Um mito latino sob as lentes do Guru

“Eros uma vez…”, de Millôr Fernandes

Résumé

O jornalista, humorista e desenhista carioca Millôr Fernandes (1923-2012) percorre em sua obra gráfica e literária diversas facetas da cultura ocidental; no mundo antigo, suas incursões resultam em narrativas sobre deuses e heróis da mitologia greco-latina, apresentadas em fábulas aos moldes esópicos. Em igual medida de pueril curiosidade e cáustico questionamento, essas recriações fabulares repercutem a permanência e transitoriedade de dinâmicas sociais, políticas e de gênero, assim propondo um novo olhar sobre os valores vigentes no seu Brasil do século XX e XXI. Partindo de tal contexto, propõe-se neste artigo a análise sobre a fábula “Eros uma vez…”, na qual o denominado “Guru do Méier” opera a recepção da literatura antiga. Em seu ativo diálogo com o conto de Cupido e Psiquê, parte integrante de O Asno de Ouro do romancista e filósofo neoplatônico latino Apuleio (Séc. II), essa nova fábula de Millôr transmuta a busca da alegórica alma humana pelo amor de Cupido em uma paródia sobre a incapacidade de elevação espiritual, em uma lição niilista sobre o despropósito da humanidade entregue às capacidades cúpidas que lhe são inerentes. Por meio da usual concisão, arquitetura errática e precisa da prosa e erudição escrachada, trilhamos junto ao fabulista brasileiro as possibilidades legadas na literatura de base, na constante consideração do mito como veículo de verdades, e também como relevante vetor no desmonte de toda sorte de establishment.