A Revista Indisciplinar 15 traz para o debate o tema “COMPANHEIROS MULTIESPÉCIES: COM QUEM CONSTRUIR MUNDOS?”, a partir da discussão sobre os diversos agentes que constroem as cidades, sejam eles humanos ou não-humanos, e os mundos que produzem. Objetivando conhecer e reconhecer esses outros agentes e os espaços de encontros multiespécies, esta edição v.8 n.2 da Revista Indisciplinar apresenta uma entrevista, nove artigos, um ensaio cartográfico e um ensaio gráfico.
A entrevista apresentada na abertura da revista foi realizada no primeiro encontro dos coordenadores da Rede de Estudo de Rios Urbanos Naturalizados - RUN | Ciência cidadã e cocriação como meios de regeneração de rios e minimização de riscos, realizado em Popayan, Colômbia. A rede envolve 15 parceiros Ibero-Americanos de um campo fortemente multidisciplinar que conjuga vários campos do conhecimento como hidrologia, arquitetura, urbanismo, planejamento ambiental, geografia urbana, ciências sociais e humanas, informática, telecomunicações, cruzando conhecimentos científicos com os saberes das populações ribeirinhas. Os pesquisadores responderam, através de uma conversa entre o grupo, a única pergunta: Como construir mundos com a água?
Nos ensaios desta edição, estão presentes variadas reflexões sobre o processo de construção de mundos às margens, seja do planejamento urbano, da cidade formal ou das narrativas hegemônicas, elaborações que se valem do que descartado ou entendido como objeto nesse processo.
No primeiro ensaio gráfico “Isto aqui não é (só) uma placa”, Isabela Prado apresenta o projeto Sobreo Rio, uma intervençã ourbanana cidade de Belo Horizonte que indica a presença de córregos sob as ruas da cidade. No segundo ensaio gráfico, Luciana Bragança e Gabriela Resende apresentam os territórios multiespécies daqueles para quem o direito à cidade é uma ficção. A partir das imagens de jardins construídos por moradores de rua como possibilidade de existência nas cidades, os mundos dos Jardins Possíveis são descortinados. O ensaio cartográfico elaborado por Douglas Silveira Martini revela uma experiência cartográfica nas paisagens à margem da BR-386, entre os municípios de Triunfo e Montenegro, a partir da montagem narrativa e visual de histórias e práticas cotidianas de habitantes que se responsabilizam pelo lixo nas paisagens da região e constroem com ele uma malha comunitária de vínculos multiespécies. No primeiro bloco de artigos, são apresentados territórios multiespécies diversos: a costa marítima, os quintais, os vazios, as cercas dos conventos franciscanos brasileiros. Eliz Tosi Modolo e Rodrigo Gonçalves dos Santos, usando um processo metodológico cartográfico, refletem sobre a influência do mar na produção da cidade costeira e sua paisagem movimento, algo vivo, vivenciado e tensionado por múltiplos processos subjetivos, ecológicos, políticos, sociais e culturais. Rafael Teixeira Vidal investiga a lógica de relações e de parcerias entre “espécies companheiras”, humanas e não-humanas, a partir de levantamentos e análises cartográficas de quintais urbanos na cidade de São João del-Rei, em Minas Gerais. Gabriela Amado Chetto Coutinho e Aline de Figueirôa Silva propõem discutir significados associados à vegetação no ambiente urbano, considerando, para além de suas dimensões sanitária e decorativa, seus aspectos simbólicos e também patrimoniais no lugar denominado “Vazio da Mangueira”, localizado no Centro Histórico de Salvador. Retomando a discussão patrimonial a partir da cerca nos conventos franciscanos históricos do Brasil, Maria Angélica da Silva levanta a perspectiva de uma adesão à cidade pós pandêmica que tracione produção do espaço, sustentabilidade e ecologia urbana, servindo o convento como exemplo de encontro multiespécies.
