ainda são escassas na literatura. Kopelman (1995) trata da questão e aponta uma lista de tópicos, sugerindo que essas questões sejam utilizadas no desenvolvimento de competências e habilidades, como a avaliação de pressupostos, ampliação de perspectivas, autoconhecimento, pensamento crítico, combate ao dogmatismo e empatia. O autor aborda as questões a partir de casos-problema, sugere bibliografia básica, mas não propõe claramente uma metodologia de ensino.

Rudnick (2004) apresentou a experiência de um curso introdutório de filosofia da medicina para graduandos na Universidade de Tel Aviv. O foco do curso foram tópicos de ontologia e epistemologia. Não foi exigido conhecimento prévio dos alunos. A avaliação final do curso foi baseada na produção de um artigo filosófico. O formato do curso foi de aulas tradicionais, havendo indicação de leitura prévia. Ao final do curso, a maioria dos alunos conseguiu escrever um artigo bem avaliado, no entanto, a satisfação dos estudantes com o curso foi baixa.

Ayres et al. (2013) apresentaram a experiência de uma disciplina de humanidades médicas – história, filosofia, sociologia, antropologia e psicologia – ministrada no primeiro ano do curso de medicina da Universidade de São Paulo, composta por aulas tradicionais para grande grupo seguidas por atividade em pequenos grupos envolvendo metodologias ativas. O módulo de filosofia tratou de temas ontológicos, epistemológicos e éticos aplicados a problemas da prática médica. Houve boa aceitação e aproveitamento dos alunos, destacando-se os momentos de uso de metodologias ativas.

Goldie (2000) apresentou uma revisão com recomendações gerais para o ensino de ética na graduação médica no Reino Unido. O currículo proposto é centrado no estudante, baseado em problemas, longitudinal e adaptável aos diferentes ambientes de prática. As estratégias de ensino propostas vão das aulas tradicionais às estratégias ativas. O autor aponta que a avaliação do estudante deve ter foco nas dimensões cognitivas e atitudinais.

A melhor abordagem para o ensino de filosofia na graduação médica ainda não foi estabelecida e os modelos existentes apresentam limitações significativas. Kopelman (1995) não explora as metodologias de ensino que possam integrar efetivamente a filosofia ao currículo. Rudnick (2004) propõe um curso abrangente, mas sua estrutura conteudista, baseada em aulas expositivas, demonstrou ser pouco engajadora para os estudantes. Goldie (2000), por sua vez, foca na bioética aplicada, prescindindo de uma fundamentação filosófica mais sólida. Já a disciplina descrita por Ayres et al. (2013), embora ampla em seu escopo, integra a filosofia como apenas um componente dentre vários, o que pode comprometer o aprofundamento.

O objetivo geral deste trabalho é desenvolver uma proposta pedagógica para o ensino de filosofia aplicada à medicina, com foco em ontologia, epistemologia e ética, no contexto da graduação médica. Como objetivos específicos, buscaremos: (i) identificar e caracterizar as necessidades gerais (modelo curricular) e específicas (fatores condicionantes da implementação) para a construção de um currículo de filosofia voltado ao contexto proposto; (ii) definir metas e objetivos de aprendizagem claros, mensuráveis e alinhados às demandas da formação médica; e (iii) propor estratégias de ensino eficazes e atrativas para a abordagem de conteúdos selecionados.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo exploratório. O estudo foi realizado respeitando-se a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2013). O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, CAAE: 66098922.6.0000.5143, parecer número 6.062.177.

Desenho curricular em seis etapas

Este estudo adotou a abordagem de desenho curricular em seis etapas, proposta por Thomas et al. (2016)4. Conforme os autores, as etapas são: (i) avaliação de necessidades gerais: caracterização de um modelo curricular que possa suprir as lacunas entre a abordagem atual e a ideal da questão estudada; (ii) avaliação de necessidades específicas: caracterização do ambiente de aprendizagem, da população-alvo e das barreiras e oportunidades de ensino; (iii) definição de metas e objetivos: sendo as metas os descritores amplos do currículo e os objetivos, os ganhos específicos e mensuráveis; (iv) seleção de estratégias educacionais: conteúdo programático e abordagens propostas; (v) implementação e (vi) avaliação e feedback. As etapas de implementação e avaliação serão realizadas em uma fase posterior do projeto. A abordagem de Thomas et al. (2016) pode ser particularmente útil para temas pouco explorados na literatura, pois as etapas iniciais demandam a reunião de novas informações por meio de uma abordagem exploratória, garantindo uma proposta pedagógica bem embasada, ancorada também em dados empíricos. Para a fase exploratória (etapas i e ii), este estudo utilizou dados provenientes de fontes primárias (entrevistas com docentes) e secundárias (revisão da literatura). Os resultados obtidos serviram como norte para a definição de metas e objetivos (etapa iii) e para a seleção de estratégias educacionais (etapa iv). Essas etapas foram desenvolvidas por meio de discussões detalhadas entre os autores, considerando também suas experiências individuais.

