LEITURAS, arquivística literária e crítica textual. R. Bibl. Nac. Lisboa, S.3, n.5, out.1999 / abr.2000

Autores

  • Maria da Conceição Carvalho

Resumo

Entre as reflexões que antecederam a chegada do século XXI evidencia-se a extraordinária importância que a questão da preservação da memória cultural e do patrimônio histórico já vinha ganhando, em todo o mundo, desde o final da década de 1980. No campo específico do patrimônio literário cresceu inquestionavelmente, nesse período, o interesse de instituições públicas e privadas pelo destino dos acervos de escritores, sob a guarda de arquivos, bibliotecas e outras instituições culturais. Como resultado dessa conscientização surgiram, em diferentes países, inclusive no Brasil, centros de estudos interdisciplinares com o objetivo de estabelecer políticas e praticar ações e intervenções no que se refere à identificação, ao tratamento, à preservação e à disponibilização de acervos literários de comprovada importância. A Biblioteca Nacional de Lisboa publicou um volume temático sobre a questão em outubro de 2000 trazendo a público as comunicações apresentadas no Encontro Internacional de Arquivística Literária e Crítica Textual, realizado em Lisboa, em junho de 1999. São depoimentos de especialistas de vários países abordando, sobretudo, os problemas metodológicos e éticos que envolvem a existência e o destino de acervos literários. Entretanto, como partem de perspectivas diferenciadas, conforme se trate do olhar do escritor, do crítico literário, do bibliotecário ou do editor, os editores da revista buscaram um fio condutor que facilitasse uma leitura orgânica dos textos, reunindo-os em quatro seções designadas: Criar e escrever, Colecionar e organizar, Referenciar e disponibilizar e Ler e editar. Na primeira seção, Criar e escrever, três escritores portugueses relatam seu processo de criação. Tais depoimentos, difíceis, senão penosos, por significarem uma revelação demasiado íntima sobre um produto em gestação, mostram-se importantes para essa corrente da crítica textual que volta a valorizar a figura do autor, tomado como personagem da construção de seus textos. Quando vivos, os autores costumam se manifestar ora com descaso, ora com repugnância, ou ainda com excessivo zelo, sobre essa possibilidade do devassar póstumo do seu mundo de construção ficcional. Em alguns casos, cientes da importância desse material para futura avaliação de seu percurso literário, podem iniciar em vida, eles próprios, o trabalho de classificação de suas obras, o que, de certa forma, facilita o trabalho futuro dos arquivistas literários. Entretanto, trabalhar com os espólios, ou seja, com tudo o que sobreviveu à própria ação do escritor e ao (des)interesse de seus familiares - rascunhos, anotações, correspondências, souvenirs, edições corrigidas etc., - nem sempre é tarefa fácil para organizadores e pesquisadores. É preciso rever a questão levantada por Antônio Braz Oliveira no artigo Arquivística Literária em perspectiva : Quem são os herdeiros dos espólios literários? Tais acervos responde o próprio Oliveira, na sua complexa textura, constituem uma valiosa parcela, particularmente frágil e subtil do patrimônio comum conservados em instituições que (nem sempre sem problemas) os receberam, guardaram e cada vez mais procuram divulgar, para proveito de estudiosos e investigadores das mais diversas áreas do conhecimento. Desse modo, uma vez doados ou vendidos a instituições públicas ou privadas, os espólios literários pertencem à sociedade em geral, herdeira de todo o patrimônio cultural da humanidade. Aos estudiosos – arquivistas, bibliotecários, historiadores da literatura e críticos literários cabe, no dizer de Oliveira, não apenas a preocupação de divulgar a existência desses acervos, mas, sobretudo, a tarefa de estabelecer critérios para a sua ordenação, descrição, disponibilização e preservação. São os passos desse percurso diferenciado e complexo que aparecem nos depoimentos da segunda parte da revista, Colecionar e organizar. Duas questões interligadas, de ordem ética e de ordem metodológica, perpassam esses textos, indicando a preocupação dos responsáveis pela organização da memória literária contemporânea em seguir (às vezes criar) critérios éticos e técnicos para melhor respeitar a vontade de quem a legou. Ou, nas palavras de Carlos Reis, da Biblioteca Nacional de Lisboa ...os escritores e pensadores que um dia esboçaram, emendaram, cancelaram e reescreveram com ardor e pertinácia serão conhecidos e valorizados com maior profundidade se um dia, em condições previamente estabelecidas, os seus papéis forem estudados com o método e com a preocupação deontológica que um tal estudo convoca. Carlos Reis acredita que é nas bibliotecas e nos arquivos que se encontram (ou devem se encontrar) as metodologias e o pessoal especializado capaz de executar tal tarefa. Nesse sentido, alerta por sua vez a docente/investigadora portuguesa Teresa M. Marques, o trabalho do crítico genético demanda prudência e atenção para não cair na tentação de tomar decisões que não lhe dizem respeito. Duas atitudes são perigosas diante da tarefa de organizar um acervo: de um lado a tentação de mudar, mais do que arrumar, palavras que pressupõem atitudes éticamente muito diferentes; e a atitude contrária, igualmente nefasta, que se dá pela sacralização dos restos, considerados relíquias, transformados em objetos-fetiche. T. M. Marques conclui, de forma contundente que, numa época como a atual, de limites indefinidos entre o que é de interesse público e o que deve ser mantido no domínio do privado, trabalhar com espólios, de maneira ética, significa remar contra a maré, preservando a nossa dignidade (de pesquisador), ao mesmo tempo em que ajudamos a preservar a dos outros (do personagem em estudo). A preocupação com o método suscita a