No artigo manifesto Vegetar-se, Maycow Nathan Carvalho Gregório convoca uma transformação na qual o vegetar é a estratégia de aprender “gestos de deserção” do nosso mundo concretado e com isso vislumbrar outras formas de habitar. O autor realiza uma exploração conceitual em torno dessa estratégia, colocando as relações multi e interespécies nas fronteiras do pensamento e das agências sobre a vida, o espaço, o tempo, a subjetividade, a política, a ecologia e os diferentes projetos de mundo.
No segundo bloco, os artigos apresentam propostas metodológicas como possibilidades de conhecer, reconhecer companheiros e construir ou fazer perceptível seus mundos outros, bem como outras cosmopersepções não hegemônicas, que ficam encobertas na nossa forma de fazer, projetar, ver, perceber os espaços. Rogério Lucas Gonçalves Passos realiza um debate sobre a “Guerra das narrativas: a disputa territorial por meio dos mapas da Vila Acaba Mundo” envolvendo o entendimento do território expresso por meio dos mapas,
a partir dos conflitos territoriais expressos entre os mapas oficiais e as narrativas que reduzem os territórios das favelas como estratégias de controle e apagamento. O autor aponta a necessidade de elaboração de um novo mapa para entendimento do espaço social dessa vila e de tantas outras, a exemplo dela, a partir do protagonismo da comunidade. No artigo “A cidade como comum: uma experiência no extremo sul da Bahia”, Fernanda Hellmeister de Oliveira Martins e Herbert Toledo Martins apresentam uma pesquisa sobre o comum a partir da experiência da cidade de Santa Cruz Cabrália, extremo sul da Bahia. Como forma de atualizar esse debate, recorrem às práticas e relações de produção e de reprodução coletivas, cooperativas e autônomas da “Feira Cultural – Encontro na Praça”, construindo mundos outros através dessas formas de se conviver e de relacionar com a cidade. Em “Campo-paisagem: transversalidades em debate”, o grupo composto por Adriana Nascimento, Isabela Freitas Cioni, Mariana Chaves Monti Souza, Paulo Jarbas Cardoso da Silva, Rafaella Anielly Silva Borges, Suzana Helena Ceranto Ribeiro e Vitor Bauschert Braz tece sua proposta dentro dos debates relacionados às distintas cosmovisões da vida, apresentando discussões das noções de “campos”, como fisionomia do Cerrado brasileiro. Apresentam perspectivas complementares sobre a formação da paisagem que buscam romper a dicotomia entre natureza e cultura, impelindo uma aproximação que enfatiza a importância das toponímias como um conjunto indispensável para a compreensão do próprio território.
O debate proposto por essa edição é fechado com o questionamento de Camila Bezerra Nobre de Medeiros no artigo “O direito à não-cidade: uma visão contra-hegemônica”. Buscando evidenciar a importância dos povos rurais para a construção de outros mundos possíveis, a autora levanta a discussão sobre o tema do direito à não-cidade, que abarca os territórios rurais. Nesses territórios, habitam companheiros multiespécies, que vão além da figura humana para englobar também a natureza e seus elementos. Assume-se que este direito não pode estar separado do seu direito irmão: o direito à cidade. Sendo um tema ainda pouco explorado pelo campo da arquitetura e do urbanismo, o artigo pretende discuti-lo de forma preliminar, de modo a fomentar um debate que precisa ser continuado.
Essa é a proposta da revista: expandir o campo dos aliados na construção de mundos onde somos companheiros e agentes
dos espaços da vida e fraturar o universo impermeável da arquitetura e do urbanismo em tempos de colapsos climáticos e catástrofes ecológicas ao reconhecer a existência de outras relações na cidade que incluam os não-humanos. Assim, fraturando também o antropocentrismo fundante dos modos de construir o mundo dessas práticas tão modernas. Esperamos que a revista estimule novos debates e mobilize estratégias propositivas para a transformação do conhecimento acadêmico e para a articulação dos diversos agentes que constroem conosco o nosso planeta.
Editores Revista Indisciplinar