Entrevistas

Foram adotados modelos de entrevista individual, em dupla (Morgan et al., 2013) e em mini grupos focais (Menary et al., 2021). As entrevistas realizadas neste estudo seguiram um modelo semiestruturado (Minayo, 2014) e os indivíduos entrevistados foram selecionados por amostragem deliberada (Turato, 2003). Foram incluídos docentes brasileiros de graduação médica, oriundos de diferentes instituições e que manifestam interesse pela discussão filosófica. Foram excluídos docentes que não preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou que não se apresentaram na data da entrevista. Os indivíduos selecionados para participação foram convidados por mensagem eletrônica e as entrevistas ocorreram por videochamada. Os entrevistados foram inquiridos sobre: (i) o estado atual da educação filosófica para estudantes de medicina; (ii) as abordagens ideais; e (iii) as oportunidades e barreiras encontradas nos ambientes de aprendizagem. Os dados obtidos nas entrevistas foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo do tipo temática (Bardin, 2018)5 e sintetizados como os tópicos principais da avaliação de necessidades gerais e avaliação de necessidades específicas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram entrevistados 18 docentes, oriundos de 8 instituições distintas, por meio de 11 entrevistas, sendo 2 mini grupos focais com 5 e 4 participantes cada, 2 entrevistas em dupla e 7 entrevistas individuais. A distribuição etária dos entrevistados foi de 28 a 75 anos, tendo mediana de 39,5 anos. Houve predomínio de docentes com idade inferior a 60 anos (n = 14; 77,7 %). Foram entrevistadas 5 mulheres e 13 homens, o que pode ser explicado pelo tipo de amostragem não randômica. A quase totalidade dos docentes entrevistados foi de médicos (n = 17; 94,4 %). Em relação à titulação acadêmica, a maioria possuía pós-graduação stricto sensu ou lato sensu (n = 15; 83,3 %). A formação dos docentes em filosofia foi, em primeiro lugar, autodidata (n = 14; 77,7 %), seguida por cursos livres (n = 3, 16,7 %) e pós-graduação (n = 1, 5,6 %). Isso encontra paralelo com a situação da educação filosófica brasileira, em que apenas 21,2 % dos docentes de filosofia da educação básica possuem graduação na área (Gontijo, 2017).

Avaliação de necessidades gerais

Sintetizamos a avaliação de necessidades gerais no Quadro 1. É preciso que o ensino seja centrado no estudante. Gallo (2012) ressalta que o movimento da criação de conceitos filosóficos só pode ser feito se o aluno for sensibilizado pelo problema motivador. Dessa forma, não basta que o professor indique ao aluno um problema a ser estudado, mas que o aluno sinta na pele o dilema: “mas, aí, o que você [aluno] vai fazer mesmo com o cara [paciente] na sua frente?” (P12)6.

Quadro 1 – Avaliação de necessidades gerais.

Direção do ensino

Ensino orientado pelo aluno e para o aluno.

Metodologia de ensino

Priorizar as discussões baseadas em problemas e instrumentalizadas por teoria pertinente.

Conteúdo

Estimular discussões multidisciplinares, adaptáveis ao nível dos alunos.

Ambientes

Otimizar o uso da sala de aula e propor estratégias de discussão no ambiente prático.

Inserção curricular

Propor disciplinas oficiais e estratégias para integração da discussão filosófica em outras disciplinas e momentos do percurso educacional.

Fonte: elaborado pelos autores, 2024.

O uso de metodologias ativas é recomendado: “TBL... eu acho que TBL seria muito bom” (P15); “tem que ser uma dinâmica muito interativa” (P06); “nessa disciplina baseada em grupo seria... baseado em problema mesmo, né?” (P16). As discussões contemporâneas corroboram o uso de metodologias ativas no ensino de filosofia: o aprendizado focado no aluno, o professor como mediador do processo, a integração de conteúdos e a utilização de conhecimentos prévios em contextos reais (Vila; Farias Junior, 2020). O processo de aprendizagem da filosofia traz a particularidade de se confundir com o fazer filosófico: “O movimento do filosofar é o mesmo movimento do aprender, a contínua passagem de um não saber ao saber” (Gallo, 2012, p. 48). Não há aprendizado de filosofia sem o filosofar concomitante.