necessidade, antes de mais nada, de harmonização terminológica, mais do que normalização propriamente dita para o campo da crítica genética. É essa a visão de Luís Cabral, da Biblioteca Municipal do Porto, para quem espólios, autógrafos, acervos literários, coleções, fundos, núcleos, são expressões diferentes, mas compatibilizáveis no seu conjunto. Já o Centro de Pesquisas Literárias da PUC/RS, importante núcleo da crítica genética no Brasil, representado no encontro de Lisboa por Maria da Glória Bordini, optou pelo termo acervos literários para delimitar a especificidade de seu projeto de preservação da memória literária da região sul do país, mais adequado, neste caso, que espólios ou arquivos. Os documentos que compõem espólios, acervos ou arquivos são, de qualquer maneira, objetos materiais e intelectuais, afirma, por sua vez Grésillon, na comunicação Le commerce avec les manuscripts: conservation ou recherche?, que permitem explorar científicamente esse precioso patrimônio conservado nas coleções, bibliotecas e arquivos literários. A chamada pesquisa genética, continua Grésillon, seria impossível se, de um lado, a coleta, a guarda e a conservação, e de outro, a restauração e a publicação desses papéis, constantemente ameaçados de destruição, não estivessem garantidos. Dessa afirmativa pode-se inferir a interdisciplinaridade presente no trabalho da crítica genética, mobilizando saberes, campos e metodologias tão diversos quanto os da história e crítica literária, história cultural, semiótica, antropologia cultural, editoração, informática, conservação de documentos, arquivística e, ainda, da biblioteconomia em diferentes abordagens. Uma preocupação presente nos artigos da terceira seção, Referenciar e disponibilizar, refere-se à (falsa) dicotomia conservação/uso dos documentos autógrafos, já que toda manipulação implica virtualmente em ameaça ou agressão aos mesmos. O pesquisador da crítica genética, consciente da necessidade de proteger os manuscritos originais, luta em favor da sua substituição, seja qual for o suporte – fotocópia, microfilme, videodisco, CD-ROM ou disco ótico, embora não possa deixar de reivindicar, em certas etapas do seu trabalho, o acesso ao original, objeto único, que perde parte de suas características materiais quando sua mensagem é reproduzida, ainda que com fidelidade quase perfeita, como no caso das imagens computadorizadas. Mais paradoxal do que a relação conflituosa entre conservar e usar, guardar e disponibilizar é o fato de que a crítica genética, com a importância que atribui aos pré e pós-textos se constituiu ao mesmo tempo em que apareciam os primeiros editores de texto no computador, que implicam a ausência de rascunhos e correções visíveis. Com certeza essas novas possibilidades serão incorporadas pela crítica genética, ao invés de se associar o seu fim, como campo de pesquisa, ao fim dos rascunhos manuscritos. No fundo, pensa Grésillon, citado acima, é o olhar do pesquisador que deverá mudar. Banalizada como ferramenta de escrita, a informática deverá ser mais explorada como ferramenta de pesquisa, dada a sua capacidade de estocagem e de memorização, capaz de transformar em imagem todos os passos da criação. Em outras palavras, a informática facilita a tarefa de interrogar, reativar a todo instante, comparar e ler simultâneamente a enorme quantidade de dados e imagens que o pesquisador recolhe e separa nas diversas fases do seu trabalho de crítica. Para a pesquisa genética, é ainda Grésillon quem afirma, isso significa um progresso sem precedentes, que permite criar bases de dados e edições hipertextuais de toda ordem. É sob esse aspecto que o Projeto MALVINE (Manuscripts and Letters via integrated networks in Europe), apresentado na terceira seção de Leituras, desempenha papel exemplar, permitindo ao pesquisador não somente verificar rapidamente onde o manuscrito está localizado, como pode fazê-lo aparecer sobre a tela e como integrá-lo a outros dados textuais. No espaço brasileiro está em curso a formação de uma rede digital de informações provenientes dos acervos, arquivos e espólios literários do país, projeto criado e gerenciado pelo Centro de Pesquisas Literárias da PUC/RS, que já inclui, entre outros, os acervos de Henriqueta Lisboa e Murilo Rubião, sob a guarda da Biblioteca Central da UFMG. Os recursos hipertextuais, portanto, ampliam as possibilidades da crítica genética, podendo-se representar a dinâmica dos processos da escrita, mostrá-la como memória viva, ao contrário do suporte papel, limitado pelo aspecto eternamente bidimensional da página. A informática oferece uma ferramenta que permite navegar no espaço do pré-texto ao texto, com suas edições sucessivas /.../ como se o atelier do artista se reconstruisse a cada momento sob nossos olhos, diz Grésillon. Por fim, na quarta e última seção chamada Ler e editar, discutem-se as necessidades e possibilidades de se realizarem edições críticas de diferentes autores, contemporâneos ou não. Relatos interessantes de edições críticas de escritores portugueses nos lembram que esse tipo de edição continua relativamente raro no Brasil (Emanuel Araújo fez essa afirmação em 1986, em A construção do livro e pouca coisa mudou, desde então). Sendo um dos produtos notáveis da crítica genética há aí amplo espaço de atuação conjunta com a bibliografia descritiva que, segundo me parece, ainda não foi devidamente explorado pelos bibliotecários, até mesmo como tema de dissertações e teses. Fica a sugestão...

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Publicado

2007-11-20

Como Citar

Carvalho, M. da C. (2007). LEITURAS, arquivística literária e crítica textual. R. Bibl. Nac. Lisboa, S.3, n.5, out.1999 / abr.2000. Perspectivas Em Ciência Da Informação, 6(2). Recuperado de https://periodicos.ufmg.br/index.php/pci/article/view/23385

Edição

Seção

Resenhas