Chamada para o dossiê: Dandismo & Opacidade: a fabulação de si na práxis artística contemporânea

2024-03-25

O dandismo foi apresentado por Albert Camus (2012) como um modelo de revolta metafísica por intermédio do qual se afirmava a existência do dândi na experiência do limiar. Neste espaço, erigia-se uma tensão entre realidade histórica e desejo de criação de si a partir do processo performativo das artes. A revolta pelo artifício enunciada pelo dandismo, segundo Camus, transformou o gesto artístico em atitude crítica, propiciando ao sujeito reconstruir-se por um tipo de estética da existência, singularizando a sua imagem.

Esta questão foi amplamente pensada como uma forma de invenção mítica do artista moderno. Para Nathalie Heinich (2014), a transfiguração do sujeito em obra de arte fundamentou um modelo muito singular do regime ético-estético pela performatização do artista. A partir disso, as políticas de visibilidade do artista integraram experiência da imagem e corporalidade da presença, integrando narrativa histórica e fabulação mítica. Como resultado, criou-se uma indistinção entre realidade e ficção, a partir da qual o dândi passou a representar um tipo de fabulação do sujeito que o conduzia a uma vivência anacrônica da história. À maneira de Nicole Leroux (2009), o artista dândi adotou um tipo de “imprudência metodológica” que lhe permitia convocar outros tempos no interior da contemporaneidade. Esta ação, a priori indevida, possibilitou-lhe experenciar auraticamente a concepção de sua própria imagem. E, sob tais condições, o dândi foi capaz de evocar o passado mais longínquo para explicitar a distância de seus afetos. O thos da performatização do si o autorizou a reconstruir criticamente o seu papel na sociedade, inquirindo continuamente a articulação entre o presente e o passado. Por isso, Michel Foucault (1994) compreendeu o papel do dandismo como uma provocação do artista frente a sua contemporaneidade. A atitude de modernidade foi uma forma de pensar a experiência do devir diante dos signos de reconhecimento da singularidade. Como anunciou Charles Baudelaire (2010), a emergência da imagem do dândi assinalou, igualmente, a decadência do herói na modernidade. Pela alegoria do Hércules sem emprego, o artista afirmou o valor de sua atitude na sociedade do capital.

No Brasil, Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio (1881-1921), adotou as máscaras do dandismo e a atitude flâneur para falar de uma Belle Époque tropical, anacrônica e anti-heróica já no nascimento: uma cidade moderna fora do eixo em que a Modernidade se fundia na guerra. Mestiço, obeso e homossexual, era já um dândi fora do prumo, eleito para a Academia Brasileira de Letras, que fazia a reportagem das ruas da sua cidade, mostrando a sarjeta e os dejetos da cidade.

Gloria Durán (2009), por outro lado, nos apresenta as múltiplas possibilidades do dândi por intermédio da noção de contragênero, pois que a performatividade possibilita que se transborde por esses meandros todos construtores de verdades tornadas móveis, fruto da arte de ser e parecer, entre atitude e gestual.

Seria o caso de pensarmos o dândi como essa possibilidade de escultura de si, em que o exercício poético/estético confere uma autonomia criativa capaz de promover um movimento de transcendência. Ao brincar com a regra, como nos lembra Jules-Amédée Barbey D’Aurevilly (2009), o dândi se oferece ao jogo, criando novas possibilidades narrativas e performando outros perfis de si. Nesse sentido, o dândi tem a capacidade de se relacionar com o mundo fraturando uma certa ordem, esvaziando-a, na medida em que privilegia o artificio, o supérfluo, o lúdico. O dandismo promove uma fragmentação que distorce o já estabelecido, sem romper com os códigos, mas acentuando-os com um excesso de cuidado. Como afirma Monica Miller (2009), ao observar como a estética e a beleza fortalecem propostas de equidade social, o dândi se torna “um esteta político”.

Este gesto desviante de autocriação confere ao dandismo a possibilidade de partilha do sensível, para recuperar Jacques Rancière (2005), numa perspectiva outra de comportamento, de atuação e de estar no mundo. E, por isto mesmo, apesar de aparentemente aprisionante a um rigor estético, o dândi se exibe como um manifesto de liberdade existencial. Assim, estética e política se potencializam na plasmação de si.