O intercâmbio entre diferentes áreas do conhecimento se mostra benéfico: “Se todo médico tivesse a oportunidade de ter um contato com outra área do conhecimento, de uma maneira sólida, qualquer que seja ela, ele vai criar outras associações e vai permitir ver a coisa de maneira diferente” (P09). Essa multidisciplinaridade enriquece a reflexão filosófica, tornando-a mais rica e complexa (Gallo, 2012). No entanto, é preciso lembrar que os alunos partem de pontos diferentes: “eu vejo alunos que conseguem aprofundar um pouco mais nesse conceito [...] e outros alunos que simplesmente não se interessam” (P18); “Algumas pessoas usam mais esses recursos [estabelecimento de correlações], outras usam menos, mas acho que pode ser considerado como um norte” (P01). Recomenda-se, portanto, que o nível da discussão seja adaptável às particularidades dos alunos, conforme o conceito de Vygotsky (2007) da zona de desenvolvimento proximal (ZDP). A ZDP, situada entre o que o aluno já domina e o que ele pode alcançar com apoio, deve ser o foco das ações pedagógicas.

Quanto ao ambiente, pratica-se mais frequentemente o ensino de filosofia em ambiente de sala de aula. É desejável que isso se estenda também ao ambiente de prática: “Ter um momento que seja… talvez não pode ser todos os dias, toda semana, mas criar uma estratégia daquilo que seja possível dentro da formação na prática, para que existam esses momentos de discussão mais aprofundados” (P05).

A respeito da inserção curricular, é sugerida a longitudinalização do ensino, não se restringindo a uma só disciplina: “currículo em espiral mesmo” (P18), “isso tem que começar lá no início” (P16) e “pegando um pouquinho de cada ponto do curso” (P15). A possível solução para a questão está numa reestruturação curricular que não leve apenas à introdução de disciplinas, mas à valorização de uma forma de pensar filosófica, possível de permear todo o currículo.

Avaliação de necessidades específicas

A avaliação de necessidades específicas encontra-se sintetizada no Quadro 2. O ambiente de aprendizagem foi caracterizado pelo tecnocentrismo, que “é a expectativa de que essa medicina altamente tecnológica vai te garantir certezas” (P04); pelo preconceito contra as formas de saber consideradas não científicas, que “acaba ignorando um pouco a parte tanto da experiência pessoal quanto das outras formas de saber” (P03); pela educação bancária (Freire, 1987), “onde a cultura do pensamento não é exatamente aquilo que é privilegiado” (P10); e pelo ensino mercantilizado (Wood Junior; Trivelli, 2022), praticado por “escolas que, cada vez mais, veem nos cursos de medicina um ótimo negócio” (P04). É necessário adaptar o ambiente a uma união construtiva da teoria e da prática, visando a uma formação crítica e de qualidade.

Quadro 2 – Avaliação de necessidades específicas.

Categoria

Necessidades específicas

Ambiente de aprendizagem

Adaptar o ambiente a uma união construtiva da teoria e da prática visando a uma formação crítica, priorizando a qualidade do ensino, fomentando o combate ao tecnocentrismo e ao preconceito epistêmico.

População alvo

Reconhecer as particularidades da geração, promovendo um ensino baseado em metodologias atrativas e eficazes, valorizando a bagagem prévia do estudante como ponto de partida para o aprofundamento teórico e buscando sua maturação cognitiva e afetiva.

Barreiras a serem superadas

Capacitar os docentes para o ensino de uma filosofia aplicada à medicina com aprofundamento adequado à população alvo, levando-se em conta os princípios da andragogia com foco na educação de adultos jovens.

Fatores oportunizadores

Reconhecer as oportunidades de aprendizagem presentes na prática diária, utilizá-las como fatores de estímulo ao desenvolvimento reflexivo e formar estudantes interessados e multiplicadores do conhecimento.

Fonte: elaborado pelos autores, 2024.

A respeito dos alunos, encontramos dois posicionamentos complementares: (i) alunos desmotivados, especialmente diante de abordagens não atrativas – “Uma aula expositiva, tradicional, eu acho que aí ele não vai ter motivação” (P06); e (ii) alunos dispostos a aprender, seja por predisposição individual – "aqueles que têm mais essa vocação [para a discussão filosófica]” (P04) – ou por adesão diante de uma metodologia atrativa – “Eu acho que pode ser bem recebido, dependendo do modo como você trabalha. [...] Porque, hoje, atrair aluno é uma coisa difícil” (P02). Os estudantes de graduação parecem desinteressados no ensino tradicional (Marques, 2017). A experiência do curso de filosofia da medicina relatada por Rudnick (2004) corrobora essa hipótese. Alguns estudos mostraram moderados escores de motivação em estudantes de medicina em escolas com metodologia de aprendizagem baseada em problemas (ABP) (Azevedo et al., 2019; Cadête Filho; Peixoto; Moura, 2021), ou diante de métodos multimídia (Gobbi, 2021). É preciso adaptar o ensino às particularidades geracionais.

