Trabalho & Educação | v.29 | n.1 | p.171-180 | jan-abr | 2020
universidade e escreve que nunca conseguimos entender essa instituição, sem percebermos
que sempre esteve vinculada a uma certa concepção do ser humano, seja contribuindo para
o engrandecimento do cristianismo; ou após as reformas iluministas a serviço do
desenvolvimento econômico, ou socioeconômico, quando muito. A questão que se coloca
hoje é se com mudanças tão acentuadas ainda cabe falar em paradigma econômico e social,
se vale a pena continuar pensar na formação de pessoas para aumentar a produtividade e
competitividade dos grandes grupos – mesmo buscando humanizar e criar condições para
que a competitividade ocorra no âmbito de um conjunto de valores humanistas. A questão
do 4.0 acentua uma lógica quantitativa e um tanto gerencialista que eu, mesmo não a
recusando liminarmente, vejo com desconfiança. Se observarmos os critérios utilizados para
avaliar as universidades, nos rankings internacionais mais reconhecidos, temos números de
publicações, patentes – e estamos falando de patentes com valor tecnológico, gerando
empregabilidade dos diplomados, moradores da região em que a universidade está.
Sabemos que é preciso criar riqueza, que as universidades não podem estar dissociadas
desse esforço. O desafio que se coloca, e fui buscar esta ideia, primeiro às reflexões da
Escola de Frankfurt, depois porque atravessa todo o pensamento de Paulo Freire e, mais
recentemente, porque a reencontrei nos escritos entusiasmantes de um filósofo francês que
continua escrevendo muito bem, Luc Ferry
e que desde o livro Homo Aestheticus - A
Invenção do Gosto na Era Democrática, retoma a necessidade de continuarmos a procura
de uma nova ética com o belo como orientação central. A frase que melhor traduz todo este
movimento, normalmente atribuída a Walter Benjamim e com que eu terminei a minha
palestra em São Paulo, pode enunciar-se assim: “o belo é difícil, mas é o único caminho”. E,
então, depois do homo christianus, do homo economicus (e socialis) e homo digitalis, talvez
a ideia de homo aestheticus seja capaz de articular as preocupações mais recentes, com os
desafios de natureza mais cultural, como escreveu Alain Touraine
, construindo um mundo
progressivamente impregnado de maior boniteza, pela recusa, sem tibiezas, de todas as
formas de injustiça, descriminação, guerra, pobreza…
Entrevistadores: Seu conceito do trabalho na era pós-industrial traz à cena o que vivemos
hoje.
Joaquim Luís Medeiros Alcoforado: Pensando na indústria 4.0 e antecipando a 5.0 (já
circulam textos sobre ela), diríamos que as pessoas mais preparadas seriam as da era digital
que não só consigam lidar com os desafios que ela nos coloca, mas que consigam
desenvolver a capacidade e formas de ação tendentes a influenciar o essencial das ideias
que a atravessam. A universidade tem de criar condições para preparar os discentes para
essa era digital e para a economia e a cultura digitalizadas, em que o novo espaço de vida é
também, inevitavelmente, formativo: o ciberespaço. Sabemos que o ensino só é superior
porque garante aos seus alunos a aprendizagem do que de mais atualizado existe nas
diferentes áreas de saber. Para além disso, teremos de buscar algo que, quer em termos
pessoais, quer nas diferentes comunidades de pertença, nos envolva na procura de objetivos
comuns de progressivo bem-estar. Essa ideia se inspira na referida frase de Walter Benjamin,
e nos contributos também já referidos de Luc Ferry quando distingue entre o gosto e o belo.
Nascido em 1951, estudou na Universidade de Paris e em Heildelberg. Doutor em Ciência Política, foi
ministro da Educação, de 2002 a 2004. Publicou nada menos que 24 livros, alguns em formato transmídia.
Entre eles, destacam-se “A Nova Ordem Ecológica”, de 1992, com o subtítulo “A árvore, animais e seres
humanos”; “L'Homme-Dieu ou le sens de la vie”, de 1996, “Aprender a Viver: Tratado de filosofia para uso
das jovens gerações”, de 2006, e “7 lições para ser feliz” (2019).
Alain Tourraine (França, 1925) é um sociólogo do mundo do trabalho e dos movimentos sociais, conhecido
por ter cunhado a expressão “sociedade pós-industrial”. A referência que aqui se faz lembra o livro Un
nouveau Paradigme.