Françoise Coblence (2018) nos lembra a injunção baudelairiana: o gesto da ação seria não somente uma atitude ou postura, ele seria a alternativa para resistir a uma sociedade que não mais necessitaria de artistas ou poetas. A transfiguração do gesto do artista seria o último brilho de heroísmo nas decadências. Entretanto, esse mesmo gesto que revelou a singularidade do artista também provocou a sua opacidade, em particular, no tempo do brilho e da transparência das vitrinas da cultura industrial. Momento em que, segundo Georges Didi-Huberman (2011), a iluminação dos projetores havia tomado o espaço social, transformando todo gesto poético em um triunfo da transparência, ao passo que Nicolas Bourriaud (2011) aponta para uma gênese do artista moderno por excelência na figura do dândi, em sua performance cotidiana por uma existência como forma de arte.

Para Édouard Glissant (2021), a transparência seria como um tipo de obsessão contemporânea, tal como uma coletivização abusiva das práticas identitárias que, nos debates atuais, poderia transformar o espírito em uma mercadoria. Ser múltiplo e singular, em sua substância, seria uma forma de se pensar a contra-imagem do artista frente à banalização da singularização das culturas. Observar a opacidade seria tipo de vontade inquieta frente à simplificação da intenção poética do artista. A opacidade significaria uma maneira se dizer “não” à incapacidade de se inquietar diante de sua própria imagem na experiência do tempo. O que mais pedir a um artista senão uma interrogação sobre a sua atitude performativa frente a fabulação de si e de seu corpo na arte? Dentre tantas outras inquietações a respeito do Dandismo, convidamos a compartilhar reflexões e questões a respeito da fabulação da imagem do artista, salientando qual seria este Outro corpo em constante devir? Seria o corpo-tela do qual fala Lêda Maria Martins (2021)? Um corpo produzido pela dimensão temporal espiralar do gesto...

Nosso convite parte de uma tentativa de se analisar o Dandismo a partir de suas opacidades, anacronismos ou circunlocuções a fim de apresentarmos outras imagens e presenças do artista na vivência temporal espiralar. Experiência performativa do dândi que grafa em mise-em-abyme o movimento de seu gesto no tempo, apresentando a transfiguração da vida em obra de arte como uma fabulação do si. O dandismo seria, então, um tipo de força poética mantida em cada artista, a partir de sua práxis artística?

Editoras do Dossiê Temático

Angélica Adverse [UFMG - PPGArtes]

Joana Bosak [UFRGS - PPGAV]

Renata Pitombo [UFBA - Pos-cultura e UFRB - PPGCOM]

Prazo para submissão: 28/04

Normas gerais: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/about/submissions#authorGuidelines

Submissão: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/about/submissions

 

Referências Bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida. A arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAMUS, Albert. L’Homme Révolté. Paris: Gallimard, 2012.

D’AUREVILLY, Jules-Amédée Barbey. O dandismo e Georg Brummel In TADEU, Tomaz (org.). Manual Dândi: a vida como estilo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p.113-207.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

DURÁN, Gloria. Dandysmo y contragénero. Valência: Universidade Politécnica de Valência, 2009

FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Volume IV. Paris : Gallimard, 1994.

GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.

HEINICH, Nathalie. De la Visibilité. Ecellence et Singularité en Régime Médiatique. Paris : Gallimard, 2012.

LORAUX, Nicole. A Tragédia de Atenas. A política entre as trevas e a utopia. São Paulo: Loyola, 2005.

MARINHO, Maíra Rangel. (2011). João do Rio: o dândi e a cidade. Sociedade E Estado, 19(2). Recuperado de https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/5124

MARTINS, Lêda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. 

MILLER, Monica. Slaves to fashion: Black Dandism and Styling of Black diasporic identity. Durham: Duke University Press, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

 

Referência iconográfica:

Shima – Testemunho, 2006-2023

pigmento mineral s/ papel arquivo, 90x120cm, 2006-2010 tiragem de 7 exemplares + 2PA

Link: https://shima.art.br/testemunho acesso 22 de março de 2023