As principais barreiras a serem superadas são a superficialidade das discussões atuais e a falta de capacitação dos docentes médicos para o ensino de filosofia: “a gente não tá preparado, nem um pouquinho, pra passar isso adequadamente pros nossos alunos e pra conseguir fomentar essa parte toda” (P18). Os docentes devem ser treinados para o ensino de uma filosofia aplicada à medicina, com aprofundamento adequado à população alvo, levando-se em conta os princípios da andragogia com foco na educação de adultos jovens.

Mostra-se fundamental a atenção do docente às oportunidades de aprendizagem presentes na prática diária: “o paciente te coloca em situações difíceis com muita facilidade. Te coloca o seu desconhecimento, o seu abismo, a sua impropriedade com as coisas, toda hora, todo dia” (P12). Essas situações podem ser usadas para desfiar os esquemas cognitivos do aluno, ainda insuficientes para a solução do dilema, estimulando o desenvolvimento (Corrêa, 2017).

Objetivos de aprendizagem

Os objetivos de aprendizagem do curso serão apresentados como três metas – objetivos gerais – nomeadas de M1 a M3 e quatro a cinco objetivos específicos para cada meta, nomeados de OE1 a OE5, apresentados no Quadro 3.

Quadro 3 – Objetivos de aprendizagem.

METAS (OBJETIVOS GERAIS)

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

M1: Valorizar os princípios do raciocínio ontológico no enriquecimento da compreensão de elementos da prática clínica

OE1: Reconhecer a existência de diferentes níveis de apreensão do ser e a possibilidade de erro ou ilusão.

OE2: Julgar o uso de sistemas categoriais na classificação de entidades clínicas.

OE3: Reconhecer a subjetividade como fator mediador do conhecimento do mundo, da caracterização das doenças e da avaliação clínica.

OE4: Reconhecer o médico e o paciente enquanto seres dotados de particularidades, sujeitos a determinantes externos, passíveis de falhas e capazes de buscar conjuntamente a superação de limitações.

OE5: Comparar diferentes definições de saúde-doença, bem como as bases teórico-argumentativas utilizadas para forjá-las.

M2: Compreender princípios da epistemologia pertinentes a uma prática médica crítica e não discriminatória

OE1: Relacionar os tipos de conhecimento (religioso, artístico, filosófico, científico e senso comum) ao seu papel na construção da visão de mundo do paciente.

OE2: Comparar diferentes teorias de definição da ciência (falsificacionismo, teoria das revoluções científicas, anarquismo epistemológico, por exemplo).

OE3: Identificar as limitações do conhecimento científico e as dificuldades de sua aplicação na clínica (a incerteza, a complexidade, a extrapolação de resultados).

OE4: Reconhecer o papel do médico como agente educador para o fortalecimento do lugar do paciente como sujeito do saber e para o combate da injustiça epistêmica.

M3: Apreciar os princípios da teoria ética como fundamentação para a compreensão e o repensar da ação

OE1: Identificar o papel das virtudes para o agir ético dentro da prática médica.

OE2: Comparar propostas teleológicas e deontológicas na resolução de um problema ético.

OE3: Construir uma proposta prescritiva para a solução de um dilema ético.

OE4: Reconhecer o papel do diálogo entre as partes no encontro de uma saída ética para um dilema.

Fonte: elaborado pelos autores, 2024.

As metas representam objetivos amplos, cada uma delas relacionada com uma das grandes áreas da filosofia aplicáveis à medicina: ontologia, epistemologia e ética. Os objetivos específicos tratam de pontos considerados fundamentais em cada uma das áreas: que sejam relevantes, dialoguem de algum modo com a prática médica, abarquem os principais pontos levantados pelos docentes ao longo das entrevistas ou que estejam expressos de forma relevante na literatura.

M1 e a ontologia: a primeira meta representa a intenção de apresentar ao aluno um raciocínio ontológico que questione a natureza daquilo que se conhece. Para o OE1, esperamos que o aluno entenda as limitações dos sentidos para conhecer o mundo, sendo a razão necessária à tentativa de apreender a natureza das coisas – “A gente tinha que trabalhar os ‘desconceitos’, a quebra de definições” (P02). O OE2 exigirá o reconhecimento dos princípios dos sistemas categoriais, como o aristotélico, e o entendimento dos prós e contras de utilizá-los para caracterizar um ente – “os pacientes não chegam nunca encaixadinhos naquele processo [de categorização]” (P02). O OE3 depende do aprendizado de princípios de concepções ontológicas contemporâneas, com foco na subjetividade como fator mediador do conhecimento das coisas – “a mensagem que a gente passa com a educação médica hoje é que os dados objetivos e numéricos são mais importantes do que os dados subjetivos experimentados pelo paciente” (P02). O OE4 é resultado de um exercício de reconhecimento de si enquanto ser, médico/a, que interage com outro ser, paciente, em busca de objetivos comuns – “Ele [um psicanalista] falava que a relação médico-paciente não existia, porque não podia ter relação se um não entendia o outro enquanto sujeito” (P12). O OE5 implica uma das mais importantes reflexões ontológicas em medicina, que é acerca das definições de saúde e doença, suas sutilezas e complexidades – “para a gente não criar aí uma legião de pessoas com diagnósticos e hipermedicalizar” (P02).

M2 e a epistemologia: essa meta intenciona uma introdução à visão crítica acerca da ciência e outras formas de conhecimento. É uma resposta ao tecnocentrismo acrítico: “esse teocientificismo, essa relação religiosa com a ciência” (P12). Para atingir o OE1, o estudante precisa compreender que há uma pluralidade de modos de conhecimento e que cada um deles tem seu papel dentro da construção da visão de mundo do sujeito: “outros conhecimentos que, às vezes, ainda não estão tão bem estudados ou que, às vezes, nem serão estudados” (P03). O OE2 já depende da capacidade de comparar diferentes teorias de demarcação da ciência, além de compreender a fundamentação e o rigor próprio do método científico (Alves, 2015). Para atingir o OE3, o estudante, já familiarizado com o modo de construção da ciência, deve apontar também inconsistências, o que indica aquisição de uma capacidade de crítica – “esse crescimento da MBE é ótimo, no geral, mas tem seus pontos cegos” (P03). Por fim, o OE4 dependerá do entendimento do conhecimento como instrumento de poder, cabendo ao médico aplicá-lo em prol do empoderamento do paciente: “o médico, hoje, se tornou um sujeito instrumentalizado, a meu ver, entendeu? Instrumento desse biopoder, de tirar do corpo o máximo possível” (P12).

M3 e a ética: a última meta busca apresentar a ética com o sentido de saber prático, dotado de um fim, não mera teoria – “deveria ser um assunto, digamos, superado. Até isso é problema pra quem vive no dia a dia do hospital [...] Pessoas com falta de noção grosseira de ética mesmo” (P14). O OE1 dependerá do estudo de um sistema ético baseado em virtudes e de sua aplicação ao contexto da prática médica. Para o OE2, espera-se o conhecimento de sistemas éticos distintos, a comparação de aplicabilidade e a capacidade de argumentação acerca das vantagens e desvantagens de cada um deles diante do mesmo contexto prático. OE1 e OE2 trabalham bases filosóficas fundamentais da bioética (Beauchamp; Childress, 2019). O OE3 exige a capacidade de construir uma lei ou prescrição ética diante de um contexto específico, pautada nos conhecimentos e habilidades adquiridos até então – “na hora que a gente começa a ver uma lei e busca a aplicabilidade dela no cotidiano, é que a gente começa a refletir em cima disso” (P05). Para o OE4, deve-se compreender uma proposta ética pautada no diálogo, importante na decisão compartilhada ou nas deliberações coletivas (Melo, 2005).

Realizaram-se discussões entre os autores para delinear as estratégias educacionais que, além de atender às metas e objetivos estabelecidos no passo 3, também contemplassem as necessidades identificadas nos passos 1 e 2. Constatou-se que uma única estratégia não seria suficiente para abranger todas as necessidades levantadas, o que demandou a elaboração de um conjunto de estratégias complementares, descritas a seguir.

Estratégias educacionais: disciplina curricular introdutória

O conteúdo programático para uma disciplina curricular de iniciação à filosofia encontra-se sumarizado no Quadro 4. Cada aula parte de um problema motivador a ser discutido entre os alunos, sob orientação do professor. É importante que o docente tenha a liberdade de selecionar a modalidade de apresentação de problema que melhor se encaixe no próprio contexto de ensino, seja por meio de recursos audiovisuais, textos, relatos, obras de arte, role play, júri simulado etc. Como suporte teórico à discussão, o docente deve indicar duas ou três leituras pertinentes ao tema e compatíveis com o nível de compreensão dos alunos.

Quadro 4 – Conteúdo programático para uma disciplina de iniciação à filosofia.

Problema 1: As coisas são o que parecem ser? (M1 – OE1)

Conteúdos e conceitos

Cenário: mudança de perspectiva causada pelo estudo da medicina: de uma visão simplificada da aparência para uma visão mais aprofundada.

Exemplo: a “loucura” que passa a ser entendida como doença com manifestações específicas, após estudo da Psiquiatria.

Questões: podemos conhecer as coisas de fato apenas pela observação? Estamos suscetíveis a ilusões? Podemos nos aproximar de uma essência das coisas?

- Conhecimento sensível e inteligível;

- Conhecimento e ilusão;

- Busca filosófica pelo saber;

- Platão (1997): alegoria da caverna.

Problema 2: Como podemos começar a conhecer e definir algo? (M1 – OE2)

Conteúdos e conceitos

Cenário: caracterização de uma doença específica por meio de categorias (etiologia, topografia, temporalidade etc).

Exemplo: infarto agudo do miocárdio.

Questões: por que uma doença pode ter manifestações tão diferentes e ainda ser a mesma doença? Como podemos classificar e caracterizar essa doença? Quais características são necessárias? Quais podem variar?

- Ato e potência; causas;

- Necessidade e contingência;

- Categorias diagnósticas (pela filosofia da medicina).

Problema 3: Como conhecer o que não se pode ver, pesar ou medir? (M1 – OE3)

Conteúdos e conceitos

Cenário: caracterização de um sintoma essencialmente por meio do relato particular do paciente.

Exemplo: delírio.

Questões: a subjetividade pode ser mais importante do que a objetividade? É possível ter conhecimento objetivo da realidade subjetiva? É necessário?

- Subjetividade e objetividade;

- Númeno e fenômeno;

- Fenomenologia (introdução).

Problema 4: Médicos e pacientes são feitos da mesma coisa? (M1 – OE4)

Conteúdos e conceitos

Cenário: encontro clínico e subjetividades confrontadas.

Exemplo: o médico ateu atende um sacerdote doente.

Questões: o que os aproxima enquanto seres? O que os diferencia? O que podem conseguir juntos?

- Fenomenologia e existencialismo;

- O ser no mundo;

- Existência; essência; responsabilidade.

Problema 5: O que é saúde? O que é doença? (M1 – OE5)

Conteúdos e conceitos

Cenário: a reação de um paciente ao receber diagnóstico de uma doença crônica assintomática.

Exemplo: diabetes mellitus.

Questões: ele não sente nada, por que está doente? Após o diagnóstico de uma doença incurável, ele nunca mais terá saúde? O que é saúde, então? O que é doença?

- Saúde e doença segundo a filosofia da medicina;

- Conceitos multiculturais de saúde e doença.

Problema 6: A ciência é pau para toda obra? (M2 – OE1)

Conteúdos e conceitos

Cenário: situações em que diversos tipos de conhecimento são necessários e para as quais não há resposta científica.

Exemplos: a existência de Deus; a escolha das tintas para uma pintura; a saída para um dilema moral.

Questões: o quanto esses tipos de conhecimento influenciam na vida do paciente? A ciência é superior ao senso comum? Como a ciência pode ajudar a melhorar uma vida que, até então, se pautou em outros saberes?

- Tipos de conhecimento (científico, senso comum, religioso, filosófico, artístico);

- O papel de cada um deles na vida do indivíduo.

Problema 7: O que é a ciência afinal? (M2 – OE2)

Conteúdos e conceitos

Cenário: discussão da delimitação do que é a ciência e como ela opera.

Exemplo: um paciente procurando terapias pseudocientíficas.

Questões: o que é ciência? Qual é a sustentação lógica da ciência? Como ocorrem as novas descobertas? Existe um modo específico de funcionamento da ciência?

- Teorias de demarcação da ciência (falsificacionismo; teoria dos paradigmas etc).

Problema 8: A ciência vai funcionar agora? (M2 – OE3)

Conteúdos e conceitos

Cenário: aplicabilidade do uso de resultados de grandes estudos para tratar um paciente específico.

Exemplo: escolha de um anti-hipertensivo X para um paciente.

Questões: qual é a sustentação lógica dos resultados desse estudo? Há garantias de que usar esse tratamento trará benefício? Os resultados se aplicam ao meu paciente?

- Sustentação teórica dos estudos empíricos;

- Qualidade de evidência;

- Extrapolação de resultado.

Problema 9: Eles informam mal ou nós não ouvimos bem? (M2 – OE4)

Conteúdos e conceitos

Cenário: descrédito dado às informações fornecidas por um paciente por viés discriminatório.

Exemplos: paciente analfabeta, tachada de poliqueixosa, se apresenta com quadro de dor abdominal aguda (apendicite).

Questões: estamos preparados para entrevistar o paciente sem viés discriminatório? Os pacientes com baixo nível de educação formal informam mal? Qual o papel do médico diante desse contexto?

- Fricker (2007): injustiça epistêmica;

- Relações de poder na atenção à saúde;

- Educação em saúde;

- Medicina narrativa.

Problema 10: O que é necessário para ser um bom médico? (M3 – OE1)

Conteúdos e conceitos

Cenário: dilema ético que depende do julgamento e bom senso.

Exemplo: a definição por interromper esforços terapêuticos após terceira parada cardíaca de um paciente grave no CTI.

Questões: o que é preciso para decidir bem? Quais são as virtudes de um médico ético? Basta ter virtudes para agir eticamente? É possível desenvolver a ética?

- Diferentes visões filosóficas sobre virtudes;

- Bioética principialista e suas contraposições.

Problema 11: Saúde não tem preço ou saúde para todos? (M3 – OE2)

Conteúdos e conceitos

Cenário: conflito de valores e princípios.

Exemplo: gastar recursos para prolongar uma vida tratando doença rara versus tratar muitos pacientes com doença cardiovascular.

Questões: a preservação da vida é um princípio absoluto? É melhor tentar beneficiar um maior número de pessoas? Em situações de recursos limitados, como se deve proceder?

- Éticas deontológicas;

- Imperativo categórico;

- Éticas utilitaristas;

- Princípio da utilidade.

Problema 12: De onde vêm as regras? (M3 – OE3)

Conteúdos e conceitos

Cenário: situação polêmica atual.

Exemplo: publicidade médica nas redes sociais.

Questões: como seria a criação de um novo artigo para o código de ética a respeito desse problema específico? Quais os princípios/conceitos éticos subjacentes?

- Revisão geral;

- Código de ética médica.

Problema 13: Há uma ética que agrada a todos? (M3 – OE4)

Conteúdos e conceitos

Cenário: decisão compartilhada com possíveis conflitos de interesses entre as partes.

Exemplo: médico pressionado a prescrever tratamento padrão e familiares exigindo tratamento experimental não coberto pelo plano.

Questões: é possível uma decisão ética diante de interesses conflitantes? O que é necessário para uma deliberação justa?

- A ética nos processos deliberativos.


Fonte: elaborado pelos autores, 2024.

Sugerimos que a disciplina seja ministrada em pequenos grupos, pelo método da ABP, com encontro de problematização, momento de estudos individuais e encontro de resolução do problema. Podem ser realizadas adaptações para o ensino da filosofia (Figura 1).

Figura 1 – ABP modificada para o ensino de filosofia.

Fonte: elaborada pelos autores, 2024.

A primeira adaptação foi a transformação do Passo 1 da ABP tradicional no Passo 6 da ABP modificada. A razão foi que o problema em si deve conter raros termos técnicos desconhecidos ao aluno, sendo essa etapa mais bem aproveitada após a fase de estudos individuais, quando o estudante se depara com os termos filosóficos de fato, os quais precisam ser bem compreendidos dentro do contexto do autor e da obra em questão. A segunda modificação enfatiza que a chuva de ideias deve dar atenção especial aos argumentos dos alunos, condição ao exercício do filosofar. Por fim, o Passo 7 torna-se o momento de elaboração de uma síntese conceitual.

Adaptações curriculares: sessões didáticas em cenário prático

Para possibilitar a inserção da discussão filosófica também nos internatos, sugerimos um modelo de sessões didáticas periódicas. O docente, em conjunto com um grupo de alunos, deve escolher um caso atendido que suscite questionamentos filosóficos. Os assuntos serão abordados oportunisticamente, mas dada a frequência dos dilemas e nuances da prática clínica, é possível que o docente atento trabalhe questões variadas ao longo das sessões. Após selecionado o caso, o docente orientará o grupo acerca das perspectivas filosóficas de abordagem do tema. O grupo apresentará o caso na sessão, expondo os questionamentos levantados, a perspectiva filosófica estudada e as correlações realizadas. Após a apresentação, a plateia poderá compartilhar experiências, ideias e reflexões.

Longitudinalização curricular: uma abordagem possível

A inserção longitudinal de temas filosóficos no currículo é desafiadora. Sugerimos uma combinação de três estratégias:

Sobre a inserção de temas transversais em outras disciplinas, não se trata de substituir o conteúdo por filosofia, mas refinar a discussão já pertencente às diversas disciplinas. Esses temas são pertinentes tanto às ciências básicas quanto às ciências clínicas, por exemplo:

O maior esforço necessário será para a capacitação do docente de conduzir essas discussões. Sendo temas aplicados, é de se esperar que os docentes se interessem por essa capacitação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta aqui apresentada abordou os aspectos mais importantes do desenho curricular. Apresentamos uma avaliação de necessidades baseada em dados qualitativos triangulados com revisão da literatura. Não foram entrevistados estudantes nessa etapa do projeto, o que deve ser feito nas fases de implementação e avaliação do currículo. Os objetivos de aprendizagem descritos são claros e factíveis. Eles carregam uma visão introdutória sobre ontologia, epistemologia e ética e suas possíveis aplicações no pensar médico. O caminho que escolhemos objetiva habilitar o estudante a enfrentar a literatura específica da filosofia da medicina, por vezes bastante espinhosa para os iniciantes. As estratégias educacionais escolhidas estão em consonância com as tendências educacionais contemporâneas, buscando um processo de ensino-aprendizagem ativo. Por fim, sugerimos sucintamente estratégias longitudinais para inserção de temas filosóficos ao longo de uma graduação médica. Trata-se de uma ideia inicial que precisa ser explorada com mais rigor diante de uma tentativa de implementação da proposta. Nossa proposta é mais detalhada do que aquelas que encontramos na literatura até o momento, mas ainda é preciso que seja testada, o que permitirá seu aperfeiçoamento.

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Marcos Vinícius Domingues Borba

Mestre em Ensino em Saúde pela Universidade Professor Edson Antônio Velano (Unifenas, Belo Horizonte). Especialista em Clínica Médica pelo Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg). Bacharel em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Médico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

marcosvdb@gmail.com

Carlos Euclides Marques

Mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel e licenciado em Filosofia pela UFSC. Bacharel em Artes Plásticas pela UFSC. Ex-professor do curso de Filosofia da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).

hybris@hotmail.com

Alexandre de Araújo Pereira

Doutor em Patologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Educação Médica pela Escuela Nacional de Salud Publica de Cuba (ENSAP). Especialista em Psiquiatria pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Médico pela UFMG.

alexandre.pereira@unifenas.br





Como citar este documento – ABNT

BORBA, Marcos Vinícius Domingues; MARQUES, Carlos Euclides; PEREIRA, Alexandre de Araújo. Estratégias para o ensino de filosofia na graduação médica: reflexões e propostas pedagógicas. Revista Docência do Ensino Superior, Belo Horizonte, v. 15, e055124, p. 1-21, 2025. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2025.55124.

1 Unimed Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG, Brasil.

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-6761-5654. E-mail: marcosvdb@gmail.com

2 Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Tubarão, SC, Brasil.

ORCID ID: https://orcid.org/0009-0001-2325-5554. E-mail: hybris@hotmail.com

3 Universidade Professor Edson Antônio Velano (Unifenas), Belo Horizonte, MG, Brasil.

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-4166-9312. E-mail: alexandre.pereira@unifenas.br


Recebido em: 10/10/2024 Aprovado em: 17/03/2025 Publicado em: 17/04/2025

4 Este método de elaboração de currículos é frequentemente referido na literatura como Kern’s six-step approach. Foi extensivamente utilizado em todo o mundo na construção de propostas pedagógicas para a área da saúde. Conta com 468 citações no Scopus no momento da redação deste artigo.

5 A análise de conteúdo descrita por Bardin (2018) é dividida em pré-análise, exploração do material e interpretação dos dados. O material analisado consistiu no conjunto transcrito das entrevistas, importado para o software de análise de conteúdo ATLAS.ti (ATLAS.TI SCIENTIFIC SOFTWARE DEVELOPMENT GMBH, 2023). A exploração do material se deu pela codificação em temas e subtemas, os quais foram agrupados em categorias. A interpretação dos dados se deu pelo polo do conteúdo manifesto da mensagem. O resultado da análise compõe uma síntese das necessidades gerais e específicas do currículo. Todo o material transcrito das entrevistas, os roteiros de entrevista, as listas de códigos e categorias, as frequências de ocorrências e exemplos de citações, os relatórios auto gerados pelo software de análise, bem como a caracterização sociodemográfica dos participantes, encontram-se disponíveis para consulta no repositório de dados (Borba, 2024): https://doi.org/10.7910/DVN/7RKO7N.

6 As falas dos participantes aqui citadas estão referenciadas como “P”, seguido por um número de 01 a 18. P12 refere-se ao participante 12 da pesquisa.

Rev. Docência Ens. Sup., Belo Horizonte, v. 15, e055124, 2025 11